1. Catherine Deneuve é um ícone de beleza do século XX, lugar comum que não serei eu a contestar. Seja como princesinha (en)cantada, mulher de dupla vida ou musa fria, enigmática, fogo que arde sem se ver — dependendo do homem que a filmou/fotografou, e foram tantos e tão diferentes —, ela cristalizará como poucas esse objecto de desejo tão conveniente, tão aparentemente subversivo mas afinal conservador, tão útil na manutenção do status quo, que é a senhora-na-sala-puta-na-cama. Aquela mulher toda-imagem mas que se adivinha carnal, sem demasiada autonomia nem demasiada revelação, a que faz sonhar, excita, conforta, perpetua esse desejo. A que de certa forma existe em função do homem heterossexual, da imagem que ele tem de si enquanto conquistador. Ou seja, a que vive para ser eternamente desejada.
Talvez pouco disto corresponda ao que Deneuve é fora das câmaras, nem seria humano, nem é isso que está em causa. Falo de como as suas imagens públicas formam uma ideia de mulher, apurada pelo que escolheu mostrar e dizer, ou não mostrar e não dizer. Uma construção com décadas em que se enquadrou e foi deixando enquadrar.
E, de certa forma, o actual manifesto — que Deneuve não redigiu mas de que aceitou ser a cabeça-de-cartaz — é uma espécie de corolário de tudo isto. Deneuve é a prisioneira de uma moldura. Para sempre bela, e, até hoje, prisioneira. O que ela faz no manifesto é, ainda por uma vez, mais uma vez, servir o clichê da sedução masculina. Apaziguá-lo, dar-lhe alento neste tempo em que tudo o acossa. Dizer, com todo o seu lastro de musa-objecto: queridos homens, nós, que não vos odiamos, que gostamos de sexo, estamos convosco, pela liberdade.
2. O manifesto é curto — pode ser lido no original aqui, mas entre a sem-noção e a distorção sobra pouco a que dizer: sim, senhoras.
A sem-noção mais espantosa é que estas mulheres — francesas, artistas, intelectuais, burguesas, ou seja, maioritariamente, se não integralmente, privilegiadas de várias maneiras — falam como se milhões de mulheres em todo o mundo, com infinitamente menos recursos e menos acesso a tudo, educação, saúde, segurança, justiça, não fossem diariamente alvo de um abuso que assenta na desigualdade concreta e ancestral entre homens e mulheres. Centenas de milhares com certeza mesmo debaixo do nariz delas, na fábrica, na loja, na rua, na cozinha. Sem-noção, sem foco, sem prioridades: a displicência, aliás, a futilidade deste manifesto é patética. Solidárias com os homens que já não têm “a liberdade de importunar”? Sério? Será do tédio? Do excesso de psicanálise francesa?
A liberdade de que a fraternidade está tão ausente é uma estranha liberdade, mas neste caso parece-me ser apenas o reflexo de uma prisão, mulheres encapsuladas na sua classe, no seu mundo, na sua herança histórica, sem capacidade concreta de transferência — para usar um termo que lhes é familiar —, e sem visão. Arcaicas não por terem rugas e sim por perpetuarem o velho fazendo-o passar por novo.
Mas essa é só uma das confusões da distorção geral.
3. Violação é crime, começam por reconhecer as signatárias. Mal seria que não reconhecessem, claro. Embora, sabendo um pouco mais de quem redigiu o manifesto, não fosse assim tão claro. Uma das cinco redactoras, Catherine Millet — influente crítica de arte que vendeu milhões com “A Vida Sexual de Catherine M.”, relato autobiográfico, ou autoficção, das suas orgias, sexo com estranhos e muitas outras peripécias — lamentou não há muito tempo, numa entrevista, não ter sido violada. A ela, francesa, dona do seu corpo, faltou-lhe essa experiência, essa afirmação de como seria capaz de superar isso, porque ela não é uma fraca, uma das que se queixam, uma vítima. E, ao fim da noite, ou ao começo da manhã, ou quando bem lhe aprouver, voltará aos lençóis brancos bordados da sua cama francesa, a mesma em que se deixou fotografar ao lado do marido, cúmplice de aventuras sexuais. Tudo muito francês, e o vinho é sempre óptimo, e a arte, já se sabe.
“Esse é o meu grande problema, lamento muito não ter sido violada. Porque poderia testemunhar que a violação se supera.” Catherine Millet dixit, tanto quanto li. No segmento “best-seller de choque” continua em forma. Terá pensado o que sente uma mulher violada que leia isto? Terá realmente pensado que a estaria a fortalecer? Passou-lhe pela cabeça que, além de violada, ela ainda se sentisse uma incapaz, visse como não era nenhuma Catherine Millet, nenhuma atleta da superação. Talvez nascendo de novo, dessa vez branca, europeia, francesa, poderosa, rica, interessante, para não dizer bela. Millet não herdou a fortuna genética de Deneuve, mas foi afortunada o bastante para ter prazer em publicar os seus nus em nova.
Seja como for, independentemente do que Millet disse sobre violação, as signatárias do manifesto afirmam que violação é crime. E, sim, são contra “violências sexuais” exercidas por “certos homens” “nomeadamente no contexto profissional”, declaram. Até aí vêem benefícios nas denúncias em Hollywood contra o produtor Weisntein. Mas o problema é que há um grande “mas”, e o manifesto na verdade é sobre esse “mas”. Esse mas é que as denúncias tiveram coisas boas mas deram origem a uma “caça às bruxas”, uma perseguição “puritana”, uma “atmosfera totalitária”.
