“Diferenças de opinião deverão ser toleradas, mas não quando são demasiado diferentes”
Do filme “Bananas”, de Woody Allen, 1971
“Gostos não se discutem”, diz a sabedoria popular e afirmava, muitas vezes, o meu pai, que adorava ópera e não concebia que eu, a filha que levara a passear ao som de áreas entoadas por Enrique Caruso – um dos seus tenores favoritos – ou da inimitável Maria Callas, tivesse crescido e cedido aos (en)cantos de “rockalhadas” e de “bandos de gente estranha aos gritos”, como muitas vezes me dizia quando a porta do quarto fechada não era suficiente para abafar estes insultos às suas preferências musicais. Na verdade, e em termos de gostos musicais, o meu pai não fazia justiça ao popular ditado. Porque, afinal, os gostos discutem-se e mais do que nunca.
Nesta era em que as possibilidades de escolha do que gostamos ou não gostamos parecem infinitas – seja na gastronomia, na moda, na música, no cinema, nos locais de férias, nos livros, nos gadgets, no sabor dos gelados ou nas cores dos sapatos – valerá a pena mergulhar na anatomia das nossas preferências, as quais supostamente nos definem aos nossos próprios olhos e também aos dos outros?
Bem, como há gostos para tudo, parece que sim.
E foi isso que fez o jornalista Tom Vanderbilt, no seu mais recente livro “You May Also Like: Taste in an Age of Endless Choice”, no qual tenta – não com total sucesso, na verdade – desmistificar os apetites humanos, o que nos faz gostar de uma banda e não de outra, ou da cor azul em detrimento do amarelo, ao mesmo tempo que pega em grandes colossos digitais como a Amazon, o Netflix ou o Spotify, entre outros, para aferir qual o papel que têm no moldar das nossas preferências e, em simultâneo, no gigantesco negócio dos “likes” que mistura os algoritmos do big data e retira o maior dos proveitos do fluxo de informação – ou da impressão digital do gosto que, nós, comuns mortais e ávidos utilizadores do online oferecemos gratuitamente sempre que estamos em modo 'on' (ou seja, e para muitos, ao longo das 24 horas diárias).
Mas e afinal por que motivo gostamos do que gostamos? Terá o gosto raízes biológicas ou é simplesmente produto da cultura em que vivemos? Somos mais permeáveis a gostar de algo que nos é familiar – sim, gosto de ópera porque a “aprendi a ouvir” e porque me faz recordar bons momentos – ou, pelo contrário, somos estimulados a gostar de coisas “diferentes” porque nos queremos distinguir da maioria? (Na verdade, e depois de lido este livro, ficar a saber que os republicanos gostam mais de Pink Floyd do que os democratas levou-me a ficar com um gosto amargo na boca).
Estas e muitas outras perguntas levaram o autor de “Traffic: Why We Drive the Way We Do (And What It Says About Us) ” - o seu anterior bestseller que explorava as atividades complexas e perigosas que envolvem a condução, mesmo que não prestemos a menor atenção às mesmas, numa tentativa de “psicoanalisar” a natureza humana enquanto se está atrás de um volante – a fazer muitas viagens para conferir sentido aos nossos gostos em detrimentos de outros.
E se a tentativa de encontrar sentido na forma como as pessoas conduzem já era difícil, imagine-se a tarefa mais do que árdua a que Vanderbilt se propôs. Consultando psicólogos, sociólogos, economistas, neurocientistas, profissionais de marketing, revisitando filósofos como Kant ou Hume, entrevistando pessoas diversas do Netflix ou da Pandora, visitando a sede da Hunch.com (uma start-up de “recomendações), da NeuroFocus (que monitoriza a preferências de clientes através da utilização de sensores cerebrais) ou da gigantesca McCormick, líder na identificação de tendências em “sabores”, Vanderbilt ainda teve tempo de se submeter a uma experiência na Echo Nest, uma “empresa de inteligência de música” que promete fazer corresponder as pessoas às suas preferências musicais (e que é agora detida pelo Spotify) e de trocar impressões com o júri de um festival de cervejas, entre outras experiências gustativas variadas.
