Saber medir o tempo é uma arte, contar cada segundo de olhos fechados, tomar a decisão certa no momento certo. No futebol, esta arte é elevada ao expoente quer no jogo jogado - o passe, a finta, o remate, o elevar a cabeça e observar o campo, os cortes - quer na carreira de um jogador ou treinador.
Foram várias as ocasiões em que treinadores e jogadores podiam ter saído pela porta grande e arriscaram mais 90 minutos, mais uma época, mais um contrato, mais uma transferência. Saber medir o tempo é uma qualidade importante, saber cruzá-lo com o sucesso e o longo prazo exige caráter e saber. Não é para todos.
Arsène Wenger será, provavelmente, o exemplo mais recente de um treinador que viveu tempo demais num clube. Após um início de sucesso no Arsenal, o técnico francês prolongou-se. Prolongaram-no. Mesmo quando era evidente a necessidade de uma mudança no clube inglês, a direção manteve-o. E o francês nunca teve a coragem ou o discernimento de sair pelo próprio pé.
Naqueles que tratam a bola por tu dentro das quatro linhas, entre os apitos de início e fim de jogo do árbitro, não faltam exemplos. Ronaldinho, O Ronaldinho, que vive na nossa nostalgia prolongou a carreira durante mais tempo do que o tempo pedia. Podia ter terminado a carreira em grande, depois dos 30 já numa transferência que o devolvesse ao seu país natal, mas continuou a jogar em sucessivas épocas irregulares fazendo com que os adeptos de futebol apenas se lembrassem que Ronaldinho ainda não tinha pendurado as botas porque, de tempos a tempos, surgia um vídeo de um passe de costas, um toque de calcanhar ou uma finta a lembrar os tempos em que o brasileiro corria sem regras e de sorriso rasgado em Camp Nou.
Sair pela porta grande pode ser sair com um troféu nas mãos, mas não necessariamente. É um ato de introspeção, de conhecimento de nós próprios, de coragem. Coragem do jogador ou do treinador em perceber o seu momento e perspetivar que o futuro lhe permitirá, ou não, continuar no clube ou na modalidade com o mesmo estatuto, com a mesma influência, a dar o melhor contributo.
Zinédine Zidane, o antigo internacional francês que esta quinta-feira, de forma inesperada, se demitiu do cargo de treinador do Real Madrid depois de três anos e nove troféus com o clube merengue, foi uma exceção.
Quando jogava, o talentoso francês media o tempo como ninguém, no passe a desmarcar, a rodar sobre o adversário - movimento que (o) tornou mítico - , na maneira de olhar para o jogo, no remate à baliza. O que por vezes não mediu em temperamento, como naquela final do Mundial de 2006 frente à Itália em que agrediu Materazzi com uma cabeçada, ganhava em tempo. Era um jogador que sabia tomar a decisão certa no momento certo.
Tomou-a quando decidiu terminar a carreira ao serviço do Real Madrid, com apenas 33 anos e numa forma excelente. Era quase frustrante para o adepto de futebol vê-lo nos anos seguintes disputar jogos amigáveis de solidariedade e não pensar "ainda podia vir fazer uma perninha ao meu clube". Mas Zidane não queria fazer "uma perninha", queria ser o maestro. Queria ser preponderante, ser um influenciador e um dos rostos da equipa. Quando percebeu que, pela natural consequência do tempo e numa época em que a preparação física e a nutrição estavam longe de estar enraizadas no futebol ao nível que conhecemos hoje, aquilo que faria seria, provavelmente, saltar do banco para ir "dar uma perninha" à medida que o tempo iria passando, Zidane saiu. Pela porta grande.
A nostalgia foi quase imediata e deu a Zidane, talvez mais depressa do que seria de imaginar, o estatuto de lenda. Nas conversas de café era falado como um melhores de sempre, trazendo à memória as prestações épicas no Mundial de 1998 e no Europeu de 2000, ambas as competições conquistadas pela seleção francesa, a classe com que tratava a bola e a influência que teve por todos os clubes por onde passou.
E quem acha que na seleção não foi assim, engane-se. Mesmo após aquela fatídica final de 2006, em que Zidane não só é expulso como marca um autogolo, o povo francês, após a ira típica dos momentos a quente, rapidamente reconciliou-se com o jogador que foi um dos artistas maiores de uma geração que venceu tudo o que havia para vencer.
Esta quinta-feira não foi diferente. De forma inesperada, Zidane decidiu sair do banco do Real Madrid. “É um momento estranho, mas a equipa necessita de uma mudança para continuar a ganhar, necessita de outro discurso. Outra metodologia de trabalho e, por isso, tomei esta decisão”, afirmou.
