Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Vivemos tempos atípicos, já todos sabemos. Nos últimos 3 meses a nossa expectativa e visão para o Mundo, para o País e para a nossa vida mudou. E se tudo isto nos causa ansiedade sobre o que nos rodeia e o que nos espera, certamente já todos nos deparámos com a pergunta: “e agora?”

E agora, quando vou voltar ao escritório? E agora, quando é que volto a ver a minha família, sentindo-me segura?

Mas surgem perguntas diferentes: E agora, como vou fazer face às despesas deste mês e do próximo? E agora, como arranjarei emprego, quando tudo indica que estamos a entrar numa recessão profunda?

Este não é um texto sobre as grandes oportunidades da pandemia. Mas também não é um texto derrotista: podemos mudar muita coisa, e o nosso papel (nosso - sociedade no sentido mais abrangente que possam imaginar) é imprescindível. É neste contexto que considero importante repensarmos a nossa noção de trabalho, uma tarefa essencial para combater alguns dos impactos atuais e futuros da pandemia, mas também muitos outros desafios que a atual crise apenas veio agudizar. Nesse sentido, parece-me que é altura de pensarmos em medidas como o Rendimento Básico Incondicional (mas não só) como forma de transição para um modelo onde o trabalho seja uma parte relevante da nossa vida, mas não essencial para a nossa sobrevivência.

Mas antes de mais, um breve contexto:

A Comissão Europeia previu recentemente uma contração do PIB que em Portugal, poderá chegar aos 6,8%, perto do mesmo valor que o turismo representou para o PIB em 2019. Mas ainda, não se espera que em 2021 as economias europeias consigam superar as perdas de 2020. Um outro fator relevante prende-se com a perda acentuada de rendimentos dos agregados familiares: uma sondagem recente do Expresso aponta que perto de 36% das famílias perderam rendimentos, com 16% a assumir que perdeu metade ou mais do seu rendimento. Mas o impacto não é igual para todos: o Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública aponta para o aumento da desigualdade, com os mais pobres e com menor nível de escolaridade a serem os mais impactados pela crise que vivemos, em particular pela quebra de rendimentos. Também os jovens poderão ser os mais afetados pela crise económica, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, devido à maior probabilidade de estarem em situações de precariedade e de baixos salários. Importa ainda falar de pobreza. Nas últimas semanas a DECO, o Banco Alimentar e a Caritas alertaram para os aumentos de pedido de ajuda e de apoio devido à pandemia (ajuda alimentar, ou apoio devido à perda de rendimentos). Como a Rede Europeia Anti Pobreza em Portugal publicou na sua tomada de posição no início da pandemia, “mais de 2 milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social e cerca de 1.7 milhões encontram-se em risco de pobreza monetária”. Mais ainda: em 2019 “33% da população portuguesa não conseguia assegurar o pagamento imediato de uma despesa sem recorrer a empréstimo”. Acresce a isto, o número elevado de trabalhadores em part-time ou com contratos de trabalho temporários, e o aumento do número de trabalhadores pobres. Importa frisar que todos estes números se verificaram em 2018 e 2019, num contexto de situação económica favorável.

O que nos dizem os números?

Os números são um espelho limitado do que estamos a viver, mas elucidam-nos para os potenciais e efetivos impactos da crise económica. Dizem-nos que os efeitos perniciosos das crises demoram a recuperar: as taxas de pobreza e de precariedade são em parte o legado da crise de 2011. Dizem-nos que são os jovens e os mais pobres que serão mais afetados: a crise não afetará de forma uniforme todos nós. Se por um lado, a desigualdade poderá aumentar, é também a geração mais nova, e com maior nível de escolaridade de sempre no País que vê mais uma vez as suas oportunidades reduzidas.

