A 9 de julho, Miguel Ribeiro apresentou, na Sociedade de Geografia, a segunda edição do livro "Beyond Darwin, the Program Hypothesis” (“Para além de Darwin, a Hipótese do Programa”) com edição apenas em inglês e publicado na Amazon.com e que contou com um texto de apresentação de António Damásio. Um livro, e sobretudo um trabalho de investigação, que o colocou, como ele próprio afirma, num território difícil que “nem é de Deus, nem de Darwin”. Uma forma de apresentar a tese que desenvolveu sobre a origem do universo e que não passa nem pela religião nem pelo evolucionismo e que foi o tema com que lançou o primeiro livro, em 2013, intitulado “Universo Programado, uma alternativa ao Darwinismo e à religião”, editado pela Gradiva mas que o próprio considera já não corresponder hoje ao seu pensamento, atendendo à investigação que realizou desde aí.
Até aqui, seria um lançamento como outros que preenchem a agenda editorial, não fosse o facto de nem o autor ser presença habitual nestas lides, nem o tema ser a teoria que mais se espera sobre a génese e o sentido do universo. Estamos a falar de um médico de medicina interna, com uma carreira de mais de 40 anos, diretor clínico da Clínica Médica Internacional de Lisboa que se tornou pensador “obcecado” como gosta de dizer sobre os meandros da vida na sua essência científica.
Uma investigação e uma reflexão que o levou a receber uma bolsa permite dizer sem veleidade que este não é “mais” um livro sobre o tema que desde sempre fascina a humanidade. “Neste livro, Miguel Ribeiro abordou um dos temas mais complexos e controversos que a humanidade enfrenta: as origens e o curso de evolução da vida. É um esforço sério, mais que isso corajoso, reflexivo, informado e tão livre de preconceitos quanto possível dado o tópico. Os resultados são surpreendentes e merecem atenção”, escreveu António Damásio no prefácio.
Vamos então entrar na matéria prima propriamente dita.
“O Darwinismo veio influenciar toda a ciência porque um universo onde a vida apareceu por acidente e evolui por erros de cópia do ADN é necessariamente um universo aleatório. Futuyma exprimiu de outra forma a premissa aleatória: “o conceito de intencionalidade não tem cabimento na explicação científica.”
A primeira frase do livro espelha desde logo a principal discórdia de Miguel Ribeiro: “Pelo contrário, este livro está centrado na tentativa de demonstração de que o acaso é incapaz de gerar complexidade e, além disso, que o universo está impregnado de intencionalidade.
“A segunda observação visa sublinhar que uma evolução aleatória do universo e da vida é inconciliável com a ideia de Deus. Por outras palavras, ser-se crente e alegar-se Darwinista - devido à irrefutável evidência da evolução, tanto através do evolucionismo como do registo fóssil - é uma contradição. Mas idêntica contradição é pertencer ao número crescente de físicos que subscrevem a tese do universo como informação e se consideram Darwinistas. Isto porque processamento e comunicação de informação é intolerante ao erro, portanto não passível de tratamento aleatório ou, dito de outro modo, o universo como informação pressupõe intencionalidade”.
Procurando simplificar o que é tudo menos simples. Para Miguel Ribeiro, é incompatível alguém acreditar que Deus, qualquer Deus ou entidade divina, criou o mundo e ao mesmo tempo reconhecer que esse mundo foi evoluindo de forma aleatória, sem qualquer intenção prévia (o que é um dos pilares ciência contemporânea com Darwin como um dos seus expoentes).
Mas, na sua perspectiva, é igualmente inconciliável para aqueles que olham o mundo pela lente da ciência reconhecerem em Darwin a explicação da origem do universo e ao mesmo tempo definirem o universo um mega sistema de informação – “como um computador, como uma estrutura matemática, como um holograma ou como informação propriamente dita”. Porquê? Porque esta tese, na opinião do autor, não é compatível com o erro como processo de evolução e porque, na sua perspectiva, o “universo como informação” pressupõe uma intenção e não acaso.
