Vem isto a propósito de uma certa sensação claustrofóbica de vivermos num tempo em que quem ocupa o espaço dito social é quem manda no mundo. E não vale a pena colocar (todas) as culpas no Donald que passa o tempo na conta de Twitter a dizer o que fez, o que vai fazer, onde vai estar na sua tour pelos Estados Unidos (sim, ele está a fazer uma ‘thank you tour’) e quando lá calha tornar num inferno a vida de pessoas que o criticam (como foi o caso do sindicalista Chuck Jones, presidente do United Steelworkers 1999, e se viu inundado de ameaças após um tweet do presidente eleito).
Mas sejamos honestos – é mesmo só o Donald? Quantas pessoas é que conhecem cuja actividade principal mais parece ser a promoção de si próprios, uma espécie de mega-campanha live 24/7? Se são pessoas sem exposição pública, o mundo dos bem pensantes simplesmente não os vê e se ocasionalmente dá por eles, limita-se ao olhar condescendente porque se tratam, naturalmente, de pessoas pouco hábeis nestas coisas modernas das redes sociais.
Mas se se trata de alguém importante (escrevam vocês o que significa importante) a coisa muda de figura. Alguns bem pensantes ironizam em privado sobre o panfleto andante. Alguns desbocados escreverão ou dirão em público algo igualmente desbocado. Mas a esmagadora maioria sorrirá, botará like, dará palmadinhas nas costas e nem terá qualquer pensamento crítico sobre o assunto.
A crítica, a acontecer, só surgirá porque o figurão que estava sempre na crista da onda um dia se espalhou. E a seguir a ser reverente e curvilíneo com alguém que aparenta estar na mó de cima a coisa mais apreciada pela mesma turba é demolir essa mesma figura e descobrir num ápice como tudo o que antes parecia certo afinal sempre esteve errado.
Há uma espécie de rolo compressor que desfaz ou torna qualquer avaliação moral algo a cheirar a mofo, fora de moda e tão rapidamente esquecida quanto a famosíssima memória de peixe que por causa da internet todos passámos a conhecer. Queremos coisas rápidas, radicais, taxativas – ou é sim ou é não e que ganhem os que fazem mais barulho.
O Trump ganhou à custa da ajuda dos russos? Que é que isso importa, ganhou, não ganhou?
Há uma série de gente a ganhar dinheiro a produzir (ou reproduzir) notícias falsas? Que é que isso importa, estão a ganhar dinheiro não estão?
Transformámos pessoas em animais encurralados, sejam nos bombardeamentos de Alepo seja nas malhas da segurança social inglesa exibida no filme de Ken Loach? Que pena, que pena, é este mundo sem coração em que vivemos (mas passemos à frente que isto incomoda).
E por cá, lembram-se da Ongoing? Lembram-se de rasgados elogios aos seus promotores? Lembram-se do Compromisso Portugal? Lembram-se das inúmeras conferências no Ritz, tantas que algumas pessoas até passaram a achar que eram do Ritz porque iam ao Ritz? Lembram-se da grupeta? Não foi assim há tanto tempo. E eram simplesmente fenomenais, extraordinários, o país devia-lhes imenso, eram imparáveis.
Depois aconteceu o que se sabe. E depois disso uns desapareceram, outros reciclaram-se e, entre apoiantes e espectadores entusiasmados, gerou-se aquele movimento circular que acontece quando atiramos uma pedra para uma grande poça de água. E os mesmos que aplaudiam e esperavam intimamente ser admitidos no “círculo da confiança” passaram de forma discreta à crítica pesarosa. Com aquela expressão de quem no fundo até já tinha tentado avisar.
Isto é assim desde que nos lembramos. É uma espécie de doença nacional. Forte com os fracos, fraco com os fortes e sempre entusiasta de figurões, tanto quanto da sua destruição. Poetas e escritores já o descreveram das mais diversas maneiras – será uma fraqueza de carácter ou simplesmente um traço da nossa natureza.
O que se torna verdadeiramente triste é que nesta fraqueza que perdura quem mostra carácter é, demasiadas vezes, alguém sozinho, quantas vezes queimado na praça pública ou, na melhor das hipóteses, simplesmente não sorteado para os lugares da lotaria. Onde os figurões ou os reverentes, em regra, mandam, até ao dia que caem e que o ciclo se reinicia, É muito cansativo.
Dir-se-á também que é efeito da pobreza – tão pobres que se pudéssemos todos éramos figurões para compensar tanta barriga vazia e tanta auto-estima em défice. Tanta gente que só é quase, como escrevia Mário de Sá-Carneiro (Um pouco mais de sol – eu era brasa | Um pouco mais de azul – eu era além | Para atingir, faltou-me um golpe de asa … | Se ao menos eu permanecesse aquém).
Ou, noutra perspectiva, como disse Maria Filomena Mónica, os portugueses se pudessem também eram todos corruptos. Pudera.
Isto na semana em que voltámos a levar com mais um banho de realidade. Durante anos – mais de uma década – a corrupção tornou-se um hábito em instituições-âncora de um sector tão fundamental como o da saúde. Parece-me difícil que ninguém tenha dado por isso. Parece-me difícil que à margem das autoridades judiciais outros não soubessem que se estava a passar algo de errado. Foi demasiado tempo, envolveu demasiados circuitos. Porque é que passou? Porque eram figurões, porque estavam bem na vida e herdámos esta coisa de não ver além das lantejoulas ou, quando reparamos, decidirmos virar a cara para o lado. Porque não podemos perder empregos – a maioria não pode mesmo – perdemos o respeito, primeiro por nós, e depois pelos outros, ou vice-versa.
Diz-se que a virtude é o hábito bom por oposição ao vício que é o hábito mau. Ambos são produto da regularidade – somos bons quanto melhor fazemos, dia atrás de dia, somos piores quanto pior fazemos, dia atrás de dia.
É um campeonato de regularidade como todas as coisas importantes na vida. Não sei se ensina a ser regular na virtude e não apenas heróis de ocasião – nisso somos incrivelmente bons.
Mas já que é Natal, e não sendo possível oferecer vouchers de decência, resta-me continuar optimista e pensar que já foi pior. Pensar que, mesmo devagarinho, mais portugueses são hoje capazes de fazer coisas nobres e difíceis – porque são nobres mesmo que difíceis.
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