Parentes na grande família que é a indústria do espetáculo, tanto a Web Summit como os concertos ao vivo sofreram do mesmo problema gerado por uma pandemia que impossibilita ajuntamentos de pessoas. A covid-19 causou ondas de choque por praticamente todas as áreas de atividade humana do mundo, e a música, como as restantes artes que compõem o setor cultural, foi especialmente atingida. As suas consequências, porém, não foram tão óbvias quanto isso, como as sessões a que assistimos demonstraram.
Houve uma paragem, claro, que retirou pulsação àquele que é atualmente o coração da indústria musical, o concerto ao vivo. Como consequência, os meios de subsistência de muitos ficaram em causa. Mas como sabemos, o setor não morreu e a adversidade deu azo ao espírito inventivo para, das mais variadas formas, tentar assegurar uma espécie de retoma. De transmissões toscas através de contas de Instagram a produções endinheiradas destinadas a serem apreciadas em todo o mundo, para além dos já conhecidos espetáculos organizados com distanciamento social.
Para além disso, nem todas as consequências da pandemia foram necessariamente negativas. Ao longo destas conversas ficou patente que a quebra da atividade também permitiu aos artistas respeitar e refletir, seja quanto à sua obra, ao seu rumo ou à indústria onde se inserem. As possibilidades de futuro, essas, são isso mesmo, meras possibilidades, e ninguém se arrisca a profetizar de forma tumular o que aí vêm. A única certeza é que o trabalho de adaptação que já foi iniciado nestes meses não terá um fim tão cedo assim.
Tal como tantos concertos vistos este ano através do pequeno ecrã, também a Web Summit decorreu nesses moldes, com uma edição inteiramente digital. Isto foi o que aprendemos.
Um ano em que dar concertos digitais foi como "beber cerveja sem álcool"
Um dos artistas que confessou ter algumas dificuldades de adaptação ao atual cenário foi Salvador Sobral. "Sou muito analógico. Sou cético quanto a coisas tecnológicas, tenho medo até, e nós temos medo do que não compreendemos", contou à apresentadora Inês Lopes Gonçalves numa conversa sobre o estado da música ao vivo para 2021.
Não obstante os seus temores, o cantor português forçou-se a pegar num computador e a colaborar com um amigo que vive em Barcelona para compor um álbum durante a quarentena entre sessões de Skype. O processo, todavia, continua a deixá-lo desconfortável. “Para mim, música é partilha, e se não o fazes com alguém junto de ti, acho esquisito”, referiu.
Este tem sido um ano onde o possível, mais do que nunca, se tem elevado sobre o desejável, e não terá havido situação onde esse sentimento tenha estado mais presente do que nos concertos ao vivo. Sendo organizados com o distanciamento social requerido depois da fase aguda de confinamento, o cantor disse ser "melhor do que nada, as pessoas estão lá". "Se esta é a maneira que há de dar concertos, então façamo-lo", continuou, admitindo, porém, haver uma certa estranheza na forma como estes decorrem já que, estando afastadas umas das outras, as pessoas "estão mais retraídas quanto a exprimirem-se e cantarem, porque se sentem mais sozinhas".
2020, contudo, não foi apenas o ano do concerto com distanciamento, mas também — e acima de tudo — o do livestream, ou seja, da transmissão por vídeo em direto. No início da pandemia, multiplicaram-se as iniciativas de artistas a partilhar as suas performances com os fãs através das suas contas de Instagram. Mais tarde, a própria indústria abraçou este formato, vendendo bilhetes para o que, para todos os efeitos, passaram a ser concertos online.
Salvador Sobral tem dado vários concertos desta forma, mas não se pode dizer que tenha ficado fã. “Sabe a cerveja sem álcool”, descreveu, comparando também a situação como sendo equivalente a “coito interrompido” ou a de um toxicodependente cujas drogas tomadas não produzem a adrenalina desejada. “Sentas-te em frente ao piano, o concerto começa e a adrenalina desaparece. E de todas as vezes que te tentas convencer que não vai ser assim, porque as pessoas estão a ver, acontece o mesmo”, lamenta, apontando a falta de interação como o principal problema. “Tu acabas uma canção e… nada, não há aplausos. O silêncio é doloroso. Até podiam estar a vaiar, ao menos estavam a reagir”, comentou.