Logo no início do livro, Miguel Ribeiro lança as perguntas e sintetiza respostas que vai detalhar ao longo da obra: “E como é que a ciência mainstream coabita com as teorias da informação? Como o faz com tantos outras questões espinhosas, assumindo que, se a explicação religiosa está incorreta (como o provam a evolução e o registo fóssil), então, por exclusão de partes, por ser a única alternativa em jogo, o Darwinismo tem que estar correto”.
A partir daqui a tese apresentada em “Para além de Darwin, a Hipótese do Programa” torna-se mais e mais exigente para quem lê.
Regressemos às palavras do autor.
“E por que é que o acaso é incapaz de gerar complexidade? Começarei por tentar demonstrar que o multiverso não explica as leis da física e que as leis da física não explicam a emergência e evolução do universo e da vida. O primeiro obstáculo ao aparecimento do nosso universo pelo acaso é o rigoroso conjunto de leis e constantes, as chamadas “coincidências cósmicas”. Por exemplo, qualquer desvio infinitesimal de qualquer dos valores das constantes da natureza impossibilitaria o nosso universo complexo. Para lidar com a questão das coincidências cósmicas a teoria mais comummente aceite é que existem múltiplos ou infinitos universos. (...) Antes de tentar justificar estas afirmações, quero dizer duas coisas: Em primeiro lugar, salientar que tanto o darwinismo como a hipótese do programa descrevem exatamente a mesma história no que diz respeito à emergência e evolução do universo e da vida. No entanto, porque o acaso é incapaz de gerar complexidade - e exclusivamente por essa razão - um programa torna-se indispensável para explicar o universo e a vida” (...)”.
É este o território em que Miguel Ribeiro avança com uma explicação alternativa, a da efetiva existência de uma intenção no universo expressa através de um “programa” como o designa. Um programa que não é um sinónimo de Deus criador, mas sim o conceito que usa para definir um sistema de informação que explica de onde vimos, como tudo começou e que, na sua perspectiva, lança as bases para compreendermos para onde vamos – assim entendamos a lógica desse “programa”.
Vejamos um dos exemplos apresentados para materializar a ideia de como um programa rege ou organiza a informação.
“(...) uma dessas leis, e intransponível barreira no percurso para a complexidade é o segundo princípio da termodinâmica que determina que a evolução de um sistema isolado (como o nosso universo) é sempre para a desorganização progressiva; por exemplo, um copo parte-se em mil pedaços, mas o oposto nunca poderá ocorrer espontaneamente. Da mesma forma, sem um programa, a única evolução possível do plasma de radiação e partículas a seguir ao Big Bang, seria para a homogeneidade total, e nunca para a dinâmica teia de astros que constituem o cosmos que conhecemos. Assim, como é evidente pelo exemplo do copo partido, sem um programa, a história do universo só seria termodinamicamente admissível se contada por ordem cronologicamente inversa, quer dizer, partir do complexo universo atual para a sopa de partículas que se seguiram ao Big Bang.”
“Este é o universo como um computador, que explica não apenas a história do universo, mas também a origem e características das leis, constantes e equações matemáticas, que, em vez duma fenomenal cadeia de acasos, são os parâmetros do software proposto”
A tese defendida pelo médico-investigador é suportada por conhecimentos de várias ciências que concorrem entre si para explicar o universo, da biologia à química, da física à filosofia. Uma tese que aborda o universo “como uma máquina de movimento perpétuo” (nada se cria, nada se perde, tudo se transforma) e que segue “uma evolução para a complexidade por uma teia de eventos obedecendo ao princípio da causalidade”. “Este é o universo como um computador, que explica não apenas a história do universo, mas também a origem e características das leis, constantes e equações matemáticas, que, em vez duma fenomenal cadeia de acasos, são os parâmetros do software proposto”, escreve Miguel Ribeiro.
Uma tese que contesta o darwinismo como principal suporte da explicação da evolução da vida não poderia passar ao lado do conceito de seleção natural. E não passa.
