Como membro da equipa responsável pela Comunidade Vida e Paz, sobejamente conhecida pelo trabalho em prol das Pessoas em Situação de Sem Abrigo (PSSA), tendo em vista a criação de condições para estas mesmas recuperarem a dignidade como Pessoas, e também da equipa responsável pela gestão do Centro Social Paroquial de Nossa Senhora da Luz, uma IPSS com respostas sociais, prioritariamente, na área das Pessoas Idosas, fui confrontado com o advento da presente situação pandémica.

Duas realidades, atingidas pela situação pandémica, embora com traços diferentes, mas as duas caracterizadas pelo cuidado a Pessoas em situação de debilidade social, económica e de saúde.

Antes de referir as consequências da pandemia, gostava de enquadrar a realidade vivida pelas duas instituições, que será genericamente a mesma das instituições congéneres. A Comunidade Vida e Paz, apesar do carinho do senhor Presidente da Republica a esta causa, vive momentos difíceis, o que é partilhado pelas restantes instituições similares, pois os custos do acolhimento e tratamento das pessoas que nelas confiam têm tido um aumento constante, não compensados pela atualização dos protocolos com o Ministério da Saúde, que, apesar de a própria legislação o prever, não acontece desde o ano de 2008.

Antes da situação pandémica, a realidade das IPSS que acolhem e cuidam de pessoas idosas caracteriza-se por uma nova dinâmica em termos de saúde física e mental, que pode ser genericamente classificada em três grandes grupos: pessoas com alguma autonomia física e mental; pessoas com grande dependência física; pessoas com doenças do foro neurológico que exigem cuidados de uma equipa médica mais alargada não sendo estas instituições equipamentos de saúde.

Deparávamo-nos também com grandes dificuldade, nomeadamente na contratação de pessoas com vocação para cuidadoras, devido à dureza física e psicológica que implica ser cuidador(a); dificuldades financeiras devido ao grande aumento dos custos, em especial com pessoal, devido ao aumento legal e justo dos ordenados, que não tem sido compensado com o aumento das receitas, quer por impossibilidade das famílias, quer das insuficientes atualizações dos valores protocolados com a Segurança Social. A percentagem de cobertura das despesas tem descido todos os anos, como o comprovam os estudos académicos realizados.

Uma outra característica comum às duas instituições é a sensação de abandono pela entidade que representa e deveria defender as IPSS — a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) — que nas negociações com o governo, ou com os sindicatos mais parece querer levar as IPSS à insolvência, o que temo que irá conseguir.

A Pandemia

Com a pandemia, em março de 2020 assistimos e vivenciámos um tempo de incerteza e de angústia, que a todos afetou.

Na Comunidade Vida e Paz assistimos a um extraordinário movimento de solidariedade, por parte dos nossos voluntários e dos nossos benfeitores, em resposta ao grito de pedido de ajuda das PSSA, que inicialmente ficaram sem apoio na rua. Este movimento de solidariedade permitiu garantir a e aumentar os serviços de apoio às pessoas, muitas delas a passar fome, e manter os serviços Técnicos de Rua e nas Comunidades Terapêuticas e de Inserção.

No Lar de Nossa Senhora da Luz a pandemia afetou especialmente os utentes, quer pela suspensão das visitas, quer pela “nova” forma de as cuidadoras cuidarem — e se anteriormente a boa prática eram os gestos de carinho e a proximidade, tudo isso teve que ser esquecido e trocado pela segurança do distanciamento. Numa forma diferente de cuidar, mas muito difícil para todos os envolvidos, pela dificuldade de vivenciar o carinho e o amor.

Outras consequências

Na Comunidade Vida e Paz, a consequência mais problemática, curiosamente, foi a diminuição do trabalho dos serviços públicos, que impossibilitaram que muitas dezenas de PSSA fossem acolhidas nos diferentes Centros Terapêuticos. De facto, os processos administrativos e burocráticos ficaram, temporalmente, muiiiiito loooongos, impedindo as admissões e a dispensa dos cuidados que essas Pessoas necessitam e que estamos em condições de prestar. Infelizmente as propostas feitas para aligeirar o processo administrativo, centrado na necessidade e no bem das PSSA ainda não foi tido em conta pelos serviços públicos. Como consequência, só na área metropolitana de Lisboa, cerca de uma centena de pessoas, muitas já desesperadas, continuam a aguardar colocação em comunidade terapêutica.

