É o resultado da pandemia, dizem. De facto assim é, mas a pandemia só chamou a atenção para uma componente de consumo de que ninguém se lembra quando vai comprar um carro ou um par de meias: a cadeia de distribuição.
Peguemos, por exemplo, num produto simples, o par de meias. Esperamos encontrar facilmente meias azuis de algodão, sem pensar muito como é que elas chegaram ao escaparate da loja. O algodão é produzido no Egipto (se for da melhor qualidade) ou na China (se for de qualidade assim-assim). Já agora, os maiores produtores do mundo são, por esta ordem, a China, a Índia, os Estados Unidos e o Brasil.
Depois, o algodão tem de ser processado, no mesmo país onde foi produzido ou, muitas vezes, noutro — que provavelmente não será o destino final. Em seguida o fio é colorido com um corante que pode ser de onze tipos diferentes que serão produzidos na Grã Bretanha ou na Alemanha, por exemplo.
Segue-se a tecelagem das meias, provavelmente feita em Itália ou na Turquia. A marca das meias, se forem finas, é com certeza uma daquelas de fama internacional, como a norte-americana Calvin Klein ou a japonesa Tabio. (Pode não conhecer a Tabio, mas fique sabendo que um par de meias deles fica pelos 25 euros e não há em Portugal). Finalmente, a marca distribui as meias através de importadores e armazenistas, até chegarem à loja.
Agora imagine a complexidade da cadeia de distribuição de um par de meias. Quantos transportes, de avião, barco e camião, quantos países, quantos intermediários. Imagine um contentor, cujo tamanho padrão é cerca de 2,3 x 2,3 x 6 metros, cheio de caixotes, cada um com uma quantidade de bobines de fio de algodão, ou galões de corante, ou caixas de meias. Quantos contentores destes produtos circulam entre os cinco continentes? Actualmente, há 14 milhões de contentores a circular dentro de cinco mil navios nos portos deste mundo. Os contentores também viajam de comboio e de camião, e depois de abertos o seu conteúdo pode ser dividido em caixotes e caixas por camiões, carrinhas, etc.
Isto, para um par de meias. Agora tente imaginar a cadeia de distribuição de um automóvel...
Ora bem, as cadeias de distribuição sofrem de uma condicionante que se chama de “efeito chicote” (Bullwhip), estudado desde meados do século passado. Para resumir uma longa história, tal como um pequeno movimento de mão com o cabo de um chicote provoca uma onda enorme na sua ponta, também nas cadeias de distribuição qualquer pequena variação na procura, ou na oferta, provoca efeitos exponencialmente maiores no final – no consumidor, ou no produtor.
O produtor, ou o dono da marca, ou o distribuidor, têm de prever as variações de procura por parte do consumidor. Algumas são evidentes: as pessoas compram mais no Natal, seja o que for. Certos produtos têm mais procura no Verão, ou no Outono. Uma campanha de publicidade também deve provocar aumento de vendas.
Depois há os efeitos inesperados, como uma moda que surge, disparada por influencers, inadvertidamente; ou, no caso presente, uma pandemia que põe toda a gente em casa. O papel higiénico dispara, os vestidos de noite enchem-se de traça nas vitrines...
Estas variações, em muitos casos (estamos a falar na generalidade de TODOS os produtos, desde máquinas industriais a frangos) são amortecidas pelos stocks armazenados em vários pontos da cadeia. Mas, onde é possível, sobretudo com componentes caros e complexos (caso dos automóveis) foi inventado um modelo de gestão miraculoso, o chamado “just in time”, que quer dizer que um fabricante só recebe os componentes do seu produto à medida que precisa deles, para não ter de os armazenar e pagar por eles antes de os usar. Daí “just in time”: “mesmo a tempo”.
Se aparece uma procura inesperada, ou a falta dela, está tudo tramado.
Só para se ter uma ideia — temos sempre de usar exemplos pontuais, pois os casos são aos milhões —, o aperto é tanto que os navios passaram a carregar 7.000 contentores, quando antes da pandemia carregavam 4.000. O resultado é que os portos, que não podem ser adaptados instantaneamente, estão completamente cheios de contentores e têm centenas de navios à espera para descarregar.
Na gigantesca indústria da moda, que depende de fornecedores asiáticos, o Natal parece perdido. Nas fábricas do Vietname, o segundo maior produtor mundial, depois da China, a pandemia só bateu forte agora, em Setembro, e está tudo parado. Não se espera que os trabalhadores voltem para as linhas de produção antes de Novembro, tarde demais para que os produtos cheguem às lojas a tempo para o frenesim comprador do fim do ano.
Quanto à indústria automóvel, espera-se uma redução de 60 mil milhões de dólares na produção devido à falta de chips — os semi-condutores são feitos em Taiwan. Só a Honda e a Nissan esperam produzir menos 250.000 carros até Março. A crise afectou indirectamente o sector de aluguer de carros; as empresas venderam os que tinham quando a pandemia reduziu as viagens e agora não conseguem repor as frotas. Sem carros para alugar no destino, as pessoas reduzem as viagens ao mínimo, o que atrasa a recuperação das companhias de aviação, que por sua vez compram menos aviões – aliás, não há aviões para vender, porque também dependem dos semicondutores.
As falhas na produção causaram uma redução no consumo, sobretudo devido ao efeito chicote nas cadeias de distribuição, que são pouco elásticas, como se diz em economia – são lentas a adaptar-se a mudanças.
Da próxima vez que (conseguir) comprar um par de meias, visualize um navio com sete mil contentores e tenha mais consideração por elas!
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