“Nunca na minha carreira vi uma falha tão grande de controlos corporativos e uma completa inexistência de informação financeira de confiança como aqui” foram as palavras escolhidas por John J. Ray III, uns dias depois de se tornar CEO da FTX e iniciar os procedimentos para avançar com a sua insolvência. Elas ganham especial importância dado que vêm da mesma pessoa que tratou da insolvência da Enron, a gigante energética que no início do milénio foi ao fundo, depois de se saber que andava a esconder milhares de milhões de dólares em dívidas.

No caso da FTX, a empresa criada por Sam Bankman-Fried viu a sua operação ser desmascarada na semana passada, onde vieram ao olho público não só uma série de fraudes e maus atores na forma como utilizava os fundos dos utilizadores da sua plataforma de transação de criptomoedas, mas também uma conjunto de abusos de confiançanaquilo que eram os seus parceiros institucionais, desde investidores a parceiros comerciais.

Os documentos fornecidos pela empresa no âmbito do “Chapter 11”, lei sob o qual empresas declaram insolvência nos EUA, revelaram os primeiros dados sobre aquilo que a FTX estava a fazer de errado. Estes são alguns dos highlights:

  • A estrutura corporativa da FTX é um caos entre as +100 subsidiárias, a forma como se relacionavam e quem era responsável pelas mesmas.

  • Não há uma consolidação dos depósitos dos utilizadores de forma a que se possa perceber fragilidades financeiras da empresa.

  • As divisões de trading (Alameda Research) e de investimento (FTX Ventures) não têm qualquer tipo de registo de transações atualizado e vão ter de ser desenvolvidos de raíz.

  • Existem 5.5 mil milhões de dólares registados como ativos da FTX Internacional que atualmente estão avaliados em 656 mil dólares (pouco mais de 0.1% do reportado).

  • Deve cerca de 3.1 mil milhões de dólares aos seus 50 maiores credores, sendo que ao maior “lesado” é devido cerca de 226 milhões de dólares.

  • Um dos auditores da FTX até ao momento era uma empresa chamada Pragar Metis, conhecida por ser a primeira a ter um escritório no metaverso.

Mão humana e perigos de contágio

Nos últimos dias, muitas têm sido as comparações feitas com o caso da FTX e com outros que têm surgido na criptoeconomia em 2022. O errático fator humano da bolha “dotcom” do início de 2000 e da crise sub-prime provocada pelo banco Lehman Brothers, que mudaram o panorama económico e empresarial, está todo lá, mas há uma coisa diferente: uma plataforma de regulação clara que permitia julgar de alguma forma os maus atores e encontrar compensações para os prejudicados. Por isso, nas próximas semanas existem 4 coisas para as quais vamos estar a olhar:

  1. Na política. O último ano de Bankman-Fried tinha sido a desenvolver relações valiosas com o status quo. Era um dos principais doadores de Joe Biden, era keynote speaker nos principais eventos de web3, reunia-se regularmente com membros do Congresso americano para o desenvolvimento de propostas para regulação cripto, sinalizando que as criptomoedas estavam finalmente prontas para ser mainstream. E todo esse trabalho (e doações) será provavelmente revisto.

  2. Na indústria. Há um medo claro da continuação do contágio e naquilo que é a perda de confiança originada por casos como este. Se todos os utilizadores começarem a desinvestir nas criptomoedas, estas poderão desvalorizar para níveis que levam mais exchanges e até outras empresas descentralizadas a enfrentar problemas de liquidez e a ter de tomar medidas mais drásticas.

  3. No investimento. Depois de um período em que houve muito dinheiro a entrar em várias empresas, de uma forma nem sempre o mais rigorosa possível, a maior parte dos VCs vai reforçar a sua “due diligence” para mitigar ao máximo o risco de acontecer outra FTX. Por exemplo, a Sequioa Capital já assumiu a perda completa do investimento de mais de 210 milhões de dólares na empresa americana.

  4. No mundo. Empresas do setor e partes interessadas terão um papel importante na explicação de que estas fraudes sucessivas não são necessariamente um problema da tecnologia blockchain e das criptomoedas, mas sim das pessoas por detrás da sua criação e comercialização como em qualquer outro negócio. A reputação e crescimento da web3 vão depender disso.

Há mais: Os documentos entregues pela FTX também revelam que nem todas as suas subsidiárias eram um buraco financeiro e que muitas tinham uma gestão responsável e um conjunto de ativos muito valioso, por isso vai ser interessante perceber, primeiro, quem poderá receber o dinheiro de volta e se, à medida que mais factos forem descobertos, Sam Bankman-Fried poderá enfentar acusação por algum tipo de crime.