Como é que os ciganos ajudaram a reconquistar a independência de Portugal?
Esta quinta-feira, um de dezembro, data em que se assinala o golpe revolucionário de 1640 que acabou com o domínio da dinastia Filipina sobre Portugal, retirando o país da alçada espanhola e colocando no trono D. João IV, Marcelo Rebelo de Sousa, numa mensagem evocativa do Dia da Restauração da Independência que hoje se assinala, lembrou os ciganos que "deram a vida" pela independência nacional e lamentou a discriminação de que têm sido alvo em Portugal.
"Ao lembrar tantos portugueses, de tantas origens, que se envolveram no movimento revolucionário, o Presidente da República quer lembrar também os portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio Rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional", pode ler-se.
Na mensagem, Marcelo destaca o 'cavaleiro fidalgo' Jerónimo da Costa e muitos dos duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras e tombaram por Portugal. “Portugal lembra-os, presta-lhes homenagem e exprime a sua gratidão. Este dever de memória é de elementar Justiça e rompe com tanto esquecimento e discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso país”, lê-se na nota da Presidência.
O que aconteceu?
É facto que centenas de ciganos lutaram pela libertação de Portugal do domínio da dinastia filipina, período em que Castela chegou ao trono português na sequência da crise à sucessão de 1580, após o desaparecimento, sem descendentes, do jovem rei D. Sebastião em África, na Batalha de Alcácer-Quibir.
Esta comunidade teve um papel relevante nas batalhas tidas na fronteira entre os dois reinos, onde vários soldados de etnia cigana lutaram, e onde, Jerónimo da Costa, faleceu a defender Portugal.
A história é pouco conhecida, mas, conta o Público, que foi relatada por Tomé Pinheiro da Veiga (1566-1656), político, escritor e procurador da coroa durante o reinado de D. João IV, que citava o caso contemporâneo “d’aquelle pobre cigano” que serviu a sua pátria “três anos contínuos com suas armas e cavallo à sua custa, sem soldo”.
O mesmo jornal relembra ainda que esta é uma história evocada por Adolfo Coelho em Os ciganos de Portugal em que se acrescenta que esse cigano combateu “até à morte por um país que, 400 anos depois (em 1892) ainda persegue a sua etnia”, evocando ainda os “mais de 250 homens d’essa raça” que “alistados no exército português, desde a restauração do reino” serviram “nas fronteiras com zelo e valor com que já foram muito apremeados”.
No entanto, este período está longe de ter sido uma época de integração desta comunidade junto da sociedade portuguesa.Se no século XVI, os monarcas lhes retiravam direitos como os de viver nos bairros, sob pena de serem presos, "açoutados" e enviados para as galés, um século antes as coisas não eram diferentes.
O facto é comprovado pelo alvará de D. João IV com que, em 1649, determina que as ordens de prisão e degredo aplicáveis em geral aos portugueses ciganos não deveriam ser aplicadas “aos mais de 250 ciganos alistados que estavam servindo nas fronteiras, procedendo na forma de traje e lugar dos naturais”, e, por isso, receberam licença dos governadores das armas “para morar em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”.
O antropólogo José Gabriel Pereira Bastos, num artigo para o Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas, de 2008, relembrava que o reino português autorizou a presença dos portugueses ciganos nas lutas pela independênciaao mesmo tempo que proibia a comunidade de usar os seus trajes, de ler a sina ou de lhes mandar “retirar os filhos aos ciganos a partir dos 9 anos de idade”.
Exceção foram, tal como referido, os ciganos que lutaram por Portugal, com especial enfoque em Jerónimo da Costa. D. João IV evocou mesmo um parecer para que a sua “mulher e filhos sejam havidos como naturais do reino”, que este “seja feito cavaleiro fidalgo” e que os seus “descendentes não tenham ofício mecânico” e “sirvam como soldados”.
Nesse mesmo texto, José Bastos, já falecido, propõe mesmo que Jerínimo da Costa seja o "patrono nacional dos portugueses ciganos, com direito a estátua e avenida".