O cantor, no entanto, antecipa vantagens com a popularização do formato. Anunciando que vai dar uma série de concertos com a irmã, Luísa Sobral, Salvador disse saber de interessados em assistir a viver fora do país e “por isso talvez fosse uma boa jogada fazer livestreaming”. Por outro lado, o artista deixou também duras críticas àquilo que considera serem tentativas de aproveitamento numa fase em que os músicos estão particularmente vulneráveis. “Nós tentamos fazer livestreaming de alguns concertos e disseram-nos que custava 8000 euros. Como assim? Que aproveitamento é este? É como a cobrança em demasia dos testes à covid, é explorarem a miséria humana. Algumas empresas estão a fazer isto porque sabem que podem", acusou.
O seu discurso crítico, aliás, estendeu-se também às polémicas remunerações que plataformas de streaming como o Spotify — sendo que a empresa não revela publicamente as percentagens— dão aos artistas ao disponibilizar a sua música — “aquilo que recebo é uma anedota, mesmo da canção da Eurovisão", disse, apesar de admitir usar esses mesmos serviços.
Outro dos alvos foi estado da cultura em Portugal. Perante o panorama negro que se abateu sobre o setor no nosso país e a exiguidade dos apoios para os seus intervenientes, o cantor diz-se sentir sem legitimidade para se queixar da sua situação. “Eu tenho tantos amigos assim, tenho um amigo que é técnico de som e que acabou de ter uma filha, mas teve de voltar para casa dos pais porque não consegue pagar a renda”, aponta, mencionando que a situação “já estava horrível”, sendo que “a única coisa que a pandemia fez foi levantar o véu”. “As coisas só vão mudar quando passarmos a ter 1% do Orçamento do Estado aplicado à cultura e quando for criado o Estatuto do Artista”, concluiu, apontando para a necessidade de se dar uma “revolução cultural” no país.
Uma alternativa de futuro
O problema de base para a subsistência da comunidade musical, todavia, não é exclusivo a Portugal, mas sim parte de um mal-estar que grassa na indústria e que foi agudizado pela pandemia. Dada a escassez de rendimentos provenientes das plataformas de streaming, o dinheiro do qual grande parte dos artistas — especialmente os independentes — dependem parte dos concertos ao vivo e da venda de merchandise, algo que ficou bem aparente com a interrupção da covid-19. Fechando-se a torneira, soaram os alertas.
Não sendo propriamente possível transformar uma indústria em si mesmo ainda em convulsão com estas novas plataformas no espaço de alguns meses, a solução imediata passou antes pela criação de alternativas para possibilitar aos artistas continuar a dar concertos. Uma delas foi abraçada por Laura Marling.
Uma artista folk britânica premiada, uma igreja com uma acústica perfeita, uma equipa multi-câmara e um total de zero pessoas na audiência: foi assim que se deu o concerto de Marling em junho, tocando na Union Chapel, em Londres, para o público a vê-la em casa através de uma produção de alta qualidade. Tanto a cantautora como o CEO da empresa responsável pela transmissão da atuação — Nic Salmon, da Driift — explicaram numa sessão como é que esta ideia entrou em fruição e qual o seu possível significado para o futuro da música.
Criada fruto da necessidade de manter os artistas ativos, a Driift nasceu com Salmon — que também é agente de Marling — a constatar a forma como músicos de todo o mundo se estavam a ligar aos seus fãs na ausência de concertos ao vivo. “Começámos a analisar o que se estava a passar no mundo naquela altura e havia montes de artistas a fazer streaming em modo selfie em casa. Com isso, junta-se a baixa qualidade de gravação e produção, sem luzes, sem boa captação de som. Saúdo os artistas que o fizeram, mas o problema é que é algo que é criativamente muito restritivo”, começou por contar.
A ideia passou então por convidar Marling para que se fizesse “um livestream num sítio espetacular e com uma produção multi-câmara”, sendo o seu concerto o pioneiro para uma série de atuações organizadas em condições únicas e protagonizadas por artistas e bandas como Nick Cave, Lianne La Havas ou os Biffy Clyro.
Este tipo de atuações em livestream, de resto, já existia — veja-se, por exemplo, o concerto que os Metallica deram para um conjunto irrisório de fãs na Antártida em 2013 — mas, tal como aconteceu com a plataforma Zoom, apenas popularizou-se quando se tornou a única alternativa. “O que ninguém tinha experimentado foi fazer um livestream sem público na sala. Tentar vender a ideia a um artista de atuar sem público vai completamente contra a lógica económica da indústria”, aponta Salmon.