Depois de tudo isto, ficamos pelo menos a saber que o gosto é um fenómeno extremamente relativo que vai dando guinadas consecutivas, em particular na nossa era da relatividade extrema, na qual não só nos habituamos a clicar em likes ou a dar “estrelinhas”, como o sucesso de muitas empresas digitais dependem da complicada tarefa de anteciparem aquilo que nós, clientes e utilizadores, gostamos e iremos gostar. E goste-se ou não do tema, a escrita de Vanderbilt tem os condimentos necessários para que possamos saborear algumas das suas descobertas no que aos nossos gostos – e desgostos – dizem respeito.
A verdade é que tal como as nossas fotografias de antigamente nos podem parecer chocantemente ridículas, porque normalmente não nos vemos a nós como os outros nos veem, os nossos gostos antigos, vistos do “exterior” e da perspetiva do que atualmente se define como “bom gosto”, acabam também por nos surpreender
O gosto é como uma máquina em movimento perpétuo
A premissa escolhida por Vanderbilt para a sua viagem gustatória é a de que “somos estranhos ao que gostamos”, o que não significa que não gostemos daquilo que afirmamos gostar, mas sim que não temos a mínima ideia porque preferimos isto em detrimento daquilo.
Escreve o autor: “são muitas as vezes em que não sabemos do que gostamos ou porque gostamos do que gostamos. As nossas preferências estão eivadas de preconceitos inconscientes e facilmente inculcadas por influências contextuais e sociais. Existem poucas probabilidades de gostarmos amanhã do que gostamos hoje e menos ainda de nos recordarmos do que nos conduziu aos nossos gostos ‘antigos’”. Ou, em suma, os nossos gostos são opacos, sugestionáveis, mutáveis e, muitas vezes incompreensíveis.
Comecemos por pensar nas vezes que remexemos num velho baú de fotografias (ou, sim, para a geração mais nova, num disco externo esquecido numa gaveta) e de como nos indagamos, com incredulidade genuína, onde raio é que estávamos com a cabeça quando decidimos fazer aquela bela permanente nos anos 80 ou, se formos um pouco mais velhos, como tínhamos coragem de sair à rua com as famosas calças à boca-de-sino – e aos quadrados – em conjunto com os inimagináveis sapatos-plataforma a condizer.
A verdade é que tal como as nossas fotografias de antigamente nos podem parecer chocantemente ridículas, porque normalmente não nos vemos a nós como os outros nos veem, os nossos gostos antigos, vistos do “exterior” e da perspetiva do que atualmente se define como “bom gosto”, acabam também por nos surpreender. E, é claro, os cabelinhos encaracolados não tinham nada de tão errado assim, refletindo simplesmente o gosto contemporâneo de então. E, sublinha ainda Vanderbilt, quando dizemos com condescendência “não acredito que era capaz de ir assim para a rua”, não colocamos sequer a hipótese de que aquilo que temos vestido agora será, muito provavelmente, considerado mau gosto no futuro.
Uma nota curiosa sobre esta temática em questão é o facto de a profissão de “removedores de tatuagens” parecer estar cada vez mais em alta. Afinal escrever no nosso corpo aos 20 anos que “amo-te para sempre, Carina Vanessa” tem muito poucas probabilidades de fazer sentido algum tempo depois. Ou imaginarmos alguém com tendências maoistas que tatuou, na juventude, uma bonita foice e um martelo no antebraço e, décadas mais tarde, morre de vergonha – caso não tenha recorrido aos serviços de limpeza em causa - enquanto partilha uma sauna com CEOs capitalistas. Não ia ser bonito de se ver.
Para o autor, uma das razões que nos impede de prever as nossas preferências futuras é exatamente uma das coisas que contribui para que as nossas preferências se alterem: a novidade. Mas, na ciência do gosto e das preferências, a novidade é apenas um fenómeno elusivo e fugidio.
