Capítulo 1
A PEQUENINA
Queriam um rapaz, mas tiveram‐me a mim.
Uma rapariga. A terceira filha, a nanica da família.
— Ainda bem que és inteligente porque beleza não tens nenhuma — diz‐me muitas vezes a minha mãe. Talvez queira dizer que nunca serei bonita. Ou talvez este elogio envolto em crítica seja a sua forma de me encorajar a estudar com afinco. Motivação expressa como advertência. Talvez me esteja a tentar poupar a alguma sina invisível. Talvez me esteja a tentar dar uma imagem melhor de quem poderei ser. — Podes aprender a cozinhar noutra altura — disse‐me ela quando lhe pedi para me ensinar a entrançar o challah ou a fritar frango ou a fazer a compota de cereja que ela produz no verão e guarda para o resto do ano. — Volta para a escola.
Hoje, estou diante do espelho da casa de banho do nosso apartamento, a escovar os dentes, a preparar‐me para ir para a escola. Observo o meu reflexo. É verdade que não sou bonita? Sou bailarina e ginasta, o meu corpo é delgado e musculado. Gosto da minha força. Gosto do meu cabelo castanho ondulado — embora a Magda, a minha irmã mais velha, seja a mais bonita. Contudo, quando encontro os meus olhos no espelho, quando mergulho naquele misterioso e familiar azul‐esverdeado, não consigo identificar o que vejo. É como se estivesse do lado de fora da minha vida, a olhar para dentro, a ver‐me como uma personagem de um romance, o seu destino desconhecido, o seu coração e a sua personalidade, ainda em desenvolvimento.
Acabei de ler um dos romances da minha mãe, Nana, de Émile Zola, roubado da estante e devorado em segredo. Não consigo esquecer aquela última cena. Nana, a artista linda e chique, aquela que era desejada por tan‐ tos homens, está deitada, enfraquecida e doente, o corpo cheio de feridas da varíola. Há algo aterrador na forma como o seu corpo é descrito. Mesmo antes da varíola, mesmo quando ainda era bela e encantadora, o corpo dela era perigoso. Uma arma. Ameaçador, algo a que se devia prestar atenção.
No entanto, era desejada. Estou desejosa de sentir um amor assim. De ser vista e considerada como um tesouro. De ser bombardeada com afeto, saboreada como um banquete.
Em vez disso, ensinam‐me a ser prudente.
— Tomar banho é como lavar a loiça — disse‐me a minha mãe. — Começa pela loiça de vidro, depois continua com os tachos e com as pane‐ las. — Guardar o mais sujo para o fim. Até o meu próprio corpo é suspeito.
A Magda bate à porta da casa de banho, farta de esperar pela sua vez.
— Para de sonhar, Dicuka — queixa‐se ela. Usa o nome carinhoso que a minha mãe inventou para mim. Ditzu‐ka. Normalmente, estas sílabas sem sentido dão‐me conforto. Hoje, são ríspidas e ressoam.
Passo apressada pela minha irmã, em direção ao quarto que partilha‐ mos, para me vestir, ainda a pensar na rapariga no espelho — a rapariga que anseia por amor. Talvez o tipo de amor que desejo seja impossível. Passei treze anos a costurar as minhas experiências e memórias na história de quem sou, uma história que parece revelar que estou estragada, que não sou querida, que não pertenço.
Como naquela noite, quando tinha sete anos, e os meus pais deram um jantar. Mandaram‐me ir encher um jarro de água, e da cozinha ouvi‐os dizer a brincar:
— Escusávamos de ter tido aquela. — Queriam dizer que, antes de eu nascer, já eram uma família completa. Tinham a Magda, que tocava piano, e a Klara, um prodígio no violino. Eu não acrescentava nada. Não era necessária, não era suficientemente boa. Não havia espaço para mim.