Para Marling, a experiência foi “muito diferente do que qualquer coisa que já tenha feito”. “Eu não falo muito nos meus concertos, mas este ocorreu sem qualquer interação pessoal e ocorreu-me que não tinha nada para fazer entre canções. Isso resultou numa hora relativamente intensa de música sem pausas”, contou a artista britânica. No entanto, apesar de ter tido “toda a ansiedade e excitação de um concerto normal”, a cantautora considera que este é “um médium diferente”. “Desde então, tenho pensado muito no quão incrível o livestream pode ser, as coisas criativas que se pode fazer num espetáculo e que não seriam possíveis com público”, afirmou.
Algumas dessas coisas, completa Salmon, apenas surgiram pela própria ausência de audiência. “Os benefícios e a liberdade de gravar um espetáculo sem público mais do que ultrapassam a ideia de que vai ser esquisito. De um ponto de vista técnico, o som, no palco, é perfeito, porque não há barulho na sala, não há feedback do PA. É como tocar num estúdio, mas numa sala espetacular”, começou por dizer o CEO da Driift.
“Em condições normais, tens de trabalhar com o público, não podes afetar a sua linha de visão nem podes ter várias câmaras no palco”, continuou, referindo que, sem audiência, abrem-se “enormes possibilidades para os realizadores e produtores de vídeo”. Por outro lado, eliminando-se a estrutura mais restritiva a nível espacial, os próprios artistas podem enveredar por “espetáculos mais criativos, brincar com as dinâmicas e com o arco narrativo, o que não dá para fazer num auditório físico com o público”.
Exemplos deste tipo de atuação têm começado a surgir, por exemplo, nos concertos para os prémios musicais da MTV por parte de artistas como Lady Gaga ou Doja Cat, mas há antecedentes bem mais antigos, referiu Marling, como o famoso “Stop Making Sense”, concerto de 1984 dos Talking Heads. É tendo tal performance como inspiração que a artista prepara-se agora para um segundo concerto por livestream no final do ano, sendo que terá outra produção a nível narrativo. “Estou a trabalhar com um diretor de teatro e a tentar perceber as vantagens de adicionar animações às canções de uma forma que eu nunca tinha pensado”, adiantou.
Por todas as maravilhas apontadas a este formato híbrido, algures entre um concerto ao vivo e um videoclipe, Marling ainda assim considera que não suplantará a atuação ao vivo, coexistindo “como médium em que uma base de fãs global pode apreciar algo em conjunto”. Salmon concorda. “Isto não é um substituto. É algo que pode existir paralelamente a tours, a campanhas promoção a álbuns, é um novo medium de comunicação e um novo formato profundamente criativo que tem imensos benefícios óbvios”, defendeu.
Dos palcos da pop para os estúdios em casa
Marling não foi, contudo, a única artista britânica a partilhar as suas experiências com o formato de livestream na Web Summit. Conhecido por fazer parte da boyband One Direction e apostado numa carreira a solo desde 2016 (ano em que o grupo entrou em hiato), Liam Payne veio revelar como se adaptou em tempos de pandemia.
“A solução para mim foi trabalhar com o Veeps”, contou o músico, referindo-se a outra empresa que se especializou em concertos por livestream durante a pandemia. “Temos andado a fazer estes espetáculos com eles, que até se têm tornado programas de televisão mais do que qualquer outra coisa”, referiu. A natureza destas atuações, disse, até o levou a conectar-se com os fãs de forma diferente, já que incluem sessões antes e depois da performance em si para conversar. “Mudou a forma como eu falo com os meus fãs. Durante muito tempo, vivi num mundo irrealista em que pensava que conversava com os meus fãs, quando na verdade só lhes dizia coisas”, confessou.
A sessão com Payne foi moderada por Zack O'Malley Greenburg, jornalista da revista Forbes, e contou também com a presença de Marian Dicus, vice-presidente do Spotify. A presença de Dicus mereceu a questão quanto ao papel da plataforma no atual panorama musical dadas as suas remunerações. A responsável, previsivelmente, esquivou-se a estes temas, preferindo abordar a forma como a sua empresa se tem focado em “conectar fãs e criadores” durante a pandemia.