A questão é que, se por um lado ansiamos por o que é novo, por outro também gostamos do que nos é familiar, sendo muitas as pessoas que acreditam que gostamos daquilo a que estamos habituados.
Todavia, não é bem assim – o “não é bem assim” é também uma constante neste livro – porque se assim fosse, nada nunca mudaria. Recorrendo a Joseph Schumpeter, um dos primeiros economistas a considerar as inovações tecnológicas como motor do desenvolvimento capitalista, Vanderbilt recorda que o também cientista político austríaco argumentava que o papel do capitalismo era o de ensinar as pessoas a desejar (e a comprar, é claro) coisas novas. Como escrevia, “os produtores estimulam a mudança económica e os consumidores são ensinados a ambicionar coisas novas, ou coisas que difiram de algum modo daquilo que estão habituadas a usar”. E, para tornar mais contemporânea esta dualidade entre a novidade e a familiaridade, o autor não se esqueceu da célebre citação de Steve Jobs, a qual definiu, ao longo de muito tempo a filosofia da própria Apple: “muitas vezes as pessoas não sabem o que querem até que alguém lhes mostre”.
Evolução, neurónios hipsters e macaquinhos de imitação
Sendo assim, o que conta mais, o que é novo ou o que nos é familiar? Qualquer coisa no meio de ambos, responde Vanderbilt: “gostamos do que é novidade desde que esta nos lembre, pelo menos um bocadinho, algo do velho”. O que afinal bate certo com a evolução da própria espécie humana: somos programados tanto para a familiaridade como para a novidade. E se pensarmos por um instante, é verdade que sentimos uma onda de excitação por algo que é novidade, mas também sabemos que esse sentimento acaba por ser rápido e efémero, ao passo que aquilo que nos é familiar tem mais “longevidade”, o que o autor interpreta como um preconceito inato e biológico contra os extremos e nos brinda com a bela frase “o que não nos matou antes é bom para nós agora”.
Mas a história não fica por aqui. Enquanto máquinas em movimento perpétuo, que oscilam entre a novidade e a familiaridade, as nossas preferências são também influenciadas por movimentos subtis – ou nem tanto – de pessoas que tentam ser parecidas entre si, partilhando os mesmos gostos – e de pessoas que tentam ser diferentes umas das outras, tentando distinguirem-se entre si para serem “únicas”. E, antes de mais, saiba que este desejo simultâneo de “ser parecido e ser diferente” não é um traço exclusivamente humano. O autor faz referência a um estudo zoológico no qual um chimpanzé - fêmea, como seria expectável - decidiu colocar uma folha de uma árvore por trás da sua orelha, por nenhuma razão em especial, pensa-se, e os demais chimpanzés, sem resistirem ao atraente look, de imediato a copiaram.
Na sua pesquisa, Touboul “encontrou” neurónios que se comportam como hipsters, na medida em que “disparam quando todos os demais neurónios à sua volta estão quietos ou que ficam em silêncio quando todos outros começam a tagarelar”.
Mas e de regresso à nossa espécie, ou à subespécie dos que desesperadamente ambicionam pertencer ao grupo mais cool de todos, mas manter em simultâneo a sua “marca original”, Vanderbilt cita o matemático e neurocientista francês Jonathan Toubol, o qual identificou o fenómeno do “ser parecido tentando parecer diferente”, denominado “efeito hipster” ou “hipster loop” (se tiver um filho jovem adulto saberá, finalmente, o que raio é que é isso do ser-se hipster).