Testei esta teoria quando tinha oito anos e decidi fugir de casa. Queria ver se os meus pais reparavam sequer que eu tinha desaparecido. Em vez de ir para a escola, apanhei o elétrico para casa dos meus avós. Acreditava que os meus avós — o pai e a madrasta da minha mãe — me iriam encobrir. Eles travavam uma guerra interminável com a minha mãe em favor da Magda, escondiam bolachas na gaveta da cómoda da minha irmã. Para mim, representavam segurança. Eles davam as mãos, algo que os meus pais nunca tinham feito. Eram conforto absoluto — o cheiro a carne e feijão cozido, a pão doce, a cholent, um guisado rico que, no Sabbath, a minha avó levava à padaria para cozinhar, quando a prática ortodoxa não lhe permitia usar o seu forno.
Os meus avós ficaram felizes por me ver. Eu não tinha de atuar para ter o amor ou a aprovação deles. Era dado desinteressadamente, e passámos uma manhã maravilhosa na cozinha, a comer torta de noz. Mas, depois, a campainha da porta tocou. O meu avô foi atender. Pouco depois, entrou apressada‐ mente na cozinha. Ele era surdo, e lançou o seu aviso demasiado alto.
— Esconde‐te, Dicuka! — gritou. — A tua mãe está aqui! — Ao tentar proteger‐me, denunciou‐me.
O que mais me incomodou foi a expressão no rosto da minha mãe quando me viu na cozinha dos meus avós. Não foi só o ter ficado surpreen‐ dida por me ver ali — foi como se eu existir a tivesse apanhado de surpresa. Como se eu não fosse quem ela queria ou esperava que eu fosse.
No entanto, sou muitas vezes a sua companhia, sentada com ela na cozinha quando o meu pai está fora em viagens de negócios a Paris, a encher malas com sedas para a sua loja, a minha mãe rígida e vigilante quando ele regressa, preocupada por ele poder ter gastado muito dinheiro. Ela não convida amigas para a visitarem. Não havia mexericos breves na sala, nem discussões sobre livros ou política. É a mim que a minha mãe conta os seus segredos. Gosto do tempo que passo sozinha com ela.
Uma noite, quando eu tinha nove anos, estávamos sozinhas na cozinha. Ela estava a embrulhar o que sobrara de um strudel que fizera com massa que eu a vira a cortar à mão e a entrançar como uma peça de linho pesada sobre a mesa da sala de jantar.
— Lê para mim — pediu, e eu fui buscar o exemplar gasto de E Tudo o Vento Levou, que estava na sua mesa de cabeceira. Já o tínhamos lido uma vez. Começámos a lê‐lo outra vez. Parei na dedicatória misteriosa, escrita em inglês, na folha de rosto da obra traduzida. Era a caligrafia de um homem, mas não a do meu pai. A única coisa que a minha mãe disse foi que o livro tinha sido um presente de um homem que ela conhecera quando trabalhara no Ministério dos Negócios Estrangeiros, antes de conhecer o meu pai.
Estávamos sentadas em cadeiras de espaldar direito perto do forno a lenha. Quando líamos juntas, eu não tinha de a partilhar com mais ninguém. Mergulhava nas palavras e na história, e na sensação de estar sozinha num mundo com ela. Scarlett volta a Tara no fim da guerra e descobre que a mãe morreu e que o pai está destruído pelo desgosto. «Juro por Deus», diz Scarlett, «que nunca mais passarei fome.» A minha mãe fechou os olhos e encostou a cabeça ao espaldar da cadeira. Eu queria trepar para o colo dela, pousar a minha cabeça no seu peito. Queria que ela pousasse os lábios no meu cabelo.
— Tara... — disse ela. — A América, isso sim, seria um lugar digno de ser visto. — Desejava que ela dissesse o meu nome com a mesma suavidade com que fala sobre um país onde nunca esteve. Para mim, todos os deliciosos cheiros da cozinha da minha mãe se misturavam com o drama da fome e da abundância; sempre, mesmo na abundância, aquela saudade. Não sabia se a saudade era dela ou minha, ou algo que partilhávamos.