A polémica, porém, foi abordada pelo cantor. “Para mim, a música mudou há uma série de anos. Os downloads ilegais significaram o início do fim de algumas partes da indústria da música. É uma conversa difícil para ter porque não sabemos qual é o passo certo a dar. Por um lado, podíamos ter a nossa música a ser descarregada ilegalmente e não sermos remunerados. Plataformas como o Spotify providenciam este serviço para nós, para além de que trazem-nos novos ouvintes”, defendeu.
“Há espaço para a conversa — especialmente com a chegada de plataformas como o TikTok, que mudaram a forma como as pessoas são expostas a música”, continuou, dizendo que “ter estas redes novas para conversar foi uma das lições mais importantes” da pandemia.
A própria forma como tem comunicado através das suas redes foi alvo de aprendizagem, notou, tanto pela forma como a tecnologia foi um dos únicos elos de ligação possíveis entre as pessoas durante os confinamentos, como pelo facto da atual atmosfera política colocar em foco o próprio papel dos artistas.
“As pessoas querem que os seus artistas tenham uma opinião formada hoje em dia, não podemos excluir-nos do discurso e também não sentimos que o devamos fazer em muitos casos. No entanto, para mim há uma linha ténue, porque o que faço pelas pessoas é um escape, elas não querem ser sujeitas a mensagens minhas todos os dias, querem ouvir música. É importante falarmos apenas do que sabemos, todos nós sofremos de desinformação hoje em dia, especialmente devido à Internet, e eu não quero contribuir para isso. Se não sei, não falo”, declarou.
Esta, porém, não foi a única coisa que o cantor teve de aprender a fazer, antecipando que o que os artistas vão levar da pandemia é também a autossuficiência em áreas que não dominam. "Algum do conteúdo que criei este ano foi feito completamente sozinho, e detesto dizê-lo, mas acho que vai continuar a acontecer. Eu fiz um vídeo durante o confinamento, fui só eu e o operador de câmara, quando antes havia equipas inteiras a dizer-te o que fazer”, referindo-se à necessidade de tanto ser o próprio a tratar do seu cabelo para as gravações, como a montar o fundo de Chroma key.
Para além disso, Payne também se viu forçado a adaptar a forma como compôs e produziu música durante o confinamento, admitindo que “tem sido difícil”. “Eu estava num estado muito criativo no início do confinamento”, começou por dizer. A fluidez, porém, foi quebrada pelas contingências do momento. “Eu não tenho este trabalho porque sou bom a responder a emails e toda a indústria musical tem sofrido com o mesmo problema. Andei a trabalhar com compositores e dizíamos ‘sim, isto soa ótimo, depois manda-me depois da sessão por Zoom’ e depois nunca mais ouvi falar disso”, contou, apontando para “todo um álbum de covid que nunca ninguém vai ouvir” por esta mesma razão.
Ainda assim, o artista considerou que “foi uma boa altura para experimentar coisas novas” e que vai pegar na experiência para afinar o seu processo de agora em diante. Apesar de conceder que o período pandémico tem sido “horrível”, há positivos a extrair, alegou. "Há um lado bonito nisto, em que nos deram uma pausa natural e permitiram-nos refletir quanto a nós próprios", argumentou.
A liberdade de estar fechado em casa
Como tem sido amplamente documentado ao longo destes meses, 2020 representou um ano de dificuldades, ou, pelo menos, de frustrações para muitos músicos e artistas. Mas, lá está, não para todos. Tal como Liam Payne, há quem tenha olhado para estes tempos de pandemia com a perspetiva do copo meio-cheio. David Guetta foi uma dessas pessoas.
Em conversa com o apresentador Tim Kash, o DJ francês confessou que o confinamento, obrigando-o a estar em casa e cancelando a sua agenda frenética de concertos e gravações marcadas, permitiu-lhe fazer algo que esquecera ao longo do seu percurso de carreira: criar música por diversão, todos os dias.
"Tenho-me focado em fazer música da mesma forma como o fiz quando tinha 17 anos, quando não era bem sucedido e, por isso, tinha todo o tempo do mundo. É de doidos, porque quando te tornas bem sucedido, ficas sem tempo para fazer aquilo que te trouxe sucesso. Mas não é algo que me afeta só a mim, se posso dizê-lo, afeta todos os artistas de grande dimensão", adiantou.