Na sua pesquisa, Touboul “encontrou” neurónios que se comportam como hipsters, na medida em que “disparam quando todos os demais neurónios à sua volta estão quietos ou que ficam em silêncio quando todos outros começam a tagarelar”. A sua principal premissa é que as pessoas (tal como os neurónios) não percebem de imediato qual a tendência da moda vigente, existindo sempre um “retardamento” face ao que se apresenta como mainstream em determinada altura. E, quando esse atraso é grande o suficiente, os que pretendem ser “do contra” acabam por, de forma inadvertida, sincronizarem-se com os demais. Ou, como explica Vanderbilt: “ao contrário dos ‘sistemas cooperativos’, nos quais toda a gente pode concordar, de forma coordenada, sobre que tipo de decisões devem ser tomadas, o efeito hipster ocorre quando as pessoas tentam tomar decisões que são opostas às da maioria. Mas porque ninguém sabe exatamente o que os outros vão fazer a seguir, e a informação pode ter ruído ou estar desfasada, é normal existirem os tais períodos de breve sincronização nos quais os não-conformistas acabam por ficar acidentalmente alinhados com a maioria”.
Assim e ironicamente, e porque existem graus variados de hipness, uma pessoa poderá optar por adotar uma tendência um pouco mais tarde do que outra, sendo depois seguida por outra, e ainda por outra, até já não existir nada de novo na dita tendência. Ou, em suma, a busca da distinção poderá também gerar conformidade e a verdade é que somos todos também, em maior ou menor grau, extremamente influenciáveis por aquilo que é popular em determinada altura: estejamos a falar do movimento vegan, da música Happy, de Pharrell Williams, ou do “Prometo falhar”, o livro que mais vezes vi repousar nas barrigas ou nas toalhas de praia de ilustres veraneantes do verão de 2016 (mesmo que não compreenda tal preferência).
Uma outra característica comum aos gostos de todos nós prende-se com a denominada “sabedoria da multidão”, a qual deita por terra a nossa singularidade ou espontaneidade gustativa face a uma obra de arte, a um filme ou a uma obra arquitetónica. Dando como exemplo – e bem escolhido – os visitantes do Louvre, quantos de nós tiveram a coragem de não exibir o seu mais teatral “oh, que maravilha” perante a obra prima de Da Vinci, a feia (e que o génio italiano me perdoe) mas famosíssima Mona Lisa, comparativamente a outras obras menos re(conhecidas)? Estes comportamentos de carneirada universal, foram analisados pelo psicólogo Leon Festinger que, em 1957, deu a conhecer a sua teoria da “dissonância cognitiva”, que tem como ponto de partida o facto de as pessoas partilharem a tendência comum de tentarem alinhas as suas crenças e experiências, gerando-se um conflito interno quando não o fazem.
Dos homens das cavernas que tentavam descobrir que alimentos eram venenosos aos críticos de serviço do TripAdvisor e afins
Sobre as duas forças aparentemente contraditórias que também definem o comportamento humano – a imitação, porque enquanto estratégia adaptativa evolucionária nos dá imenso jeito – e a distinção, porque adoramos pensar que somos diferente e originais e que assinalar a nossa identidade singular é obrigatório – Vanderbilt convoca os ensinamentos dos antropólogos Robert Boyd e Peter Richerson, autores de” Not By Genes Alone”. Para estes investigadores, as pessoas imitam os seus pares, e a cultura torna-se adaptativa, porque aprender com os outros é muito mais eficaz e dá muito menos trabalho do que tentarmos por nós próprios inovar, gastando tempo e energia preciosos. Vanderbilt dá um salto na história – o que também é estratégia comum no seu livro – e argumenta que os cibernautas que se limitam a ler as críticas no Netflix ou no TripAdvisor não são muito diferentes dos nossos antepassados quando tentavam perceber que tipo de comida era venenosa ou onde se localizava o melhor sítio para encontrar água.