Mas dizem-nos também outra coisa: numa crise gerada pela impossibilidade de continuarmos a trabalhar e a consumir como dantes, mais do que nunca foi clara a nossa (individual e coletiva) dependência do modelo de trabalho assalariado, assente em vínculos precários e em baixos salários. Apenas isso explica o facto da perda de rendimentos durante um ou dois meses implicar a impossibilidade de milhares de famílias conseguirem fazer face às despesas essenciais para viver – seja com a habitação ou com a alimentação. É sobre isto que me parece que devíamos refletir seriamente.

Regressemos então ao início. E agora?

E agora? Deixo algumas propostas que acho que poderiam ser importantes. Propostas que deveriam ser discutidas em plenários alargados, mas cujos benefícios acredito que poderiam mitigar muitos dos impactos nefastos da crise:

  1. É chegada a altura para reconhecer de uma vez por todas a injustiça da precariedade, e a sua vulnerabilidade. Seja como governo, ou como trabalhador ou como consumidor, cada um de nós pode tomar medidas para acabar com a promoção da precariedade: podemos recusar trabalhos precários ou, quando não é possível, organizarmo-nos com os nossos colegas trabalhadores, juntarmo-nos a plataformas de mobilização coletiva, e exigir melhores condições. Também do lado das empresas, esta é a oportunidade para identificarem (se infelizmente não o fizeram) os trabalhadores essenciais, e garantirem-lhes as condições de segurança laboral que lhes são devidas. E nós, consumidores, podemos fazê-lo também: podemos procurar saber mais sobre as empresas onde compramos os nossos produtos. Podemos exigir informações sobre situações de precariedade. Podemos deixar de comprar produtos e serviços a empresas que sistematicamente desrespeitam os seus trabalhadores. Do lado do Governo, resta a efetiva discussão sobre se queremos continuar a promover o crescimento económico, sustentado na precariedade e nos baixos salários, comprometendo o futuro das gerações mais jovens.
  2. É chegada a altura de nos mobilizarmos de novo e ainda mais: de discutirmos com as nossas famílias e amigos, nas redes sociais, nas associações onde pertencemos e nos nossos trabalhos sobre os impactos desta crise, e sobre medidas que achamos que deveriam ser implementadas. É nossa a responsabilidade de garantir que não hipotecamos o nosso futuro por causa do que vivemos ou do que poderemos vir a viver.
  3. E por último, mas não menos importante, é altura de repensar o modelo económico que vivemos: temos a “oportunidade” de pensar e investir num modelo mais sustentável (como são vários os apelos nesse sentido) mas também num mundo onde vemos o trabalho de outra forma. A crise que vivemos expôs algumas das maiores fragilidades das nossas economias e da globalização: de uma semana para a outra as economias e fronteiras fecharam-se. Sem podermos trabalhar, vemos o nosso rendimento diminuir, ou até ser eliminado. Vemos a nossa vida reduzida, sem saber como ocupar o nosso tempo. Vemos com receio a possibilidade de sermos privados de bens essenciais – seja comida, água, luz ou habitação. Como um castelo de cartas, sem trabalho a nossa vida colapsou, em parte ou na totalidade. É altura para refletirmos seriamente sobre o grau de 'comodificação' (commodification) do trabalho. É altura de refletirmos sobre um direito para todos, que nos permita viver com dignidade, ocupando mais do nosso tempo noutras esferas que não a do trabalho. Acho que hoje mais do que nunca é altura de pensarmos e discutirmos a possibilidade do Rendimento Básico Incondicional (RBI), uma prestação monetária mensal ou anual, para todos, livre de obrigações, que garanta as condições básicas de vida. O RBI não resolve certamente tudo, mas introduz-se como um direito a uma vida digna, independentemente do nosso salário ou do nosso emprego e, sobretudo, independentemente dos choques no mercado de trabalho, provocados por fatores externos como o que vivemos hoje.

Espero que possamos em conjunto refletir sobre o agora e o futuro, e descobrir que novas soluções podemos implementar para garantir a qualidade de vida de todos. É através da partilha livre e da discussão alargada que o poderemos fazer.

*Catarina Neves escreve segundo o novo acordo ortográfico