A admissão veio com uma explicação por arrasto. Não é que Guetta tenha deixado de criar música; pelo contrário, a sua produção tem sido tão intensa como comercialmente bem sucedida na última década. A questão é que, um músico na sua situação, diz, “substitui criatividade por experiência”, ou seja, adere a fórmulas bem sucedidas. “Já produzo música há muitos anos. Quando tenho dias livres entres espetáculos, alugo um estúdio numa cidade e estou com o artista. Eu vou querer parecer bem e por isso vou tocar algo que me faz parecer bem, mas é também algo muito seguro, é uma receita que já tenho”, indica, frisando que esse ritmo, “a dada altura, afeta a criatividade”.
A pandemia, por isso mesmo, mudou as coisas. “Nunca me senti tão criativo e produtivo como agora. Quando se tem tempo, é diferente, porque não tem mal gastá-lo, em experimentar com sons e beats”, afirmou o DJ, não deixando de dizer que o faz com a consciência de que é “um sortudo”. “Tenho dinheiro de lado e não preciso de me stressar em pagar a renda do próximo mês como muitas pessoas", sublinhou.
O resultado deste assomo de criatividade foi o EP “New Rave”, gravado com o produtor dinamarquês Morten, assim como a canção “Let’s Love”, contando com Sia, cantora australiana e sua colaboradora frequente. Em ambos os casos, assume, o intuito não foi o de ter bons resultados nos tops, mas de “dar algo aos fãs” e de criar “música que queríamos tocar e que sentimos que não existia”.
Mantendo a mesma postura otimista, Guetta contou também que, ao contrário dos exemplos acima mencionados, é um fã do processo de gravação à distância. “Muitos dos artistas que conheço odeiam trabalhar assim, mas eu adoro, porque sou muito tímido. Quando estou no Zoom, não há a pressão de alugar um estúdio, toda a gente está em casa, experimenta-se alguma coisa: se for incrível, finalizamos e gravamos, se não, perdemos duas horas e vamos almoçar com a família. Essa leveza na abordagem a produzir música, para mim, foi incrível”, refere.
No caso em particular da criação de “Let’s Love”, o francês diz que foi gravada completamente em confinamento, entre o seu computador e o de Sia, “sem sequer um engenheiro de som, como uns miúdos a começar a fazer música. Não foi um método super profissional e organizado de gravar como costumamos fazer”. A lição a levar desta pandemia, assevera, é simples: "As limitações levaram-nos a regressar ao que é fundamental".
Acreditar na utopia
Trocando um universo de limitações por outro de possibilidades infinita, uma das últimas conversas a ter lugar durante todo o certame colocou a cantora e produtora canadiana Claire Boucher — mais conhecida pelo nome artístico Grimes — e o DJ/produtor anglo-canadiano Richie Hawtin à mercê das perguntas do jornalista do The Guardian Ben Beaumont-Thomas.
Mais do que discutir música, a sessão toda ela se debruçou nas possibilidades da tecnologia para a vida humana. A escolha de ambos para esta conversa, note-se não foi ao acaso, já que os dois são figuras vanguardistas nos seus géneros musicais: se Hawtin é um dos precursores da segunda vaga do Techno, Grimes tem estado na linha da frente da inovação na Pop.
Tendo tanto um como outro colaborado com a Endel, uma startup que desenvolve aplicações de música criada a partir de inteligência artificial, este desenvolvimento tecnológico foi um dos grandes destaques da conversa.
Grimes — que entrou numa polémica no ano passado com outras artistas devido a esta mesma temática — antecipou que a inteligência artificial “vai ser muito diferente daquilo que é agora”, já que “nos encontramos num patamar muito rudimentar” ainda. Para além disso, mostrou até algo receio que os músicos “se tornem obsoletos a longo-prazo e que a música humana se torne no equivalente aos vegetais orgânicos, a alternativa de luxo”.