Por exemplo, se violação é crime, já o assédio, mesmo insistente, não é. E vão por aí fora, defendendo a “liberdade de importunar”, e os homens que estão a ser prejudicados na sua vida profissional, quando nada fizeram de errado, “apenas” falaram de “coisas íntimas num jantar profissional” ou “enviaram mensagens de conotação sexual” a mulheres que não as desejavam. “Apenas” coisas destas, e “acidentes em que o corpo da mulher é tocado” não devem fazer das mulheres vítimas, dizem as signatárias. Essa vitimização da mulher, essa obsessão com o assédio vem de um feminismo com “ódio aos homens e à sexualidade” que só favorece os extremistas religiosos e os reaccionários, dizem as signatárias.
E, prosseguindo a confusão, citam exemplos de reaccionarismo em curso, com obras de arte atacadas em museus, exposições acusadas de obscenidade ou pedofilia. A “liberdade de importunar” é “indispensável à liberdade sexual”, tal como “a liberdade de ofender”, filosoficamente, é “indispensável à liberdade de criação”, declaram.
4. Sim, entre todos os nãos do manifesto digo este sim: a liberdade de ofender é indispensável à liberdade de criação. E sim, há um reaccionarismo em curso, uma vaga puritana que ameaça todos os criadores, contra a qual já escrevi e voltarei a escrever. Mas misturar isso com assédio sexual é um dos sinais de como as musas francesas não parecem entender o que está em causa, e a quem este capricho de manifesto serve.
Serve por exemplo a quem não só pensa como diz: estão a ver como isto do assédio é uma treta de gajas feias, ou mal comidas, ou fufas, coitadas. E hoje dirá um pouco mais alto do que ontem porque até a Deneuve e mais 99 francesas estão a dizer que isto do assédio não é crime, e coitados dos homens que até podem perder o emprego, e bocas sexuais e mensagens sexuais e toques no corpo tudo bem, é liberdade de expressão, de importunação, allons enfants de la patrie, siga, siga, siga!
5. Odiar os homens e a sexualidade não é ser feminista, é ter um problema, e um problema que requer ajuda. Não sei que feminismo é esse, certamente não o meu.
O meu problema com os homens é outro, de certa forma contrário. É o problema de eles serem poucos para as mulheres que gostam de homens, ou sobretudo de homens. Poucos, quero dizer, literalmente, numericamente poucos para as mulheres interessantes, atraentes, disponíveis mais ou menos na mesma faixa etária (mais dez anos, menos dez anos, um intervalo de vinte anos, digamos). Que estou a dizer? Que há menos homens interessantes, atraentes e disponíveis do que mulheres interessantes, atraentes, disponíveis, especialmente quando a faixa etária se aproxima do/ultrapassa o limite fértil feminino? Sim! Digo eu e todas as mulheres hetero ou sobretudo hetero que conheço. Não mulheres que odeiam sexo e homens, mas mulheres que adoram sexo e homens! Incrível, não é? Pois é. E o mais incrível é que a gente muda de país, de continente, mas isso tende a repetir-se. Claro que podemos fazer sempre como Catherine M., que foi para cama com tanta gente que até achava desatraente, e tantas/tantos de nós poderão dizer que já o fizeram. Nada contra, cada um sabe de si até onde não sujeitar o outro contra vontade. Fobias, filias, parafilias, nada contra nada desde que a relação de poder seja justa. Na filosofia e na prática quero ser livre de me afundar no masoquismo, até dar um tiro na cabeça, em última análise. Quero ter poder sobre mim, incluindo o de acabar comigo. Mas não quero que ninguém tenha poder sobre mim se essa não for a minha vontade.
Mulheres eternamente vítimas, necessitadas de protecção, infantilizadas pelo medo dos homens, ou do sexo mau, também não é feminismo, pelo menos o meu. É confusão, distorção, estratégia de diversão.
6. Caras 100 — cem — do manifesto encabeçado por Catherine Deneuve: viva a liberdade de importunar, sim. Cada ser humano é absolutamente livre de se transformar num criminoso, assediador, violador, homicida. E viva a lei que protege o colectivo dessa escolha individual. Viva a lei que não permite insultos racistas, homofóbicos, xenófobos, machistas. Esses insultos não são liberdade de expressão como assédio não é liberdade individual. São abuso. Mas o que vocês escreveram foi que um indivíduo é livre de abusar de um outro, e que isso não tem qualquer relação com a justiça, enquanto garante de uma vida colectiva. Não querem a liberdade com responsabilidade, mas a simples irresponsabilização dos homens. E às mulheres, desde crianças, querem que se diga: aprendam a defender-se. E quando crescem: mas não és crescida, não sabes defender-te? Como a vergonhosa juíza do caso Bárbara Guimarães/Manuel Maria Carrilho.
Sim, é bom que todos — todos — aprendam a defender-se, e sejam fortes, sagazes nesta selva. Mas a justiça existe para que uns não achem que podem continuar a pôr a pata em cima dos outros, só porque sempre foi assim desde o neandertal.
Em suma, e à laia de manifesto alternativo ao das 100: queridos homens, nós, feministas, que não vos odiamos, que gostamos de sexo, estamos com a liberdade e queremos estar convosco. Resta saber onde vocês estão.
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