A Superliga do futebol europeu, fechada, com lugar reservado permanente para 15 clubes que são colossos em poder financeiro e outros cinco escolhidos ano a ano, despreza a qualificação em campo como requisito para a participação de todos. Vira costas ao conceito de mérito.
É assim que o modelo do mais popular espetáculo desportivo está ameaçado por gente que quer fazer dinheiro, mas que deve desprezar o futebol como divertimento. Estamos perante mais um golpe no que resta do espírito desportivo na indústria do futebol.
Bruscamente, os grandes clubes ingleses, espanhóis e italianos entraram em curto-circuito com a maioria dos outros na Europa: os alemães, os franceses e todas as médias potências da bola, com Portugal também neste grupo. Tudo tem em fundo a venda dos direitos de transmissão dos jogos e o extraordinário disparo dos dinheiros que nas últimas décadas passaram a girar em torno da indústria do futebol, com enriquecimento de dirigentes, empresários, agentes de jogadores e alguns jogadores.
O que rebenta agora é mesmo uma guerra comercial que se serve do futebol. Os galácticos interesses do negócio em torno do espetáculo mobilizaram esta rebelião de 12 clubes da elite inglesa, espanhola e italiana e, neste 19 de abril, abriram esta guerra. Sem que se vislumbre armistício.
Estamos perante um choque que faz explodir o sistema que tem feito funcionar o futebol europeu.
Tudo se precipitou com o anúncio de que a UEFA iria remodelar a Champions, com aumento do número de jogos para deste modo aumentar as receitas pelas transmissões desses desafios.
Alguns empresários, designadamente Florentino Perez do Real Madrid, Andrea Agnelli da Juventus e a família Glazer do Manchester United, há muito que planeiam mudar o modelo do negócio com o futebol de clubes na Europa. Pretendem substituir a Champions por uma nova prova, dirigida diretamente por eles, sem a UEFA, e segundo o modelo do basquetebol profissional americano. Apresentam-se como a Superliga. Com ela, esperam conseguir receitas colossais.
Perante o anúncio de que o Comité Executivo da UEFA iria revelar esta segunda-feira um novo modelo de Champions, com 36 clubes, portanto obrigando todos, incluindo aqueles mais poderosos, a um maior número de jogos por temporada, designadamente com clubes médios e pequenos, os empresários que comandam a Superliga decidiram a jogada de antecipação e abriram a guerra de independência. Guerra contra a UEFA e contra a maioria dos clubes que lutam nos diferentes campeonatos nacionais por um lugar na Champions ou na Liga Europa.
Os fundadores desta Superliga de rebeldes independentistas são, por agora, 12, encabeçados pelo Real Madrid. O peso maior (seis) no grupo é inglês: Manchester United, Manchester City, Liverpool, Arsenal, Chelsea e Tottenham. Juntam-se três italianos (Juventus, Milan e Inter) e outros tantos espanhóis (para além do Real Madrid, o Barcelona e o Atlético de Madrid). Estes 12 pretendem convencer Bayern de Munique, Borussia de Dortmund e PSG a juntarem-se ao grupo fundador. Querem que estes 15 sejam clubes permanentes na Superliga, sem dependerem de qualquer qualificação, e planeiam que a competição envolva 20 clubes, divididos por duas séries de 10. Os outros cinco clubes admitidos no torneio aparecem neste modelo dependentes de qualificações anuais em campo.
Os rebeldes querem, portanto, deixar a Champions para os pobres e remediados e terem para eles um campeonato europeu dos ricos. Eles são 15, têm lugar cativo e dispõem-se a, em cada época, deixarem que cinco clubes do povo clubista se juntem à festa deles.
A liberdade permite a cada um escolher o seu caminho. Os empresários destes 12 clubes da Superliga têm o direito a fazer o que entenderem que lhes dá mais lucro. Mas seria de esperar que tivessem em conta o adepto, neste caso, como cliente. Os adeptos dos clubes deles talvez até simpatizem com a ideia, mas há uma maioria europeia que necessariamente está contra.
O FC do Porto é participante frequente na Champions. Passaria a ter uma porta muito mais estreita para conseguir chegar à competição dessa alta roda. O mesmo para Benfica, Sporting ou qualquer outro clube português com aspirações. Também muito encolhidas as possibilidades de acesso de clubes como o Ajax, o Anderlecht, o Lyon, o Marselha, o Nápoles, a Atalanta, o Salzburgo, o Sevilha e tantos, tantos mais.
Os colossos na Superliga contam com grandes lucros através da venda dos direitos de transmissão dos jogos deles pelos quatro cantos do mundo. Mas secam o campo das receitas para a maioria dos outros clubes. Parece evidente que o futebol fica mais pobre.
O futebol vive das emoções e os adeptos não gostam de ser hostilizados. É natural que os adeptos destes clubes entrem em protesto. Eles, os adeptos, também são consumidores nos mercados. Não surpreenderia se virassem o protesto contra os outros negócios dos empresários dos clubes.
Florentino Perez, presidente do Real Madrid que aparece como cabecilha desta rebelião, é o presidente da ACS, Actividades de Construcción y Servicios, grupo que se dedica ao imobiliário, à construção de autoestradas e às comunicações em geral. Estará menos exposto a boicotes que Agnelli, presidente da Juventus e um dos patrões do grupo de fabricantes de automóveis Fiat/Chrysler que até está em processo de casamento com a Peugeot. Será que os estrategos deste grupo aprovam a jogada de Agnelli?
Há uma realidade: quase todos estes clubes que desencadearam a rebelião da Superliga estão em grande buraco financeiro. Não souberam gerir a espiral em que o negócio se meteu. Será que vão saber conduzir este golpe? Será que perceberam que o futebol na Europa tem uma tradição e filosofia totalmente diferente da que move a NBA americana. Perceberam que o futebol é espetáculo, é entretenimento, é divertimento e mexe com paixões?
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