Estávamos sentadas com o lume entre nós.
— Quando tinha a tua idade... — começou ela.
Agora que ela estava a falar, eu tinha medo de me mexer, medo de que ela não continuasse se eu o fizesse.
— Quando eu tinha a tua idade, os bebés dormiam juntos, e eu e a minha mãe partilhávamos uma cama. Uma manhã, acordei porque o meu pai me estava a chamar: «Ilonka, acorda a tua mãe. Ela ainda não fez o pequeno‐almoço nem preparou a minha roupa.» Virei‐me para a minha mãe, que estava ao meu lado debaixo dos cobertores. Mas ela não se mexia. Estava morta.
Eu queria saber todos os detalhes daquele momento em que uma filha acorda ao lado da mãe que já perdeu. Também queria afastar o olhar. Era demasiado aterrador pensar nisso.
— Quando a sepultaram nessa tarde, pensei que a tinham enterrado viva. Naquela noite, o meu pai disse‐me para fazer o jantar para a família. Então, foi isso que fiz.
Esperei pelo resto da história. Esperei pelo ensinamento no final, ou pelo conforto.
— Está na hora de ir para a cama — foi tudo o que a minha mãe disse. Baixou‐se para varrer as cinzas que estavam debaixo do fogão.
Passos ecoaram no patamar em frente da nossa porta. Consegui sentir o cheiro do tabaco do meu pai antes de ouvir o tilintar das suas chaves.
— Meninas, — chamou ele, — ainda estão acordadas? — Entrou na cozinha com os sapatos brilhantes e fato elegante, o grande sorriso, um saco pequeno na mão que me entregou com um sonoro beijo na testa. — Ganhei outra vez — gabou‐se. Sempre que jogava às cartas ou ao bilhar com os amigos, partilhava os despojos comigo. Naquela noite, trouxe‐me um bolinho com uma cobertura de açúcar cor‐de‐rosa. Se eu fosse a minha irmã Magda, a minha mãe, que estava sempre preocupada com o peso da Magda, teria guardado a sobremesa, mas acenou com a cabeça dando‐me permissão para a comer.
Ela levantou‐se, afastando‐se do lume em direção ao lava‐loiça. O meu pai intercetou‐a, levantou‐lhe a mão para a poder rodopiar pela divisão, o que ela fez, rigidamente, sem sorrir. Ele puxou‐a para lhe dar um abraço, uma mão nas costas dela, a outra no seio. A minha mãe afastou‐o.
— Sou uma desilusão para a tua mãe — disse‐me o meu pai em voz baixa quando saíamos da cozinha. Ele queria que ela ouvisse, ou era um segredo destinado apenas a mim? De qualquer forma, foi algo que guardei para refletir mais tarde. No entanto, a amargura na voz dele assustou‐me. — Ela quer ir à ópera todas as noites, viver uma vida cosmopolita sofisticada. Eu sou só um costureiro. Um costureiro e um jogador de bilhar.
O tom derrotado do meu pai confundiu‐me. Ele é muito conhecido na nossa cidade, e bastante estimado. Brincalhão, sorridente, tranquilo, caloroso e divertido para se conviver. Sai com os muitos amigos que tem. Adora comida — principalmente, o presunto, que, por vezes, traz às escondidas para casa, comendo‐o diretamente do jornal em que está embrulhado, empurrando pedaços da carne de porco proibida para a minha boca, suportando as acusações da minha mãe de que ele é um mau exemplo. A sua loja ganhou duas medalhas de ouro. Ele não é apenas um fazedor de costuras uniformes e bainhas direitas. É um mestre da alta‐costura. Foi assim que conheceu a minha mãe — ela foi à loja dele porque precisava de um vestido, o trabalho dele fora‐lhe altamente recomendado. Contudo, ele desejara ser médico, não um costureiro, um sonho que o seu pai desencorajara, e, de vez em quando, o desapontamento consigo próprio vinha à superfície.