Depois de uma primeira época em Madrid, marcada pela conquista da Liga dos Campeões, foi em 2016/17 que fez a sua melhor época no banco do Real, somando a Liga Espanhola ao bicampeonato europeu. O primeiro, um feito necessário para interromper a hegemonia do Barcelona na La Liga; a segunda, um feito inédito desde que a competição assumiu o novo formato.
Contudo, a atual temporada, a terceira ao serviço dos merengues, não correu de feição, pelo menos não como Zidane quereria. A equipa conquistou a Liga dos Campeões pela terceira vez consecutiva, um feito épico e único, que não passou indiferente aos olhos de ninguém. Mas o futebol já não era o mesmo. Tal ficou patente no desempenho nas competições internas, onde o Real Madrid cedo ficou afastado da corrida pelo título - acabaria a época em terceiro lugar - e foi também prematuramente eliminado da Taça do Rei, em casa, diante do Leganés.
Olhando para a posição de treinador de uma forma ampla, podemos, logo à partida, separar os timoneiros em duas categorias: os comandantes de homens e os mestres da tática. Zidane como lenda do futebol e do Real Madrid, agarrou numa equipa bem montada por Carlo Ancelotti e foi a primeira, um comandante. Porquê? Porque não precisava de ser a segunda.
Com alguns dos melhores jogadores do mundo ao seu serviço em todas as posições - de Sergio Ramos a Cristiano Ronaldo, não esquecendo nomes como Toni Kroos, Luka Modric ou Isco, a que se juntam ainda jovens promessas do futebol mundial como Marco Asensio - e um sistema tático (4-3-3), herdado, que tinha como uma das peças-chave Casemiro, a fazer o trabalho ‘feio’ na zona mais recuada do meio-campo, dando liberdade aos médios Kroos e Modric, e que nos momentos de ataque facilmente alternava para um 4-2-2-2, com Ronaldo a fazer a diagonal para o meio e a aproximar-se de Benzema, Zidane ficou com a responsabilidade de gerir egos, uma arte subtil, mas dura, exigente e fulcral, sobretudo num clube que junta dos melhores e que ao mesmo tempo pretende ser o melhor.
E conseguiu-o. Foi treinador, pai e amigo dos jogadores. Geriu Cristiano Ronaldo numa altura crucial da carreira do internacional português e potenciou-o. Mediu-lhe o tempo, encurtou-o, e fez com que, através de um sistema de rotação de jogos que privilegiou as competições europeias em detrimento das nacionais, o capitão da seleção nacional portuguesa diminuísse a carga de jogos (em três anos com Zidane, CR7 fez 138 jogos, menos 18 que no conjunto das três temporadas anteriores). E nem por isso o rendimento de Ronaldo caiu significativamente. Se, por exemplo, utilizarmos como critério a média de golos marcados por jogo, com Zidane o português fez 0,99 golos por jogo, enquanto que na soma das três épocas anteriores assinou 1,07 golos por jogo.
Mas porque é que o Real Madrid precisa de repensar o jogo?
Se compararmos a temporada passada com a presente, há apenas uma grande mudança no plantel do Real Madrid: Morata não está. O avançado espanhol mudou-se para Inglaterra, para o Chelsea e o clube de Madrid não contratou nenhum substituto, deixando Benzema como único 9 puro da equipa.
O sistema herdado de Ancelotti por Zidane foi-se deteriorando com o passar do tempo, com pequenas alterações que por vezes passaram tão despercebidas como as saídas de Morata, Khedira ou James Rodríguez.
À falta de soluções para o lugar de avançado-centro, somaram-se ainda infortúnios, como as constantes lesões de Gareth Bale, que deixaram ‘la BBC’ de muletas durante praticamente toda a temporada. Além disso, quebras de rendimento individuais geraram quebras coletivas com a equipa a tornar-se irregular e a perder jogos com equipas muito acessíveis, o que ficou patente tanto no campeonato espanhol, como na Taça do Rei.
O papel de Zidane não diminuiu, mas já não era suficiente. Por intuição, diz, percebeu que os três anos de sucesso em que conquistou nove troféus - três Ligas dos Campeões, uma Liga Espanhola, duas Supertaças Europeias, uma Supertaça Espanhola e dois Campeonatos do Mundo de Clubes - eram irrepetíveis. Então, Zidane decidiu parar, pensar, olhar e decidir.
Decidiu ter coragem para sair pela porta grande. Foi inesperado, mas se olharmos para trás, não devíamos ficar surpreendidos.
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