Eutanásia. O que aconteceu e o que falta acontecer

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

O que aconteceu hoje?

Depois de três adiamentos — duas vezes a pedido do Chega e uma vez por proposta do PS — o texto final sobre a morte medicamente assistida foi hoje aprovado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Ou seja, foi aprovado na especialidade.

O texto final, que tem por base os projetos de lei apresentados por PS, IL, BE e PAN, contou com os votos a favor de PS, IL e BE, merecendo a oposição do Chega e do PCP e a abstenção do PSD.

O que diz o novo texto?

O texto estabelece que a “morte medicamente assistida não punível” ocorre “por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

Desta vez, em comparação ao último decreto, o texto de substituição deixa cair a exigência de "doença fatal".

O texto final estabelece agora um prazo mínimo de dois meses desde o início do procedimento para a sua concretização, sendo também obrigatória a disponibilização de acompanhamento psicológico.

Não se tinha já falado na Eutanásia nos últimos anos?

Sim. Na anterior legislatura, a despenalização, em certas condições, da morte medicamente assistida, alterando o Código Penal, reuniu maioria alargada no parlamento, mas foi alvo de dois vetos do Presidente da República: uma primeira vez após o chumbo do Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de fiscalização de Marcelo Rebelo de Sousa.

Numa segunda vez, em 26 de novembro, o Presidente rejeitou o diploma através de um veto político realçando que ao longo do novo texto eram utilizadas expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas e defendendo que o legislador tinha de optar entre a "doença só grave", a "doença grave e incurável" e a "doença incurável e fatal".

OK, foi aprovada. E agora?

Agora, segue para a votação final global em plenário, que deverá ocorrer esta sexta-feira. Depois disso, caso seja aprovado, o decreto do parlamento segue para o Palácio de Belém. O Presidente da República pode promulgar ou vetar o diploma ou ainda enviá-lo para o Tribunal Constitucional para verificação da sua conformidade com a lei fundamental.

Estes, contudo, não foram os únicos desenvolvimentos do dia.

Então, o que se passou mais?

Ainda durante a votação na especialidade, o PSD tentou que houvesse um quarto adiamento, com a deputada Paula Cardoso a justificar o pedido com o facto de estar agendada para esta tarde uma conferência de líderes extraordinária para discutir um projeto de resolução do PSD que propunha um referendo sobre a despenalização da eutanásia.

Este apelo, porém, mereceu a oposição do PS, BE e Iniciativa Liberal.

Mais tarde, após a hora de almoço, ficou-se a saber que o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, rejeitou a iniciativa do PSD de um referendo por “não existirem alterações de circunstâncias” em relação à iniciativa anterior já apresentada sobre a mesma matéria.

“Foi uma decisão transmitida pelo presidente da Assembleia da República, depois de ouvida a conferência de líderes”, referiu a deputada do PS, Palmira Maciel.

E o PSD, como reagiu?

Não baixou os prazos. Logo após saber a decisão de Santos Silva, Paula Cardoso anunciou, no plenário, que o partido pretendia recorrer da mesma.

No entanto, este recurso não foi ainda votado, e o presidente da Assembleia da República pediu ao grupo parlamentar do PSD que o apresente por escrito, após ser comunicada formalmente a sua decisão de não admissão, e que terá de passar pela comissão parlamentar antes de voltar a plenário.

O PSD ainda acusou publicamente o Chega e o presidente da Assembleia da República de “conluio”, mas já lá vamos. Para entender tudo isto, há que compreender o contexto da discussão sobre a eutanásia nos últimos meses.

Como assim, qual é o contexto?

Esta segunda-feira, o presidente do PSD, Luís Montenegro, anunciou que o grupo parlamentar social-democrata iria entregar um projeto para a realização um referendo sobre a despenalização da eutanásia, tendo o diploma dado entrada no parlamento na mesma tarde.

No entanto, esta seria a segunda vez que uma proposta do mesmo género foi feita no espaço de alguns meses. A 9 de junho, o Chega tentou passar iniciativa semelhante, sem sucesso. Foi por isso que, esta terça-feira, André Ventura, defendeu que a proposta social-democrata era inconstitucional, alegando que a lei fundamental proíbe que um projeto de referendo definitivamente rejeitado possa voltar a ser apresentado na mesma sessão legislativa.

Para tal, serviu-se do artigo 167.º da Constituição, que refere, no ponto quatro, que “os projetos e as propostas de lei e de referendo definitivamente rejeitados não podem ser renovados na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da República”.