“Mas se a seleção natural explica a vida, o aspecto mais complexo do universo conhecido, não será o resto um mero detalhe por apurar? A questão é que a seleção natural, como tentarei mostrar a seguir, não explica sequer a evolução da vida, isto é, nada mais faz que promover a robustez das espécies, mas sem qualquer papel criativo. E na verdade, os saltos na cadeia evolutiva: " universo de partículas –> universo de átomos –> cosmos + universo da química –> ácidos nucleicos – > vida", é equivalente aos passos "bactéria –> Eucariotas –> Linhagem dos vertebrados –> auto consciência". “
Mas o que interessa efetivamente ao autor é a ideia do acaso, e a sua contestação como processo na origem do universo. É essa a espinha dorsal da investigação e é aí que encontra explicações alternativas.
“E isto remete-nos para a questão da origem da vida e porque não pode ter surgido por um acaso. A perspectiva dominante é a de que uma vez que a ciência consiga explicar o aparecimento espontâneo de estruturas/moléculas tão complexas como a membrana celular, os ácidos nucleicos e os aminoácidos, na presença de energia a emergência da vida estaria essencialmente explicada. Mas isto é como presumir que, dado um armazém (o equivalente à “membrana celular”), o enchê-lo com maquinaria e matéria-prima providenciando, ao mesmo tempo, uma fonte de energia, seria suficiente para daí resultar automaticamente uma linha de produção. Isto para dizer que qualquer solução que não inclua a senciência é demasiado simplista porque é o programa senciente no genoma que, como um comando central, gere a fábrica química que cada organismo realmente é, seja ele uma bactéria, uma planta ou um mamífero.”
Damos deliberadamente aqui um salto para os parágrafos que encerram esta introdução – sim é só uma introdução, este não é um livro para que procura hipóteses simples e pouco fundamentadas sobre como tudo começou e como podemos olhar para a evolução.
Diz o médico e autor: “a hipótese do programa é reforçada pela analogia entre computador e universo. Assim, um jogo de computador pode em última análise ser reduzido ao seguinte diagrama: 1- eletrões (a corrente eléctrica que alimenta o computador é um fluxo de eletrões) são convertidos pelo programa em padrões de zeros e uns, que por sua vez o programa transforma na projeção audiovisual no monitor. Da mesma forma o programa do universo converte objetos quânticos em padrões de átomos que o cérebro dos seres vivos transforma no mundo da sua perceção. Curiosamente, e reforçando a analogia, nem a projeção no monitor nem a nossa perceção do mundo revelam o seu verdadeiro substrato – respectivamente padrões de zeros e uns e padrões de átomos e radiação.
Assim, deixando de lado as explicações religiosas e da ciência “mainstream”, descobrimos estar numa nova fronteira: a da tese do computador, conforme defendida por Seth Lloyd, Nick Bostrom e muitos outros. Mas para abraçar coerentemente o universo como computador, é necessário renunciar à premissa de mutação aleatória que obriga a um universo aleatório. E é aí que este livro entra, como uma tentativa de mostrar que a complexidade é irrealizável pelo acaso e propor um modelo do surgimento e evolução da vida consistente com o universo visto como informação.“
É esta a proposta de interpretação que Miguel Ribeiro nos apresenta em “Para além de Darwin, a Hipótese do Programa”. Uma proposta que não ficaria completa sem uma pergunta essencial: se entendermos o universo como um programa, isso significa que há um programador? Estamos, com suporte na ciência e na informação, a encontrar uma outra definição de Deus?
“Essencialmente programador e o Deus das religiões diferem em que o programador criou este jogo e portanto o homem, enquanto que o homem criou Deus”, escreve o médico. “Ao contrário do Deus das religiões, o programador parece ser uma entidade não- interveniente, a julgar pela percepção que temos da imutabilidade das leis da física e da história do universo como uma ininterrupta teia de causalidades (...) e contrariamente ao dogma comum a todas as religiões e ao “desenho inteligente”, não existe vida depois da morte - a senciência esfuma-se uma vez perdido o seu suporte material (ácidos nucleicos em organismos unicelulares, o cérebro nos pluricelulares), libertando moléculas e átomos para integrar a inexorável reciclagem de poeira estelar. E o ser humano também não é o centro da criação de Deus mas, como qualquer outra é, pelo contrário, uma espécie de passagem, um mero degrau na imensa escadaria da vida que se segue.”
Nota: Artigo editado às 18h50 para corrigir informação sobre o texto de António Damásio e sobre as edições disponíveis do livro de Miguel Ribeiro.
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