— Não és apenas um costureiro, papá — assegurei‐lhe. — És um estilista famoso!
— E tu vais ser a senhora mais bem vestida de Košice — disse‐me ele, acariciando‐me a cabeça. — Tens a figura perfeita para a alta‐costura.
Ele empurrou a sua deceção de volta para as sombras. Ficámos parados no corredor, nenhum de nós preparado para se afastar.
— Sabes, eu queria que fosses um rapaz — disse o meu pai. — Bati com a porta quando nasceste. Estava tão zangado por ter outra rapariga. Mas agora és a única com quem posso conversar. — Beijou‐me a testa.
Ainda adoro a atenção do meu pai. Tal como a da minha mãe, é preciosa... e precária. Como se o meu merecimento do seu amor tivesse menos que ver comigo e mais com a solidão deles. Como se a minha identidade não estivesse relacionada com nada daquilo que sou ou tenho, mas fosse apenas uma medida daquilo que fazia falta a cada um dos meus pais.
Quando me juntei à minha família à mesa do pequeno‐almoço, as minhas irmãs mais velhas cumprimentaram‐me com a canção que tinham inventado para mim quando eu tinha três anos e um dos meus olhos ficou torto por causa de um procedimento médico malsucedido.
— És tão feia, és tão insignificante — cantaram elas. — Nunca vais encontrar um marido.
Durante anos, caminhei com a cabeça baixa para não ver ninguém a olhar para o meu rosto desfigurado. Fui operada quando tinha dez anos para corrigir o olho torto, e agora devia ser capaz de levantar a cabeça e sorrir quando me cruzo com estranhos, no entanto, a vergonha persiste, ajudada pela chacota das minhas irmãs.
A Magda tem dezanove anos, lábios sensuais e cabelo ondulado. É a palhaça da família. Quando éramos mais pequenas, ensinou‐me a atirar uvas da janela do nosso quarto para as chávenas de café dos clientes que estavam sentados na esplanada lá em baixo. A Klara, a irmã do meio, o prodígio do violino, fez um brilharete num concerto para violino de Mendelssohn quando tinha cinco anos.
Estou acostumada a ser a irmã silenciosa, a invisível. Estou tão convencida da minha inferioridade que raramente me apresento pelo nome.
— Sou a irmã da Klara — digo. Não me passa pela cabeça que talvez a Magda possa estar farta de ser a palhaça, que a Klara possa ressentir‐se de ser o prodígio.
Ela não consegue deixar de ser extraordinária, nem por um segundo, ou poderá perder tudo — a adoração a que está acostumada, o seu próprio sentido de identidade. A Magda e eu temos de nos esforçar para conseguir‐ mos algo que temos a certeza de que nunca será suficiente; a Klara tem de se preocupar com o facto de, a qualquer momento, poder cometer um erro fatal e perder tudo. A Klara tem tocado violino a minha vida toda, desde que ela tinha três anos. Muitas vezes, fica diante de uma janela aberta a praticar, como se não conseguisse apreciar plenamente o seu génio criativo a menos que reúna uma audiência de transeuntes para o testemunhar. Parece que, para ela, o amor não é ilimitado, é condicional — a recompensa por uma atuação, aquilo com que nos contentamos. E há um preço a pagar por se ser amado: o esforço para ser aceite e adorado é, no fim de contas, uma espécie de desaparecimento.
Comemos pãezinhos da padaria ao fundo da rua, carregados de manteiga e do doce de alperce da minha mãe, mais doce do que ácido. A minha mãe serve o café e distribui a comida pela mesa. O meu pai já pendurou uma fita métrica ao pescoço e guardou um pedaço de giz para marcar os tecidos no bolso do peito. A Magda espera que a minha mãe distribua uma segunda rodada de pães.
