Ainda nos lembramos do Caso das Gémeas?
A proposta de relatório do inquérito parlamentar ao caso das gémeas luso-brasileiras, da autoria do Chega, acusa o Presidente da República de "abuso de poder", considerando a sua conduta "especialmente censurável".
"A conduta do Presidente da República é especialmente censurável por se tratar do chefe de Estado e, como tal, qualquer pedido feito por si ou em seu nome tem inerente uma convicção de obrigatoriedade de cumprimento por parte de quem recebe o pedido, ainda que não seja necessariamente uma ordem, revelando assim a eventual prática de abuso de poder”, lê-se no documento ao qual a Lusa teve acesso.
O documento refere ainda que “ficou provado que Nuno Rebelo de Sousa pediu ajuda ao pai, o Presidente da República, para salvar as gémeas luso-brasileiras, tendo ficado provado que este tomou diligências acrescidas face ao que costuma fazer com outros cidadãos que a ele recorrem”.
As conclusões foram apresentadas pela deputada relatora, Cristina Rodrigues (Chega), numa conferência de imprensa na Assembleia da República, na qual esteve também o presidente daquele partido, André Ventura.
Quando vai ser discutido o relatório?
O plenário da Assembleia da República confirmou ontem a suspensão do prazo de funcionamento da comissão de inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras por três semanas.
A suspensão, aprovada por unanimidade, já tinha tido a mesma votação em reunião da comissão, na quarta-feira.
O pedido de suspensão do prazo de funcionamento da comissão de inquérito ao caso das duas crianças que receberam um dos medicamentos mais caros do mundo em 2020 partiu do PSD, depois de o Chega falhar várias vezes a entrega do relatório com as conclusões preliminares.
O requerimento dos sociais-democratas pede a suspensão dos trabalhos “pelo período mínimo de três semanas”, o que atira o fim dos trabalhos para meados de abril.
Os trabalhos ficam suspensos entre os dias 7 e 25 de março.
A deputada relatora – Cristina Rodrigues - falhou a entrega do relatório por três vezes e, na quarta-feira, o presidente da comissão disse aos jornalistas que "ficou acordado pela deputada que, sem falta, esta sexta-feira será entregue o relatório”.
Com este atraso, a discussão das conclusões, que esteve inicialmente prevista começar esta semana, foi adiada para 26 de março.
O que acontece no caso de ser rejeitada da moção de confiança do governo?
Caso a moção de confiança apresentada pelo Governo seja rejeitada – o que deverá ser uma vez que PS e Chega já anunciaram que votarão contra – a comissão de inquérito corre o risco de terminar sem conclusões, uma vez que a Assembleia da República deverá ser dissolvida e o Presidente da República deve convocar novas eleições legislativas para maio.
O que aconteceu neste caso?
Está em causa o tratamento hospitalar, em 2020, de duas crianças gémeas residentes no Brasil, que adquiriram nacionalidade portuguesa e receberam, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o medicamento Zolgensma.
Com um custo de dois milhões de euros por pessoa, o fármaco visa controlar a propagação da atrofia muscular espinal, uma doença neurodegenerativa.
O caso foi divulgado pela TVI, em novembro de 2023, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, que afirma que “o inquérito tem arguidos constituídos”, e a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde já concluiu que o acesso à consulta de neuropediatria destas crianças foi ilegal.
Também uma auditoria interna do Hospital Santa Maria concluiu que a marcação de uma primeira consulta hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi a única exceção ao cumprimento das regras neste caso.
37 audições e sete depoimentos escritos
A comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras realizou 37 audições e teve acesso a sete depoimentos escritos, nos quais vários responsabilizaram o ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales.
Entre 17 junho de 2024 e 24 janeiro de 2025, os deputados ouviram Lacerda Sales ser acusado de alegadamente ter interferido no pedido de marcação de consulta das crianças.
Uma das pessoas que lhes apontou responsabilidades foi a sua antiga secretária Carla Silva, que disse ter contactado, a pedido de Lacerda Sales, o Hospital Santa Maria, em Lisboa, onde as crianças foram tratadas em 2020 com um dos medicamentos mais caros do mundo.
Também a diretora do Departamento de Pediatria do Hospital Santa Maria, Ana Isabel Lopes, e a neuropediatra responsável pelo tratamento das crianças, Teresa Moreno, afirmaram que o pedido de marcação de consulta em 2019 foi feito em nome de Lacerda Sales.
O antigo governante foi a primeira e a última pessoa a ser ouvida na comissão de inquérito que arrancou em maio do ano passado, na sequência de um pedido potestativo do Chega.
Na primeira audição, em 17 de junho, Lacerda Sales disse que não estava disponível para “servir de bode expiatório num processo político-mediático a qualquer custo”.
Já em 24 de janeiro, negou “qualquer interferência pessoal ou política” para favorecer as crianças e confirmou que o caso foi abordado numa reunião com Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República.
Nesta audição, de cerca de uma hora, o antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde foi interpelado por vários deputados, tendo-se remetido ao silêncio na maioria das vezes, após alegar o estatuto de arguido.
Lacerda Sales é um dos arguidos no processo, juntamente com Nuno Rebelo de Sousa e o ex-diretor clínico do Hospital Santa Maria, Luís Pinheiro.
Nuno Rebelo de Sousa recusou-se prestar esclarecimentos e não respondeu a qualquer das perguntas colocadas pelos deputados. Perante as perguntas dos vários partidos, em 3 de julho de 2024, limitou-se a responder sucessivamente: “pelas razões referidas, não respondo”.
O único dos arguidos que acabou por falar foi Luís Pinheiro, que, em 7 de janeiro, disse que não foi contactado por “ninguém superior” a Lacerda Sales e recusou ter pressionado o agendamento da primeira consulta. O ex-diretor clínico do Hospital Santa Maria disse também que a origem dos utentes não era determinante para as decisões clínicas e o processo não foi acelerado.
Além dos profissionais de saúde e diversos responsáveis, foi ouvida também a mãe das crianças e o chefe da Casa Civil do Presidente da República.
Às audições presenciais juntaram-se também os depoimentos por escrito de mais sete pessoas, entre os quais os dos ex-ministros Manuel Pizarro (Saúde) e Francisca Van Dunem (Justiça) ou do ex-primeiro-ministro, António Costa.
O Presidente da República, que remeteu a decisão sobre uma eventual pronúncia para depois de concluídas as restantes audições, já disse que não vai voltar a pronunciar-se sobre a matéria.
Marcelo Rebelo de Sousa justificou a decisão por não terem surgido novos dados relacionados com a sua intervenção.
A comissão de inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras viu-se obrigada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) a mudar o nome e a passar a usar a designação oficial completa: “Comissão Parlamentar de Inquérito para verificação da legalidade e da conduta dos responsáveis políticos alegadamente envolvidos na prestação de cuidados de saúde a duas crianças (gémeas) tratadas com o medicamento ‘Zolgensma’”.
A Assembleia da República recorreu da decisão do STA, considerando que o tribunal invadiu competências do parlamento.
*Com Lusa
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