Na obra-prima de Ford, John Wayne encarna a mais assustadora personagem da sua carreira. É hábil, corajoso e cheio de outras notáveis qualidades, mas todas elas ficam abafadas pelo ódio que grassa o corpo do cowboy. O racismo doentio que sente pelos índios comanche (ou “nativos americanos comanche”, como a correcção política nos ensina hoje a designá-los) chega a ganhar contornos macabros. Numa cena em particular, Ethan (personagem de Wayne) dá provas de frieza tão aterradoras que percebemos que este ódio transcende a vida. Ele odiava para lá da morte. Ao encontrar um túmulo comanche, decide disparar sobre os olhos do defunto. Segundo a tradição nativa, a alma passaria assim a vaguear atribulada por toda a eternidade. Aqui se vê o cúmulo do ódio: Ethan forçou-se a respeitar o costume religioso do índio só para poder desrespeitar-lhe a alma.
Não é uma das cenas mais citadas; nem sei, sequer, se os demais apaixonados pelo filme a acham tão marcante e importante como eu acho. Podia ter-me escapado, pois frequentemente banalizamos o que é incómodo - é nessa distracção que conseguimos uma convivência sã com aquilo que não é são. O ódio dedicado, como o de Ethan, é um incómodo óptimo de ignorar-se. O racismo que respeita as tradições das pessoas que queremos desrespeitar é óptimo de ignorar-se. Quem não conhece, por exemplo, a prática mantida em alguns estabelecimentos comerciais que, para afastar clientela cigana, exibem sapos de louça? Quem nunca ignorou esses batráquios? Lá está de novo: dedicação à tradição do outro só para despeitá-lo. É o pleno manuseio dum costume de alguém em quem não queremos sequer tocar. Isto atira-me para uma viagem cinematográfica; vou parar a uma fita muito diferente.
O outro filme começa com uma lenda. Dir-se-ia até que é uma fábula, não faltando fantasia e expectativa de aplicação moral. Leonor Teles, filha de pai cigano e realizadora desta curta-metragem, abre com a tal fábula e situa-a num tempo que precede a existência de seres humanos (e por isso os condiciona fatidicamente). É a história dum sapo, e de como a sua fealdade alvoroçou a harmonia que imperava na Natureza. Por se ver indesejado, vingou-se e envenenou o mundo; tornou tudo incompatível, fadou-nos à incompreensão uns dos outros. Com esta fábula de resultados babélicos, Leonor expõe a mitologia que tornou os ciganos avessos à figura do sapo. Mas o alcance da história é intuitivamente maior, e reporta para um momento eterno (desde sempre, e para sempre) em que a pessoa diferente de nós deixa de ser “o nosso próximo”, ou “o nosso semelhante”, e passa a constituir-se como “o outro” – aquele que jamais compreenderemos; aquele cujo veneno ancestral nos faz odiar. O inimigo.
“Balada de um Batráquio” – assim se chama esta curta-metragem – passa depois para o seu momento mais sério e interventivo, curiosamente também o mais cómico. É como se de um slapstick dos 3 Estarolas se tratasse: Leonor, à frente das câmaras, começa a entrar dentro de lojas onde se encontram os degradantes sapos de louça; rouba-os, foge e parte-os ruidosamente contra o chão mal abandona os estabelecimentos. São supermercados, pronto-a-vestir, farmácias, salões de beleza ou agências de viagens. Sítios normais, porque o preconceito é a normalidade. Sítios onde se pressente aquele ódio dedicado, perfeito para ser ignorado de tão incómodo que nos devia ser.
Se os ciganos têm fama de marginalidade, Leonor quer o proveito. Tal como os comerciantes que usaram a mitologia cigana contra os ciganos, a realizadora usa a ideia estabelecida do cigano delinquente contra quem perpetua essa ideia. Rouba e destrói. Contra o ódio dedicado arremessa intervenção dedicada. São espelhos que se partem, não só sapos.