No Lar de Nossa Senhora da Luz, além da dificuldade de adaptação a uma nova forma de cuidar, sentiu-se uma outra, a de manter o foco na prevenção e segurança para impedir a entrada do vírus e que infelizmente não conseguimos. Acresce a preocupação dos órgãos dirigentes com a sustentabilidade financeira, abalada com o enorme acréscimo de custos em equipamentos de proteção individual.

Um olhar sobre as medidas tomadas no País

Nos diferentes contactos com muitas entidades, em todas trespassa uma dedicação das pessoas em encontrar e implementar as melhores medidas para diminuir os efeitos da covid-19. A vivência do surto que sofremos no nosso lar, que aconteceu no mês de agosto de 2020, demonstrou essa dedicação, em especial da equipa de cuidadores, mas também de todas as entidades envolvidas. O que não quer dizer que as medidas preconizadas não pudessem estar mais afinadas. Por exemplo, apesar da existência de outros surtos que já haviam ocorrido no país nos meses anteriores, ficámos com a clara sensação de que não havia sido feito um trabalho de análise das boas/más práticas, com a consequente divulgação dos ensinamentos colhidos pelas autoridades de saúde publica, de forma a dotá-los de maior capacitação para lidarem com os surtos, que inevitavelmente ocorreriam na sua área de ação.

Foi um pouco com a nossa contribuição, na partilha da situação vivida, que os serviços públicos criaram as Brigadas de Intervenção Rápida, pois as instituições necessitam de um apoio imediato especialmente nos primeiros 15 dias do surto, quer em cuidadores, quer especialmente na área médica e de enfermagem.

Tendo estado no meio do surto, vivendo-o, dia a dia, foi com imensa perplexidade que assisti à divulgação de pretensos relatórios/auditorias referentes a surtos em lares. Esses relatórios/auditorias pecam por terem sido realizados por quem está sentado à secretária a conferir se a legislação e as normas em vigor foram aplicadas, ou seja, pecam pela ignorância em relação à realidade no local. De facto, um surto desta dimensão não está previsto em qualquer normativo, tem um dinamismo próprio que muda de hora a hora, em que só quem o viveu o compreende. Não há Plano de Contingência que valha, nem enviar relatórios diários às entidades resolve os enormes problemas com que as equipas dirigentes e técnicas se debatem. Só estando no terreno é que alguém está em condições de confrontar as normas com a realidade e provavelmente adaptar a legislação a essas situações muito especificas.

Outras decisões tomadas a um nível macro aparentam um grave condicionamento, provocado por uma visão ideológica da sociedade, que tem tido consequências graves para a população.

Vejamos, apesar do muito desconhecimento sobre o vírus, era evidente a sobrecarga sobre os serviços de saúde, já com dificuldades em responder às necessidades da população. Era por isso óbvio que todo o Sistema Nacional de Saúde (SNS; Sector Social e Privados) deveria ser mobilizado e coordenado para responder às necessidades da população, seja no que se refere às pessoas contaminadas com o vírus, seja nas outras morbilidades. O grande aumento de pessoas mortas, as consultas médicas preventivas e curativas adiadas, as cirurgias que não se realizaram, seriam em número bem menor se esta coordenação tivesse sido atempadamente planeada e realizada.

Também o Plano de Vacinação parece ter sido feito sem o devido cuidado, sabendo-se que previsivelmente a vacinação se iniciaria em janeiro de 2021, é inconcebível que os lares tenham recebido a solicitação de envio das listagens de pessoas a vacinar no final de dezembro, com parecer médico individual e 48 horas para responder — exemplo claro de falta de planeamento e com as consequências que se conhecem.