— Come, senão como eu — diz ela sempre que eu recuso uma segunda dose.
A Klara pigarreia, e todos nos voltamos para ela para ouvir o que vai dizer.
— Tenho de dar uma resposta ao professor sobre o convite para estudar em Nova Iorque — diz ela, a sua faca a alisar a manteiga pelo pão quente.
— Nós temos família em Nova Iorque — reflete o meu pai, mexendo o café. Está a referir‐se à sua irmã Matilda, que vive num sítio chamado Bronx, num bairro de imigrantes judeus.
— Não — diz a minha mãe. — Já falámos sobre isso. A América é muito longe.
Lembro‐me daquela noite distante passada na cozinha quando ela falou da América com tanto desejo. Talvez seja isto o que é a vida, uma oscilação constante entre as coisas que não temos, mas que gostaríamos de ter, e as coisas que temos, mas preferíamos não ter. A Klara levanta o queixo.
— Se não pode ser Nova Iorque, — diz ela, — então Budapeste.
A minha mãe deixa cair a cabeça enquanto levanta os pratos da mesa. Apoiar a carreira da filha favorita significa perdê‐la. Talvez não seja a ideia de a Klara sair de casa aquilo que a deixa triste; talvez seja a sua própria intransigência. Talvez esteja zangada consigo mesma por dizer não quando quer dizer sim.
A boa disposição crónica do meu pai não é perturbada pelo peso da decisão da Klara ou a preocupação que aflige a minha mãe.
— Vamos falar sobre isso — diz ele, afastando a atmosfera sombria que mais uma vez se abatera sobre a mesa da família. Depois, volta‐se para mim. — Dicuka, — diz, entregando‐me um envelope, — leva este dinheiro para a escola. É preciso pagar as propinas.
Pego no envelope, sentindo o significado da sua confiança. Contudo, a entrega desta responsabilidade é também uma admoestação. Um lembrete do que eu custo à família. Uma questão aberta sobre o valor que tenho. Seguro firmemente o envelope enquanto reúno as minhas coisas para a es‐ cola, como se o segurar me pudesse ajudar a identificar o quão importante sou e o quão não sou, como se me ajudasse a desenhar o mapa com as dimensões e as fronteiras do meu valor.
Sou mais feliz quando estou sozinha, quando me posso retirar para o meu mundo interior, e a caminhada para a escola judaica privada que frequento é um momento que valorizo. Ensaio os passos do Danúbio Azul, número que a minha aula de ballet vai apresentar no festival no rio.
Penso no meu mestre de ballet e na sua mulher, no que sinto quando subo os degraus do estúdio, dois ou três de cada vez, Dispo o uniforme da escola e visto o meu maiô e collants. Pratico ballet desde os meus cinco anos, a minha mãe intuiu que eu não tinha talento para a música, que tinha outros dotes. (Os meus pais tinham tentado iniciar‐me no velho violino da Klara, mas não demorou muito até a minha mãe me tirar o instrumento das mão, dizendo: «Já chega.») No entanto, o ballet... Adorei desde o primeiro dia. Os meus tios deram‐me um tutu que usei na minha aula. De alguma forma, não me senti envergonhada no estúdio. Fui direita ao pianista e perguntei‐lhe que peças estava a pensar tocar.
— Vai dançar, minha querida — disse ele. — Eu ocupo‐me do piano.
Quando tinha oito anos, ia à aulas de ballet três vezes por semana. Gostava de fazer algo que fosse só meu, diferente das minhas irmãs. E sentia‐me bem com o meu corpo. Gostava de praticar as espargatas, o nosso mestre de ballet lembrava‐nos que a força e a flexibilidade são inseparáveis — para um músculo fletir, outro tem de esticar; para alcançarmos amplitude e flexibilidade, temos de manter os nossos músculos fortes. Guardei estas instruções na mente como uma oração. Eu baixava‐me, as costas direitas, os músculos abdominais apertados, as pernas a afastarem‐se. Sabia respirar, principalmente quando me sentia presa. Imaginava o meu corpo a esticar‐se como as cordas do violino da minha irmã, encontrando o ponto exato de tensão que fazia o instrumento soar. E, de repente, estava no chão. Estava ali. Uma espargata completa.