As imagens finais do filme, sem intervenções ou efabulações, deveriam ser as mais reais, mas não. Vemos o casamento dos pais da jovem cineasta - um homem cigano com uma mulher “branca”. O testemunho da convivência possível, compatível e perfeita, está ali naquele matrimónio; está, sobretudo, na tão simples existência da realizadora. Antes de partir batráquios de louça, já Leonor era uma intervenção viva que quebrava a maldição. O vídeo antigo do casamento do casal é acompanhado pela voz recente da filha. Narra um final feliz, em jeito de profecia, sobre o fim da danação do sapo e um futuro de sã coexistência entre as pessoas. Esta parte final deveria ser a mais real, mas não. Infelizmente não.
Podem achar-me pouco avisado. Falar de cinema a reboque duma discussão tão premente, tão sensível, abona pouco a meu favor. Garanto que não é carolice, é mesmo necessidade. Se o que despoletou esta polémica gitana foram palavras, palavras que magoam ao generalizar, então a minha necessidade é ter palavras que aliviem ao particularizar. O erro de André Ventura, candidato à Câmara de Loures, não foi falar em criminalidade, em impunidade, em subsidiodependência ou em casamento com crianças. O erro foi a generalização, o caracterizar todo um grupo étnico pela invariabilidade do seu mau comportamento. Eu, que até torço muitas vezes o nariz a algumas cautelas lexicais que o politicamente correcto exige, confesso-me melindrado pelos termos escolhidos por André Ventura. Não identificou problemas na comunidade cigana, identificou problemas ciganos. Acorrentou um mau comportamento a uma etnia, como um sapo que cospe maldições venenosas.
Não pretendo branquear situações graves, nem negar a expressão forte que têm nas comunidades ciganas. Não defendo sequer a inacção, a contenção policial ou a fuga ao debate, muito pelo contrário – o racismo é que inquina logo a validade dum debate sério. Os problemas existem, são graves e estão enraizados. Agora, por muito gritante que seja a estatística, nunca é mais ensurdecedora que a generalização. Números, estigmas e preconceitos, tudo no mesmo saco, lembram-me tatuagens em campos de concentração nazi. Para além disso, há o factor pedagógico e incentivador, características a que nenhum candidato autárquico deveria poder furtar-se. O foco exclusivo nos piores é um desincentivo à influência dos melhores. De que valeria aos bons ciganos serem exemplo se o mau rótulo é inevitável?
É cultural, dizem-nos. É tradição deles serem assim, garantem-nos. Então e nós, impolutas pessoas brancas do impoluto Ocidente? Não temos nós conseguido erradicar tanto mau hábito, tanta má tradição ao longo da história? É fácil: extirpámos culturas nocivas porque tivemos espaço para isso, porque não vivemos subjugados pelo preconceito. Sem a algema opressiva da generalização, as mãos ficam mais afoitas a arrancar ervas daninhas.
Por isto se tornou necessário falar de cinema, especificamente da Leonor Teles: cigana como milhares de ciganos, e talentosa como poucos portugueses. Não é a prova de que devemos ter esperança de coisas melhores num grupo étnico, é a prova de que coisas melhores já lhes são características. Não é o contrapeso criativo para o fardo delinquente (não pode haver pratos de balança para etnias, isso parece a própria definição de racismo). A Leonor é uma das melhores de nós, esse “nós” que também engloba o “eles”. Por ela, por nós e por eles, há uma lisura nas palavras que se exige, mais do que se recomenda. Somos tão veementes a ordenar uma profunda mudança de comportamentos e não somos capazes de mudar uma superficial maneira de falar?
Para os que dizem que os ciganos são criminosos, e o justificam com dados estatísticos, deixo aqui outra matemática: o número de ciganos portugueses, per capita, que já ganharam um Urso de Ouro em Berlim é astronomicamente superior ao número de portugueses não ciganos, per capita, que obtiveram esse troféu. Se é para serem subsidiodependentes, que o sejam também dos subsídios do ICA.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Em dia de vergonhosa auto-promoção, ou lambe-botismo interno, não posso deixar de recomendar um sapo que não é para quebrar.
Vou contrariar o Fernando Pessoa. O melhor do mundo não são as crianças. É o torneio de pares feminino em Wimbledon.
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