É uma vergonha. Porque é que não foste votar?
Porque são sempre os mesmos, porque são todos iguais, porque nada muda.
É uma vergonha. Porque é que não foste votar?
Porque já tinha coisas combinadas (à escolha: fui à praia, a casa da sogra, acordei tarde de uma noitada, outras)
Em síntese, é isto que ouvimos. Uns têm mais que fazer, outros têm pouco que fazer, mas o resultado é o mesmo. Portugal, um quase recordista da abstenção nestas eleições europeias, teve mais de sete milhões de pessoas que não fizeram aquilo que como sociedade é esperado de cada um de nós – que participe, que seja parte da decisão coletiva na eleição de quem representa o país.
Ainda antes de irmos ao ponto do que é “participar” e “ser parte da decisão coletiva”, vamos olhar para outros dados.
No final dos anos 60, um holandês, Geert Hofstede, criou um modelo para avaliar diferenças culturais entre vários países. O projeto nasceu na IBM, onde Hofstede fundou o departamento de investigação na área comportamental e os primeiros testes, entre 1967 e 1973, foram feitos com os 117 mil colaboradores da empresa espalhados pelo mundo. O modelo tornou-se uma referência para várias organizações e tem sido usado para perceber contextos comportamentais em grupos tão distintos como pilotos de aviação, estudantes, funcionários públicos, consumidores e elites.
Uma das dimensões deste modelo é designada como Power Distance Index e mede a forma como diferentes culturas se relacionam com a distribuição de poder e, por inerência, também com a desigualdade. Numa lista de cerca de 70 países referenciados, Portugal tem 29 à sua frente, ou seja, estamos mais distantes do poder e tendemos a aceitar melhor as hierarquias. Dos que estão atrás de nós só três são europeus (Bélgica, Polónia e França). Tão ou mais curiosa que esta dimensão é uma outra do mesmo índice que avalia a relação com o risco e incerteza. Ou, como se pode ler no próprio índice, o grau de conforto ou desconforto com situações não estruturadas que são descritas como “novas, desconhecidas, surpreendentes e diferentes do habitual”.
No próprio site que apresenta os resultados lê-se: “se há dimensão que define Portugal de forma muito clara é a fuga à incerteza”. Ainda que não seja, pelo menos para mim, claro que toda a descrição dos países que partilham esta aversão à incerteza se aplique a Portugal (nomeadamente sobre as culturas com este perfil terem necessidade de regras rígidas e resistência à inovação – onde ficaria aqui o nosso tão afamado desenrascanço?) – para efeitos de escolha política, e mesmo outras faz algum sentido (também não é por acaso que só há muito pouco tempo e para gerações mais novas é que ter uma empresa se tornou para alguns mais atrativo do que trabalhar para o Estado ou para uma grande empresa).
Sendo este modelo usado sobretudo na gestão de organizações, é útil quando pensamos na forma como culturalmente nos relacionamos com o poder. E a frase que tantas vezes ouvimos e que justifica para muitos a abstenção – “são todos iguais” ou “são sempre os mesmos” – encaixa-se bem no perfil de um povo que aceita as hierarquias e reconhece privilégios a quem detém o poder (a nossa proverbial forma de nos referirmos a quem decide como “eles”). A mesma cultura que ao mesmo tempo lida mal com a incerteza (o que faz com que apesar de “serem todos iguais” se prefira o velho conhecido dos “mesmos” ao novo mas incerto).
Este racional funciona sobretudo com uma população mais velha – também a que vê mais televisão e importa recordar que Portugal é um dos recordistas no consumo televisivo (dados de 2016 colocavam à nossa frente na Europa, em consumo de minutos/dia, apenas a Sérvia e a Roménia), nomeadamente face a outros países onde o digital é líder.
Quando olhamos para os mais novos, a praia, a noitada e até mesmo o almoço em casa da sogra podem simplesmente ser as razões pragmáticas para uma motivação - ou falta dela - que não se enquadra nos padrões da política tradicional.
Na última década, as eleições em que a mobilização dos jovens foi mais evidente foram aquelas que, em 2008, levaram Barack Obama à Casa Branca. Foram também as primeiras eleições – ainda antes de se falar de hackers russos ou de Cambridge Analytica e de apropriação de dados de utilizadores – em que as ferramentas digitais de socialização foram usadas com sucesso.
Vamos olhar para os números dos millennials americanos antes de regressarmos aos nossos. Nas eleições de 2016 que elegeram Trump, segundo o Pew Research Center, existiam 69,2 milhões de eleitores entre os 18 e os 34 anos. Oito anos antes, cerca de 50% deste grupo foi às urnas nas eleições que elegeram Obama (o valor mais elevado para a faixa etária, mas ainda assim abaixo dos 60% de votantes da geração X e 70% de baby boomers que, já agora, em número equivalem os millennials).
Em 2012, a percentagem de 50% de millennials que foi às urnas em 2008 desceu para 38% - Obama voltou a ser eleito, mas desta vez a pressão ou para usar uma palavra cara a esta geração – o propósito – era menos intenso.
Nas eleições de 2016, por seu lado, foram também os mais novos a liderar o apoio ao candidato mais velho (Bernie Sanders).
O que várias análises evidenciam é que para aqueles que nasceram a partir da década de 80 do século passado, a escolha pessoal sobrepõe-se à ideia de dever cívico. É uma geração que já cresceu afastada da realidade das guerras mundiais do século XX e uma geração que foi a primeira a não ter memória da vida sem Internet. Assustador ou não, dependendo do que daí decorre, é uma geração que relativiza o valor da democracia – mesmo que não relativize a sua vivência. A História faz muita diferença: segundo este estudo publicado no Journal of Democracy só 30% dos Americanos nascidos nos anos 80 pensam que é essencial viverem democracia, versus 75% dos Americanos que nasceram nos anos 30.