Mas e por seu turno, se ninguém tivesse a coragem de experimentar coisas novas, não existiria qualquer tipo de evolução, sendo que, na espécie humana, reina uma espécie de equilíbrio entre a aprendizagem social e a “inovação” individual, o que explica, mais ou menos, por que motivo os humanos se sentem permanentemente divididos entre pertencer a um grupo e demonstrarem, por outro lado, que são distintos do mesmo. Como escreve, todos nós desejamos sentir que as nossas preferências não são únicas mas, e em simultâneo, sentimos uma enorme ansiedade quando nos dizem que somos exatamente iguais aos demais. E isso pode explicar a raiva que sentimos quando chegamos ao local de trabalho e descobrimos que uma colega que detestamos, e que tem péssimo gosto, comprou na Zara exatamente o mesmo vestido que estreámos hoje.
Para fecharmos este capítulo, Vanderbilt sugere que se todos fossemos conformistas, não existiria gosto. Mas argumenta também o contrário, ou seja, não existiria gosto também se ninguém fosse conformista. Um exemplo para terminar: quando tentamos selecionar um determinado grupo que corresponda às nossas preferências – e à nossa necessidade de pertença – podemos escolher o dos nossos pares que adoram os Beatles, mas preferirmos antes declarar que somos fãs de John Lennon. Ou, e ainda em termos musicais, quantas vezes nos ouvimos dizer “ah, sim, gostava dos Xutos, mas antes de eles serem conhecidos”? Assim, e na mesma medida em que buscamos a novidade, os nossos gostos podem-se transformar numa rejeição consciente de algo que veio antes – sim, gostava da banda X antes de esta se tornar famosa – e de distanciação daqueles que passaram a ter o mesmo gosto. Afinal, nós somos únicos e detestamos seguir a carneirada. Para além de desejarmos ser reconhecidos pelo nosso extremo bom gosto, o qual pode refletir também o nosso prestígio e estatuto social.
Nós e os outros, snobismo e a distinção entre classes
Como seria de esperar, Vanderbilt não foi pioneiro na literatura que tenta dissecar a natureza das preferências humanas. E por um conjunto de razões aparentemente não relacionadas entre si – sociológicas, religiosas ou filosóficas – foi no século XVIII que mais importante se tornou distinguir as preferências, na medida em que estes ditavam a linha que separava o bom do mau gosto e, consequentemente, a distinção entre classes.
Kant foi um dos grandes responsáveis pela introdução da apreciação estética moderna [em A Crítica do Julgamento], abrindo caminho para a capacidade de se admirar o belo como uma marca exclusiva das pessoas mais “civilizadas” e para preparar o terreno para o (bom) gosto se transformar numa função de determinada classe social, enquanto o também filósofo Hume afirmava [em “Of the Standard of Taste] que e no que respeita à apreciação individual da arte,” é necessária uma ‘certa delicadeza’ para perceber a sua beleza”.
Na verdade, e ao longo da maior parte da história moderna, o gosto foi utilizado como uma medida por excelência para traçar fronteiras bem definidas entre o “bom” e o “mau”, ou entre as classes sociais elevadas e as classes baixas. A capacidade para identificar escolhas socialmente apropriadas na literatura clássica, na arquitetura ou na música, em conjunto com a avaliação do comportamento humano com base na proveniência do seu serviço de mesa de porcelana, conferiu às “elites” os meios necessários para a distinção entre “nós” e os “outros”.
Já no século XX, o sociólogo francês Pierre Bordieu, autor de La Distinction, argumentava que aqueles com maior volume de capital cultural – ativos sociais não financeiros, como a educação, a qual promove a mobilidade social para além dos meios económicos – eram os mesmos que determinavam o que consistia o bom gosto no interior da sociedade. Assim, a predisposição para se preferir certo tipo de comida, música ou arte seriam ensinados e instilados desde tenra idade, sendo estes mesmos gostos específicos os que orientariam as crianças de acordo com as suas posições sociais “adequadas”. Ou seja, e na prática, acusava o sociólogo francês, quando um membro de uma classe “alta” e movida a “bom gosto” se deparava com a cultura ou a arte apreciada por alguém de uma classe social inferior à sua, e graças ao desenvolvimento de uma aversão relativa às preferências e comportamentos dos “outros”, facilmente sentia “repugnância, provocada pelo horror ou por uma intolerância visceral face aos (maus) gostos” daqueles que não pertencem à sua classe social.