Com base neste pressuposto, o partido enviou, no mesmo dia, um requerimento dirigido ao presidente da Assembleia da República pedindo que, "no estrito cumprimento da Constituição da República Portuguesa e do Regimento da Assembleia da República, não admita o projeto de resolução" do PSD.

Esse argumento jurídico do Chega teve respaldo no despacho de não admissão emitido esta tarde por Santos Silva.

O que diz a decisão do Presidente da Assembleia da República?

Precisamente que, as perguntas apresentadas por Chega e PSD “têm formulações distintas”, mas que a segunda renova o intuito da primeira no essencial. Ou, fazendo uso das palavras de Santos Silva, de que essa diferença “não parece suficiente, no caso em apreço, para afastar a aplicação da regra da proibição de renovação, na mesma sessão legislativa, de projetos de referendo rejeitados”.

Santos Silva chega mesmo a citar um acórdão do Tribunal Constitucional, o 578/2005, no caso relativo ao referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, em que se refere que “as diferenças de formulação das perguntas, especialmente tendo em conta que se trata de propostas de referendos e não de textos legislativos, são insuficientes para permitir afirmar que não se pretende que o eleitorado se pronuncie sobre a mesma questão nas duas iniciativas referendárias”.

E é aqui que entram as acusações de conluio, certo?

Exato. Numa curta conferência de imprensa marcada para esta tarde, o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, acusou as duas partes de "cumplicidade e conluio" na rejeição do referendo à despenalização da eutanásia.

“O que aconteceu hoje foi um atropelo ao normal funcionamento do parlamento, e o exemplo máximo de cumplicidade e conluio entre o PS e o Chega, entre o dr. André Ventura e o dr. Santos Silva, com o alto patrocínio do primeiro-ministro”, acusou o dirigente social-democrata.

“O país tem que saber que hoje caiu a máscara ao PS e ao Chega, o dr. Santos Silva e o dr. André Ventura ficaram sozinhos de braço dado a defender o indefensável contra o PSD e contra a democracia”, criticou Hugo Soares, dizendo que “o país tem de saber deste conluio, desta cumplicidade de políticas e de propósitos políticos entre PS e o Chega”.

Curiosamente, o PSD não foi o único partido a opôr-se à decisão de Santos Silva.

A sério? Quais foram?

O BE e PAN, que defenderam que a iniciativa do PSD deveria ter sido admitida, mesmo sendo contra o seu conteúdo.

O líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, defendeu que a iniciativa do PSD “deve ser admitida” uma vez que estão em causa “preceitos constitucionais como a liberdade de iniciativa e o direito de iniciativa de grupos parlamentares e de deputados”.

“Seja o PSD, seja outro grupo parlamentar, seja o BE, ninguém pode ser inibido de apresentar iniciativas legislativas porque um terceiro assim o fez”, sustentou, sublinhando, todavia, que direitos fundamentais não devem ser referendáveis.

Já da parte do PAN, Inês Sousa Real defendeu também que, apesar de estar contra o conteúdo do projeto dos sociais-democratas, a iniciativa deveria ter sido admitida deixando críticas ao Chega e ao presidente do parlamento.

“Para o PAN não deixa de ser absurdo que um dos partidos que se diz ser a terceira força política em Portugal possa de alguma forma estar a limitar os direitos da própria oposição”, criticou, argumentando que os acórdãos do Tribunal Constitucional usados pelo Chega para defender a sua posição contra a admissão da iniciativa estão “profundamente datados”.

“E mais, uma coisa era se fosse a mesma força política a apresentar uma iniciativa, tratando-se de forças políticas diferentes, o PAN não pode acompanhar esta posição quer do senhor presidente do parlamento, quer do Chega, relativamente à admissão da proposta apresentada pelo PSD”, sustentou.

Última dúvida: a oposição do Chega ao referendo do PSD significa que estão contra a despenalização da eutanásia?

Não, pelo contrário. O choque entre as duas forças terá tido motivações sobretudo políticas, de quem lidera o tema à direita.

No que toca à eutanásia em si, Ventura anunciou hoje que, caso a despenalização entre em vigor, “o primeiro projeto” que o partido apresentará na Assembleia da República na próxima legislatura será para tentar reverter esta lei.

"O primeiro projeto do Chega será para reverter a eutanásia”, assegurou André Ventura numa declaração no plenário da Assembleia da República em que deixou esta "promessa solene e política".

*com Lusa

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