— Brava! — aplaudiu o meu mestre de ballet. — Fica como estás. — Ele ergueu‐me do chão e acima da sua cabeça. Era difícil manter as pernas completamente esticadas sem estarem apoiadas no chão, mas durante um momento senti‐me uma oferenda. Senti‐me como pura luz. — Editke, — disse o meu professor, — todo o teu êxtase na vida virá do íntimo. — Não percebo bem o que quer dizer, mas sei que consigo respirar e rodopiar e atirar as pernas e dobrar‐me. À medida que os meus músculos se esticam e fortalecem, cada movimento, cada pose parece gritar: Eu sou, eu sou, eu sou. Eu sou eu. Eu sou alguém.
A criatividade toma conta, e descolo numa dança nova que invento, na qual imagino os meus pais a conhecerem‐se. Danço ambas as partes. O meu pai fica trapalhão quando vê a minha mãe entrar na sala. A minha mãe rodopia depressa, salta alto. Arqueio o meu corpo numa risada alegre. Nunca vi a minha mãe alegrar‐se, nunca a ouvi rir‐se com vontade, mas no meu corpo sinto o poço inexplorado da sua alegria.
Quando chego à escola, o dinheiro das propinas que o meu pai me deu para pagar o período inteiro desapareceu. De alguma forma, na agitação da dança, perdi‐o. Procuro em cada bolso e prega da roupa, mas desapareceu. Durante todo o dia, o terror de contar ao meu pai arde como gelo no meu estômago.
Naquela noite, em casa, espero até depois do jantar para ganhar coragem para contar ao meu pai o que aconteceu. Ele não consegue olhar para mim enquanto levanta o punho, segurando um cinto. Esta é a primeira vez que me bate, ou a qualquer uma de nós. Quando acaba, não me dirige uma palavra.
Vou para a cama mais cedo, antes de acabar os trabalhos de casa, as minhas costas e rabo ainda a arderem. O que me magoa mais do que os vergões recentes na minha pele é a sensação de que há algo errado comigo. Em breve, irei descobrir que o lugar profundo onde me refugio na solidão é uma vantagem, uma ferramenta de sobrevivência, mas esta noite a minha imaginação parece uma aberração. Um defeito terrível.
Puxo a minha boneca para baixo das cobertas. Chamo‐lhe Pequenina. Tem cabelo escuro comprido e ondulado e olhos verdes que abrem e fecham. Olhos verdes como o meu pai. É uma boneca linda, o meu bem favorito. Sussurro‐lhe ao ouvido de porcelana macia.
— Quem me dera morrer para ele sofrer por aquilo que me fez — digo, com os olhos fechados com força no escuro.
A Pequenina está quieta, como se estivesse a pensar na raiva que senti pelo meu pai — e por mim. Deixo que a fúria se agite dentro de mim. Deixo que cresça, que se acentue. Há prazer em dizer as piores coisas possíveis.
— Não, — sussurro para a minha boneca, a minha voz entrecortada pelas lágrimas, — quem me dera... — deixo o crescendo aumentar... — quem me dera... — Vou dizê‐la, a coisa mais violenta e terrível que consigo pensar. Uma frase tão terrível que nunca mais poderei voltar atrás, que ainda desconheço que me irá assombrar, que se irá repetir na minha mente em noites muito piores, em tempos muito mais tenebrosos. — Quem me dera que o meu pai morresse — digo.
Esta noite, a Pequenina não diz nada, os seus olhos estão fechados no escuro, uma cortina fechada rapidamente sobre o palco.
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