Uma curiosidade relatada no livro de Vanderbilt, que explora bem as teorias de Bordieu, prende-se com o ano em que o livro do sociólogo francês foi editado do Reino Unido, em 1984. E, mesmo sem uma distinção de classe demasiado snobista, a verdade é que na altura “gostar dos The Smiths fazia de alguém uma pessoa muito mais interessante do que aqueles que preferiam os Dire Straits” (e esta preferência eu percebo).
Algoritmos, estrelinhas e os idiotas que acreditam nas críticas online
Apesar de o autor ter mergulhado numa quantidade considerável de investigação, ensaios, experiências e literatura sobre a anatomia das preferências humanas ao longo dos últimos dois séculos, o que talvez maior interesse desperte aos leitores em “You may also like” é, e sem surpresas, o grande negócio que envolve os “likes” na atualidade, em conjunto com a maior panóplia de opções de que temos ao dispor exatamente na era da Internet e das escolhas infinitas.
Se é verdade que a ciência das preferências ganhou substância desde as origens da publicidade, não existem dúvidas de que a Internet a invadiu com um conjunto de novas áreas de operações. Comparativamente à televisão, que já gozava de uma grande dose de influência nos nossos gostos e escolhas, para Vanderbilt a Internet é infinitamente mais bem-sucedida na medida em que consiste num “instrumento de precisão que parece saber quem somos e adivinhar o que mais provavelmente estamos dispostos a gostar – e a comprar”.
E, na verdade, quase que adivinha, sim. Vanderbilt falou com um conjunto significativo de pessoas cujo trabalho reside na criação de algoritmos, sendo estes derivados das gigantescas quantidades de dados colecionadas a partir dos cliques que todos fazemos e que resultam numa “impressão digital do gosto” para cada um de nós, consumidores, que utilizamos websites ou apps. E perceber a sofisticação atual das estratégias de marketing online e a sua evolução ao longo dos últimos anos foi também umas das preferências claras que o jornalista decidiu incluir no seu livro.
Para as marcas que continuam a gastar milhões em publicidade televisiva, a sua estratégia parece ser, no mínimo, estúpida. Sim, é verdade que nem toda a gente tem acesso à Internet, mas continuar a gastar o tempo dos consumidores e, mais grave que isso, o seu próprio dinheiro em anúncios que continuamos a ver ininterruptamente mesmo depois de estarmos convencidos a preferir um iogurte que nos faz ter um “corpo Danone” ou uns cereais que dão imensa energia aos nossos filhos, este despesismo parece não fazer sentido algum na era do online e da publicidade “à medida”. Pelo contrário, a estratégia cada vez mais utilizada na Internet para convencer os consumidores a aderirem a algum produto é exatamente oposta à que ainda vigora na televisão: “os algoritmos não têm como objetivo gerar recomendações sobre produtos que já estamos habituados a comprar, nem sequer é suposto que sejam utilizados para recomendar determinados produtos simplesmente porque milhões de pessoas os adquiriram”, escreve.
Afirmando que a própria Netflix cometeu o enorme erro de seguir esta estratégia – convidando constantemente os seus utilizadores a verem a série “Narcos”, por exemplo, mesmo depois de estes já estarem “viciados” na mesma – a verdade é que também souberam perceber que as suas recomendações não deveriam ser baseadas no que os utilizadores afirmaram assistir – e também porque as pessoas tendem a exagerar no número de filmes e documentários que assistem - mas antes em tentar perceber no que realmente desejamos assistir com base no que realmente já assistimos anteriormente.
