Outubro está a ser notável e, nessa medida, o meu escape a Outubro também devia ser notável (tenho sérias dúvidas). Mas neste mês tumultuoso, com tanto susto inescapável, continuo a fugir em direcção a sustos evitáveis - o medo falso e auto-infligido. Talvez esteja aqui a lógica da atracção estúpida pelo Halloween: quando escolhemos o escape rumo a uma irrealidade assustadora, escolhemos descansar da realidade assustadora.
Em minha defesa: tenho plena consciência do quão foleira foi a conclusão com que fechei o parágrafo anterior. Escrevi-a de forma consentânea com o meu disfarce para este próximo Dia das Bruxas: vou mascarar-me de múmia; encho-me de ligaduras que tapem pele ressequida, tapem frases feridas, tapem chagas freitas.
Prometi cingir-me ao tema Halloween (mais propriamente a filmes de terror) durante este mês, mas com a cara azeda de quem não aprecia a quadra. Relembro, contudo, que há dois Halloween que me enchem as medidas. Um é o rapper odivelense, o outro é um marco cinematográfico de John Carpenter, exactamente o “Halloween” de 1978. Amanhã estreia nas salas portuguesas uma sequela que partilha o mesmo nome. Assisti ao “Halloween” (de 2018) na semana passada e hoje, mesmo que me escape a recomendação, sigo para a crítica.
Halloween (2018), de David Gordon Green
Minha classificação por estrelas: 2 em 6 ✭✭✩✩✩✩
Há pouco, resisti conscientemente à tentação de chamar “filme de culto” ao “Halloween”do Carpenter. Por norma, filmes de culto têm características muito próprias e são fenómenos entesourados por um segmento fiel, mas reduzido, de público. Esse primeiro filme de 1978 gerou, de facto, um culto, e é reverenciado sobretudo pelos aficionados do terror. Ainda assim, considerar esse Halloween como filme de nichos, é ignorar a competência brilhante que faz dele uma obra extraordinária na história geral do cinema. Que o baixo orçamento não nos engane: “Halloween” foi conduzido com uma batuta riquíssima, excede em subtileza, contenção, tensão, capacidade de pastorear o espectador. É um filme seminal para o género do terror (ou seja, copiosamente copiado), mas também uma obra a ter em conta fora de cultos, géneros e orçamentos.
Ora, o grande problema desta sequela parece-me ser precisamente o “culto”. Sejam quais forem os créditos do realizador e dos argumentistas, a sensação que fica é que estamos perante um filme de fãs – aqueles que entesouram o culto, que se se sentem privilegiados por serem nicho. Ou seja, parece-me existir um cuidado extremo em mostrar que se domina a iconografia do filme original, e que se sabe actualizá-la, mas esfuma-se o cuidado em fazer um filme competente, sequer entusiasmante. Raoul Walsh e John Ford podiam filmar com palas (literais) nos olhos; já as palas de fã não resultam em grande coisa.
Confesso que estava com boas expectativas antes de entrar na sala de cinema, sobretudo porque tinha lido algumas primeiras críticas muito favoráveis. Com o filme à minha frente, não demorei a descortinar a origem das críticas favoráveis: vinham do culto, vinham dos fãs a quem basta que a fita não seja ridícula (como algumas sequelas do “Halloween” o foram) para lhes parecer um sucessor à altura do original. David Gordon Green tenta pôr-se às cavalitas de Carpenter (com constantes citações, piscares de olho, revitalizações) mas não lhe chega aos calcanhares.
Pior: ao assumir esta como a única sequela digna (e já lá vão mais de uma dezena de continuações, remakes e reboots) do “Halloween”, o projecto assume uma sobranceria que o desprotege. Pese o facto de ter sido feito com alguma inteligência, bastante respeito, e considerável seriedade, este “Halloween” de 2018 tropeça em demasiados engodos, e a arrogância da premissa (ser a única sequela digna) torna as falhas ainda mais expostas.
Para um filme aparentemente tão apegado aos ícones do original, não é pouco onde erra. O tratamento da personagem principal, por exemplo, é dotado de ocasionais doses de imbecilidade. Jamie Lee Curtis neste filme está entre um fantasma e a Sigourney Weaver da série Alien. Perderam-se todos os traços da inocência amedrontada e do instinto de sobrevivência que, há 40 anos, a tornavam numa de nós. Bela maneira de destruir uma empatia.
Ao perceber a importância narrativa/narradora da personagem Dr. Loomis (o impoluto actor Donald Pleasence) no filme original, esta sequela acerta. Infelizmente, falha na maneira como o substitui: são 3 as figuras que tomam o lugar equivalente ao do Dr. Loomis, e nenhuma garante quer o peso quer a leveza do original. Perdeu-se aquela espécie de Van Helsing intenso que Pleasence trouxe há 40 anos, e ganhou-se muito pouco com dois documentaristas mal enjorcados e um médico de fascínios exagerados.
Em algumas críticas favoráveis ao filme, ainda assim li quem se queixasse do excesso de comédia. Ora, discordo absolutamente. Tendo em conta que o argumento é assinado por Danny McBride, conhecido actor cómico, seria de esperar que ele explorasse ainda mais os seus pontos fortes. Os únicos momentos em que sentimos o argumentista no filme são através de dois personagens que servem de avatar ao próprio McBride: uma hilariante criança desbocada (que merecia mais tempo em cena) e um adolescente apalhaçado e anafado que, até fisicamente, transporta a presença de quem lhe escreveu as falas. Ambas as personagens são descartadas como estereótipos de filme do género, e o interesse por elas acaba por ser curto, porque vão e vêm como se nunca tivessem lá estado.
Em suma, este “Halloween” parece-me ter falhado tanto naquilo em que decidiu resguardar do original (só a lata de terem mantido o mesmo título é dum ombrear aviltante), mas também no que decidiu inovar. A forma como trabalharam o vilão Michael Myers é um indício de tais falhas: da subtileza com que se resguardava a personagem no filme de 1978, chegámos à vaidade com que se oculta; David Gordon Green é despudorado a esconder, e isso é um insulto ao legado carpenteriano. No capítulo das inovações, a coisa não melhora: a história familiar das heroínas é metida a martelo, quando martelos e afins deviam ficar do lado do assassino. O esforço de ambientar a história ao espírito da época, ao #metoo, também sai ao lado: 3 mulheres programadas para serem fortes neste filme não chegam para equivaler à adolescente frágil que há 40 anos resistiu de forma desprogramada.
Entrei na sala com boas expectativas mas bastaram-me alguns segundos para se instalar o desconforto. No “Halloween” de 2018 há personagens com opiniões profissionais que continuam a apelidar Michael Myers como o “Mal encarnado”. Isso era insuspeito há 40 anos, mas hoje soa ao mais politicamente incorrecto. Esfumou-se rapidamente a credibilidade. Há conservadores que acham que o politicamente correcto está a estragar a sociedade; eu, conservador, só me queixo que está a estragar a fruição dos filmes de terror.
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