Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
Como parte dos 100 Oportunidades, represento apenas aqueles que, em cada assunto, se revejam no que disse ou escrevi. Não fui eleito, a maioria das pessoas nunca me viu nem vai ver na vida, e pouco ou nada sabe de mim. Aceitei, no entanto, com muito gosto, com um pensamento essencial em mente, que curiosamente nem se me aplica, por sorte minha: a falta de voz de muitos dos que carregam os tronos dos reis às costas.
Falando sobre a minha área, que situaria no Direito e na Liberdade, mas cujo raciocínio pode ser estendido a tantas outras matérias, quantas pessoas que nunca tinham visto na vossa vida aparecem agora num cartaz para ensinar algo num Webinar? A quantas pessoas foi dada pela primeira vez a oportunidade, ainda que com um motivo infeliz, de ter algum palco a discutir e lançar ideias naquilo que são boas? As estruturas pesadas, hierarquizadas tantas vezes, sem que tenham um sentido preciso associado à hierarquia – e, deixem-me clarificar, refiro-me a todo o tipo de estruturas, públicas, privadas, etc. – deram por si ou sem meios comuns de comunicar com os seus stakeholders ou sem trabalho. Ou simplesmente com uma necessidade ou vontade de aparecer. De “mostrar” serviço. Nada contra, antes pelo contrário: a sobrevivência está reservada, se confiarmos em Darwin (num Darwin bem lido, em que fittest representa a maior capacidade de adaptação ao ambiente, ou à alteração do ambiente, em redor), resultou de tudo isto um efeito excelente. Vejamos.
Ninguém pode falar por outro. Assim, se a Zoe participa num Webinar da sua empresa sobre a sua área de expertise, é a Zoe que aparece. É a Zoé que fala. É o que a Zoé diz que se ouve. E é o trabalho da Zoe, que se calhar em 10 anos de carreira raramente tinha falado sobre aquilo em que é uma craque, que agora está a emitir para todo o mundo. E por mais que outros a possam substituir, o estado de necessidade (não técnico-jurídico) obriga os patrões a confiar na sua estrutura, para poder entregar (no sentido inglês de deliver, de fazer).
Esta é outra das vantagens de uma infeliz realidade. De repente, não apenas todo o mundo nos pode ouvir, como também nós podemos ouvir todo o mundo. Já não perco aquela conferência que tanto queria ouvir, porque era no Porto e eu estava em Lisboa. Compatibilizo uma reunião com um cliente às 15h com falar numa conferência às 18h. E as reuniões? Tantas, que podiam ter sido um e-mail.
Esta é a parte que me deixa contente. A possibilidade de ver amigos bons, muito bons, a partilhar conhecimento com outros bons, muito bons. E outros ainda não tão bons, a tornarem-se cada vez melhores, e mais cheios – não de si, mas mais completos, e realizados no meio da miséria que é viver sem contacto humano. Ao mesmo tempo que quem não quiser falar, não gostar de falar, tem todo o direito de não o fazer. É a liberalização do que eu chamaria o espaço mediático científico.
E aqui surge um dos problemas. Não poderia ser tudo bom, certo? A liberalização da mediatização do espaço científico implica a liberalização da mediatização, em geral. Se locais havia, como as redes sociais, em que já pouco de científico havia, podemos agora assistir, como já se vai assistindo, a um verdadeiro hijack da Ciência, em que sob a capa de um bonito cartaz, se apresentam os especialistas de isto e de aquilo. De tudo e mais alguma coisa. Os especialistas que eu chamo de transformers: ontem eram epidemiologistas, hoje expert em coronabonds. Amanhã, porventura, e até com alguma probabilidade, em nutrição (mas enfim, este problema já existia antes: sempre me impressionou quão poucas pessoas ligadas ao futebol comentam futebol, por exemplo).
A contra face desta liberalização é uma obrigação pessoal de todos nós usarmos uma máscara, esta invisível. Além da máscara por motivos sanitários, precisamos de uma máscara mental, de um filtro de qualidade; de uma incredulidade ténue inicial, que rapidamente se desvanece se estivermos perante algo que valha efetivamente a pena ver e ouvir. Ao mesmo tempo que cria, em todos nós, a obrigação de transmitir o devido caveat: se estamos a opinar, como eu estou agora, é uma coisa; se temos conhecimento de fundo, dados científicos e estudámos o assunto com seriedade, é outra. Nem tudo tem de ser científico. Mas temos de ser minimamente sérios, e dizer ao que vimos. Relativamente conexo com este, surge o problema da escolha. Onde há muita oferta, é natural ficar perdido na escolha. Teremos de nos habituar à constante existência de custos de oportunidade, e aceitar que em certos casos acertaremos, em outros não.
Falando agora do futuro a médio prazo. Não direi nada que não decorresse já das premissas que apresentei. Vamos ter – como já se vê – um enorme aumento de eventos online, mais quanto maior for a pandemia e mais tempo durar, mas sempre maior do que anteriormente; as vantagens que se lhes reconhecem – aos eventos na web, sejam reuniões, sejam conferências, sejam comunicados – permanecerão. Vamos ter uma saturação muito grande do mercado deste tipo de oferta informativa gratuita como forma de chegar ao público, sendo importante criar uma certa cadência, que não banalize a intervenção no espaço público. Vamos ter uma desvalorização da opinião de cada um, não por si, mas pelo facto de existirem muitas mais em disputa. O recurso a estes meios vem mesmo para ficar, ainda que, espero, diminua um pouco quando esta situação abrandar. A pessoalidade é muito importante, também, por questões jurídicas, nomeadamente relativas a reuniões de órgãos colegiais e a processos em tribunal, mas acima de tudo porque somos humanos e precisamos, como humanos, de contacto.
Não me debruço sobre as gravíssimas consequências humanas que esta crise tem. Não por não lhes dar relevância, mas pelo contrário: colegas meus, com maior competência, conhecimento e mestria fá-lo-ão. E estarei aqui para ler.
Este texto é, ainda assim, mais humano do que técnico. Mais geral do que jurídico. Para esses, poderão encontrar-me num qualquer Webinar. E consegui não dizer, no texto todo, um termo começado em “c” e acabada em “9”. Stay strong.
*Pedro Azevedo escreve segundo o novo acordo ortográfico
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