“Acho que [a IA] vai ultrapassar-nos e temos de nos reconciliar com isso. As pessoas parecem estar em negação quanto a isso, é insensato pensar que nunca vai acontecer, não é produtivo. Temos é de pensar como nos preparar para isso, como olhamos para o futuro sabendo que vamos ter de lidar com superinteligência, seja daqui a 10 ou 100 anos”, antecipa. Fazendo uma comparação com as alterações climáticas, detetadas há várias décadas mas só agora tidas como um problema agudo a resolver, Grimes defendeu que a discussão tem de começar agora
Richie concordou com esta ideia, lembrando que já hoje existe inteligência artificial aplicada à música. “Já vimos surgir software que deteta pormenores nas músicas e sugere-nos alterações. A sensação é que se vão abrir as comportas, à medida que a IA se vai tornando mais poderosa, uma espécie de ser com personalidade à medida que vai absorvendo a informação que lhe damos”, defendeu, antecipando até “um interação muito interessante entre o orgânico e o tecnológico num futuro próximo”.
É tendo em conta a atual imensidão de possibilidades que a parafernália tecnológica já permite na composição e criação de música que Grimes defendeu que os tempos que vivemos talvez consistam na “melhor zona criativa de sempre”. “Cada vez que abro o Ableton [um software de sequenciação e produção musical] eu dou graças aos seus produtores. Não damos crédito suficiente às pessoas que produzem a tecnologia que usamos, porque é incrível, é tão poderosa e futurista, sinto que tenho o mundo nas pontas dos meus dedos. É quase utópico”, argumentou.
Esta linha ténue, entre um destino distópico e ou utópico foi, acima de tudo, o que acabou por definir a conversa, sendo que ambos os intervenientes assumiram-se otimistas crentes num futuro melhor. Começando pelo lado negativo, todavia, houve um consenso quanto à forma pouco saudável como a tecnologia está a ser consumida, tanto pelas suas repercussões ambientais como sociais.
Hawtin, por exemplo, recordou que a sofisticação da tecnologia de viagens levou a uma aculturação que fez com que toda a gente tomasse por garantido poder viajar para todo o lado, não obstante os custos ambientais. A pandemia, porém, veio estabelecer um corte, privilegiando-se o contacto digital. “Vermos que talvez não precisemos de viajar tanto para realizar uma data de coisas pode ser parte da sensibilização para o que se está a passar”, comentou, frisando, ainda assim, que “é muito difícil replicar o que é um concerto ao vivo, ou estar numa sala com um performer”, pelo que “não vamos deixar isso de parte e apenas comunicar digitalmente no pós-covid”.
Já Grimes colocou a tónica no cariz aditivo da tecnologia e dos seus impactos na saúde, por exemplo, na qualidade de sono de quem usa um smartphone antes de ir dormir. “Há um problema sistémico que vai obrigar as empresas que criam estes produtos empenharem-se mais na segurança deles para impedir que as pessoas se prejudiquem”, alertou.
O produtor anglo-canadiano secundou esta ideia, ressalvando a “forma miope” como a tecnologia “nos tem sido impingida” sem ter em conta os impactos a longo prazo e estabelecendo um paralelo com a indústria do tabaco. “Toda a gente fumava, era a coisa mais fixe do mundo, foi promovida como algo saudável e foram precisas três ou quarto décadas para eles perceberem os problemas de saúde que isso causava, obrigando a indústria a educar os seus consumidores”, indicou.
Mas, apesar de defender a regulação da indústria tecnológica, Hawtin sublinhou também a necessidade das pessoas terem de aprender a lidar com o aparato técnico por elas próprias, dando o seu exemplo e o de Grimes.
“Eu a Claire usamos muita tecnologia na nossa música, eu rodeio-me desde que sou miúdo. Por um lado, vivemos super excitados por alta tecnologia, queremos tudo o que é novo. Mas, talvez porque o usemos, nas nossas obras, somos mais sensíveis às suas valências positivas e negativas. Quando estou num estúdio, eu uso um computador, mas estou muito alerta para o que uso ou não. Eu tento usar essa mentalidade na minha vida”, adiantou.
Grimes, porém, quis deixar claro que as críticas à tecnologia não devem pôr em causa o seu caráter essencial à experiência humana. “A tecnologia é natural à nossa espécie, é o que os humanos fazem, deixa-nos felizes e melhora as nossas vidas. Nós sobrevivemos a tigres e ursos porque construímos casas e ferramentas”, recordou.
Por isso mesmo, a artista lamentou a propensão da humanidade, e em particular de géneros narrativos como a ficção científica, para a distopia. “Precisamos de mais utopias, de pensar em coisas que sejam ativamente criadas para melhorar as nossas vidas”, defendeu.
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