Sobre esta problemática, a visão ideológica sobre as IPSS, como tendo origem na sociedade civil, sem o “controlo ideológico” do Estado, foi evidente no caso da vacinação dos seus dirigentes que estão presentes sete dias por semana, quer ocorram ou não surtos de covid. De facto, ao vacinarem-se os utentes e os “trabalhadores” o que se pretende é proteger as Pessoas Idosas do contacto com pessoas não vacinadas, independentemente do vinculo laboral; aliás as pessoas que vislumbro como mais “perigosas” para contaminarem as Pessoas Idosas não são trabalhadores da instituição, mas sim prestadores de serviço, como os enfermeiros que têm muitos contactos extra instituição, ou a fisioterapeuta que trabalha em diferentes locais e com contacto direto com a Pessoa Idosa.

O Futuro

Não podemos mudar o passado, mas podemos aprender e preparar melhor o futuro para responder de forma mais eficaz aos seus desafios que, no que diz respeito à pandemia, e apesar do muito conhecimento adquirido, ainda se apresenta com elevado nível de desconhecimento: serão as vacinas eficazes? Estaremos protegidos, mas podemos contagiar? Será necessário uma vacinação anual, a exemplo da vacina da gripe? Será necessário continuarmos confinados com as consequências inerentes ao nível da pobreza e da saúde mental? Tantas interrogações!

É fundamental prepararmos o futuro, pois as consequências económicas para o país são devastadoras, com o aumento das situações de debilidade social, económica e da própria saúde mental. Para isso, é necessário olharmos para o País no seu todo e sem preconceitos ideológicos, integrarmos todas as sinergias para fazermos face a esses desafios.

Utilizar o Sistema Nacional de Saúde para cuidarmos das pessoas. Recorrer às IPSS, por constituírem, por excelência, uma rede de proximidade para chegar às pessoas mais necessitadas, mas dando-lhes as indispensáveis condições, não esquecendo que nos últimos anos ficaram exauridas financeiramente.

Depois de tudo o que passaram as Pessoas mais Idosas, estamos perante uma oportunidade, de excelência, para refletirmos sobre o(s) modelo(s) que queremos, como país, para cuidarmos delas. Neste tempo, de maior envelhecimento, com mais pessoas com doenças do foro neurológico e em que as exigências laborais dificultam que os filhos cuidem dos pais e em que a generalidade das reformas é baixa é fundamental clarificarmos se as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI) são para acolher e cuidar ou pretendemos que tenham também uma componente de saúde, intermédia entre a realidade existente e as Unidades de Cuidados Continuados, estas claramente unidades de saúde, mas com custos muitíssimo mais elevados.

Temo, no entanto, que nada se faça, perdendo-se uma grande oportunidade. Os dados para já públicos cimentam esse receio!

Vejamos, o Plano de Recuperação e Resiliência, a célebre "bazuca". De facto, nesse Plano prevê-se, e bem, “alargar a rede de equipamentos e respostas sociais ao nível da infância, pessoas idosas e pessoas com deficiência ou incapacidades (28.000 lugares em respostas sociais intervencionadas)”, no entanto, ao verificarmos o valor orçamentado para todo o país, o mesmo limita-se a 483 milhões de euros, um número claramente insuficiente. Mais claro fica a opção do governo ao constatar-se que no mesmo Plano estão previstos 200 milhões de euros para a Transição Digital da Segurança Social.

Em relação às IPSS, que em todas as crises têm permitido manter a coesão social, em especial as dedicadas às PSSA, é fundamental privilegiar os pobres dos mais pobres, criando condições para recuperarem a sua dignidade, aligeirando os processos burocráticos que muitas vezes os fazem desistir dessa “janela de vontade de mudar de vida”.

É essencial que os responsáveis das instituições publicas sejam verdadeiros e transparentes (não se pode continuar com as rábulas das máscaras, não se pode transmitir que se for uma atividade politica o vírus não aparece, ou que nos transportes apinhados de pessoas não há perigo de contágio). Que não decidam conforme a pressão sentida, mudando sistematicamente as decisões e criando um sentimento de desconfiança em relação às medidas publicitadas. Pede-se que sejam assertivos e discretos, não repetindo o deplorável espetáculo do início da vacinação que teve como consequência a criação de um sentimento de falsa proteção.

Ao serem credíveis e verdadeiros, as pessoas confiarão, interiorizarão e cumprirão as medidas emanadas e TODOS nos protegeremos uns aos outros.