Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
A vida no pós-confinamento vai ser, sem dúvida, diferente. É difícil dizer se drasticamente ou apenas ligeiramente diferente, mas muitas coisas vão mudar.
É praticamente impossível pensar que 46 anos após o 25 de Abril de 1974, estaríamos em casa à espera de outra revolução. E que desta vez, a melhor forma de fazer frente à opressão seria através do acto heróico de ficar em casa. Aparentemente simples, mas que a cada dia que passa temos a noção do quão heróico se está a tornar.
O estar em casa obrigou-nos a mudar a forma de olharmos para vários aspectos da nossa vida que pareciam já uma garantia. Desde a forma como nos relacionamos uns com os outros, até à forma como trabalhamos. Desde a forma como valorizamos a liberdade de sair de casa até à forma como compramos.
Enquanto muitos de nós lutam por manter a sanidade mental durante o período em que ficamos em casa, muitos outros lutam pela sua sobrevivência. Numa crise económica que provavelmente vai ter um impacto tão grande ou maior que a última crise com que lutámos em 2008, toda a economia treme. Mas os que tremem primeiro e muitas vezes até cair, são os pequenos negócios.
Uma grande maioria dos pequenos negócios tem uma tesouraria de semanas, isto significa que se tiverem que fechar as portas e tiverem uma quebra total das receitas, só conseguem pagar as despesas – rendas, pessoal, empréstimos – durante algumas semanas. Já vamos em 2 meses de isolamento e mesmo com as medidas de apoio a sócios gerentes, moratória de créditos e a reabertura parcial, é difícil ainda prever uma total normalidade e acima de tudo, quanto tempo conseguirão os pequenos negócios, que ainda não tiveram que abrir falência, aguentar.
Num mundo profundamente conectado, o papel da economia mundial e da sua interconectividade são fulcrais para mantermos o nível de vida que temos e que tanto apreciamos, mas são os pequenos negócios que dão humanidade à economia. Uma economia que nasceu para servir as pessoas, mas que muitas vezes parece que é o contrário que acontece.
Esta crise trouxe imensos desafios, algumas oportunidades e umas quantas revelações. Os desafios todos os conhecemos, mas para mim, foi incrível ver os movimentos de apelo a comprar aos pequenos negócios e a consumir localmente que surgiram. Foi incrível ver como muitos portugueses se mobilizaram e passaram a ter em consideração as dificuldades que os pequenos negócios que nos conhecem pelo nome estão a atravessar.
Surgiram directórios que mapearam pequenos negócios que se reinventaram, listas de pequenos fornecedores activos ou plataformas para venda de vouchers para apoiar o pequeno comércio.
Mas esta consciência vai acabar quando voltarmos à normalidade?
Esta crise trouxe também várias lições. Aprendemos que a colaboração entre entidades será cada vez mais importante. A todos os níveis – local, regional, nacional e internacional. A comunicação e articulação de esforços tem de ser a nova realidade. Os sectores público, privado e social estão inseridos na mesma sociedade e não em diferentes como muitas vezes parece. Quando um prospera, os outros prosperam igualmente.
Também aprendemos, ou voltámos a aprender, que é um luxo ter produtos e serviços de qualidade disponíveis para nós, todos os dias.
É um luxo, todos os sábados ir buscar legumes e frutas de uma cooperativa local, beber um café na esplanada nos dias de sol, poder treinar com os meus amigos, receber massa fresca em casa ou cortar o cabelo no cabeleireiro onde nos conhecem pelo nome.
E esse luxo é nos trazido, muitas vezes, pelos pequenos negócios e pequenos produtores que são uma parte integral da nossa vida e que muitas vezes não damos valor. Seja através dos pequenos negócios que têm a porta aberta para nos receber ou dos que fornecem as grandes superfícies.
E para que estes agentes, fulcrais no nosso dia-a-dia, continuem a fazer parte do nosso quotidiano, depois desta crise e depois das outras que se seguirão, é necessário começar já a criar as condições para que a pequena economia, que dá cor ao nosso dia-a-dia, muitas vezes sem nos apercebermos, seja mais competitiva e resiliente. Isso pode ser feito através:
- Criação de redes de distribuição comunitárias (à escala municipal), agregando vários pequenos negócios para que os custos do transporte ou das entregas em casa, não esmague totalmente as suas margens;
- Aposta na digitalização dos pequenos negócios, não de forma integral (estes não vão passar a ser negócios online), mas como complemento de forma a terem uma presença online sólida e canais de comunicação digitais;
- Fortalecimento e manutenção dos apoios;
- Criação de canais agregadores de pequenos negócios dando-lhes escala para negociarem com fornecedores de produtos e serviços a um preço mais competitivo.
Para complementar e talvez mais crítico ainda, é essencial que esta consciencialização da importância e do apoio aos pequenos negócios não acabe quando a covid se for embora. Tem que continuar e crescer, talvez agora mais do que nunca.
Parece-me incontestável que com o regresso à normalidade, vamos “regressar” a um mundo diferente e os próprios pequenos negócios vão mudar.
Talvez seja uma mistura entre compras online, serviços remotos, entregas ao domicílio e todas as coisas boas que podemos fazer no conforto de nossa casa com a forma de comprar dos nossos avós.
Talvez o senhor Joaquim do Talho nos passe a enviar uma newsletter mensal onde recebemos um código de desconto para convidar um amigo ou a Senhora Inês da Florista disponibilize entregas ao domicílio em Portugal e no estrangeiro ou o Senhor Francisco da oficina passe a fazer videoconferências connosco sempre que precisarmos de mudar um pneu.
Neste regresso a um mundo novo, espero que voltemos mais conscientes dos privilégios que nos pareciam garantidos. Espero que o comércio local com que tive a oportunidade de crescer durante uns largos anos da minha vida volte, de forma adaptada, para que esta nova consciência possa desfrutar de uma maior humanidade na economia e de uma pequena economia mais forte e mais humana.
E para isso, talvez nem sejam precisas grandes mudanças. Talvez apenas precisemos de mudar a forma como consumimos. Nem é preciso pararmos de comprar nas nossas marcas preferidas, apenas que da próxima vez que quiser comprar uns sapatos, saber que há pequenas marcas portuguesas de qualidade incrível a preços acessíveis, que há marceneiros que podem fazer mobília exclusiva para nossa casa ou que posso encomendar produtos frescos de pequenas mercearias.
Talvez o futuro nos traga um regresso. Um regresso a um novo grande bairro.
*João Duarte escreve segundo o antigo acordo ortográfico
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