Vanderbilt escreve, por exemplo, que “qualquer pessoa que acredite no Yelp é idiota” e que as críticas dos utilizadores são governadas por uma “mentalidade em pacote” e por um narcisismo que raia o ridículo quando se escreve “que o meu copo de vinho não foi devidamente enchido”
Atualmente, a Netflix sabe exatamente o que vimos – e, no caso de uma série, se assistimos à temporada inteira ou se desistimos em determinado episódio. E o mesmo acontece, por exemplo, com a Pandora (atualmente mais sofisticada do que o Spotify, devido à oferta de uma “rádio personalizável” para cada utilizador, com base no que este já gostou ao longo do tempo em que utilizou o seu serviço de streaming). Na verdade, há muito que a Amazon, e não só, utiliza estes algoritmos, os quais acabam por construir uma imagem nossa, idealmente de maior confiança do que aquela que temos de nós próprios, para ser utilizada na publicidade à medida exata dos nossos gostos.
Vanderbilt quis igualmente analisar o fenómeno das reviews online, na medida em que acabamos por nos vergar ao acesso instantâneo que temos a centenas ou milhares de opiniões não solicitadas sobre determinado produto, local, hotel, restaurante ou o que quer que seja. Na verdade, diz, não resistimos em procurar saber, antecipadamente, que se algo pode correr mal, o quão mal pode correr. Todavia, e citando Ruth Reichl, uma reconhecida crítica gastronómica, Vanderbilt escreve, por exemplo, que “qualquer pessoa que acredite no Yelp é idiota” e que as críticas dos utilizadores são governadas por uma “mentalidade em pacote” e por um narcisismo que raia o ridículo quando se escreve “que o meu copo de vinho não foi devidamente enchido”.
Um dado curioso é o de que as críticas tendem a ser, na esmagadora maioria das vezes, “assimetricamente bimodais”, formando uma curva em J, na medida em que existem muitas pontuações elevadas no extremo superior, um número mais pequeno de más críticas no extremo inferior, e nada no “meio”. E se esse número superior de avaliações elevadas pode refletir uma “positividade enviesada” – existem vários estudos que demonstram que se a primeira crítica é boa, as que se seguem são igual e tendencialmente positivas também – o mesmo pode acontecer com o seu oposto, ou seja, se a primeira for negativa, lá se vão os likes enquanto chovem os dislikes.
Uma das explicações para a proporção reduzida de críticas intermédias deve-se ao facto de existir apenas uma fração mínima e muito limitada de clientes que perdem o seu tempo a escrever críticas, simplesmente porque tiveram uma experiência excecionalmente boa ou excecionalmente má – o que, e em termos estatísticos, não será, muito provavelmente, a experiência que cada um de nós poderá vir a ter. A confiança nas críticas dos consumidores é igualmente comprometida pelo fenómeno da “inflação da pontuação”, que consiste na possibilidade de os compradores poderem avaliar os vendedores e vice-versa, como acontece com os serviços da Uber ou do eBay.
Depois de analisar o mundo dos motores de busca, em particular em websites como a Amazon, a Netflix ou o TripAdvisor, exatamente para aferir até que ponto é que os algoritmos conseguem prever as nossas preferências, e depois de tentar perceber o quão influenciados somos pelas críticas online, Vanderbilt não esconde a sua surpresa em ambos os casos. No primeiro, surpreendeu-o a transparência encontrada nos algoritmos do big data que interpretam sem cessar o fluxo de informação “biográfica” que vamos gerando e que realmente parecem saber exatamente o que somos com base naquilo que gostamos. No segundo caso, o choque é negativo (ou ingénuo): são vários os estudos que indicam que cerca de 70% dos “críticos” da Amazon não leram o livro X, o mesmo acontecendo com os clientes que nunca puseram os pés no hotel Y. E, cereja em cima do bolo, os websites em que as reviews são um must-have são exatamente os mesmos que utilizam algoritmos específicos para gerar… críticas falsas.
No capítulo que conclui o livro, Tom Vanderbilt esforça-se por clarificar as dinâmicas multifacetadas das nossas predileções, mas assume, com honestidade, que a temática em causa permanece como “um empreendimento esquivo, enlouquecedor e idiossincrático”.
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