No que respeita à Europa, as possibilidades de efetiva participação na vida política são vistas como algo vago e pouco mobilizador. É o que mostra também este inquérito aos jovens europeus no qual só 32% dos inquiridos aponta a democracia como um dos cinco valores sociais mais importantes.
Não significa que seja uma geração sem causas – mas significa que estas são menos derivadas da pertença a um partido ou ideologia e mais decorrentes de si próprios e das influências que reconhecem como válidas. Questões como a igualdade de género ou o ambiente são mais mobilizadoras do que discussões sobre modelos políticos ou ideologias. E também não significa que esta geração não seja mobilizada por líderes. Já falámos de Sanders, mas há outros, incluindo de tendência política oposta.
O primeiro-ministro austríaco, Sebastian Kurz, agora demissionário, ele próprio eleito em 2017 com apenas 32 anos, teve forte apoio dos eleitores mais jovens. Antes da sua eleição, Norbert Hofer, também da extrema-direita austríaca tinha obtido 42% dos seus votos entre eleitores com menos de 30 anos.
Também na Alemanha, o partido de extrema-direita AfD reuniu apoio significativo entre os mais novos quando a força liderada hoje por Alexander Gauland e Jörg Meuthen entrou no parlamento, ao contrário de Emmanuel Macron, em França (terceira escolha para os mais jovens). Nas eleições ganhas por Macron as preferências dos millennials iam ou para o comunista Jean-Luc Mélenchon ou para a nacionalista Marine Le Pen.
Os cientistas políticos olham para estas respostas e preferências à luz de duas premissas: a questão económica, nomeadamente o elevado desemprego entre os jovens, que os torna mais céticos sobre a ideia de que a democracia funciona e gera bem-estar, e por outro lado o seu próprio lugar na história, longe de guerras e de regimes autoritários, que na sua maioria não viveram. Mesmo para quem se interessou e soube pelos livros e relatos, a experiência não é a mesma de quem lá esteve.
O que vários estudos nos apontam é que mais do que chorar pelo que não volta a ser é preciso preparar o que será. Continuar a fazer arruadas e bailaricos, distribuir canetas e bonés e realizar debates ininteligíveis em televisão pode ter funcionado durante várias décadas, mas, atualmente, só funciona mesmo para políticos, jornalistas e comentadores. As pessoas que votam – e sobretudo as que não votam – assistem sem mobilização e quanto muito esboçam um sorriso cínico ou uma gargalhada se um humorista lhes servir o prato dessa forma.
Continuar a remeter para aulas de formação cívica o que devia ser um investimento efetivo em dar a conhecer a história e a filosofia – essas pobres ciências sociais e humanas que não servem para arranjar emprego – é menos que uma panaceia e mais uma desculpa envergonhada de que se está a fazer alguma coisa. Numa época em que a Ryanair e o Airbnb fazem mais pela descoberta da geografia e interesse pela história do que o a escola dá a conhecer – e sobretudo a debater – fará mais sentido repensar como interessamos as pessoas que já nasceram numa realidade diferente da dos pais e avós do que abanarmos a cabeça com a velha banda sonora de que esta geração está perdida (não estiveram todas antes desta?). E, já agora, o envolvimento dos mais jovens nas manifestações pelo clima pode ser muita coisa para quem nunca vê nada de bom surgir de quem chegou depois, mas é pelo menos uma evidência de que os mais novos se importam e se mexem – isso são janelas para aproveitar e não para fechar.
Mark Leonard, diretor do Conselho Europeu de Relações Internacionais, comentou, ainda a quente na noite eleitoral de domingo, que nestas eleições os europeus preferiram combater os nacionalismos (que também cresceram) apoiando novos partidos (liberais, verdes) do que votando nos partidos do costume. E rematou com a frase: “business as usual is not an option”. Numa tradução livre, continuarmos a fazer o mesmo e esperar resultados diferentes é, como geralmente acontece, uma má decisão. Sobretudo não deve ser o caminho a seguir quando nos encontramos num daqueles momentos em que sentimos que a tendência da História para se repetir pode a qualquer momento abater-se sobre nós.
Numa Europa em que nomes como Nigel Farage, Marine Le Pen, Matteo Salvini e Viktor Orban ganham eleições, continuamos a precisar dos nossos mortos – aqueles que nos ensinaram a pensar, que combateram por regimes mais justos e por formas dignas de vida. Só que não chega evocar nomes ilustres, datas históricas e momentos definidores da nossa vida coletiva. É preciso hoje, no presente, entre os que cá estão, fazer inscrever novos nomes e acontecer novas datas – por outros caminhos, inventando o que antes não existia e entrando na vida uns dos outros da mesma forma que o fazemos em todas as outras coisas que não são política.
A Islândia, um dos países heroificados na sequência da crise económica de 2008, reescreveu a constituição depois de mandar prender banqueiros e políticos. Não a entregou a juristas, quis fazer dela um documento vivo – chamou cidadãos de diferentes esferas sociais e pediu-lhes que trabalhassem juntos. Pediu sugestões a todos os islandeses através da internet. E referendou o texto antes com questões sobre a gestão dos recursos naturais ou o papel da igreja. Quando ficou pronta, a nova constituição teve leituras públicas – para que saísse dos livros e das salas-museu e fizesse parte da vida de todos.
É preciso muito mais disto. Mais política ao vivo em vez de meras visitas aos panteões farão mais pelo voto do que apelos sentimentais à boca das urnas.
Votar não é um fim em si mesmo – deve ser a consequência de tudo o resto.
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