Aquele final, a guitarra solitária de Yannis Phillippakis a ecoar pela Altice Arena, poderia ter resumido o concerto inteiro dos Foals. Ruído, daquele bom, daquele que se entranha, uma espécie de grito que é necessário dar após uma longa hora e vinte de catarse. Quem acha que o Super Bock Super Rock não faz jus ao nome - discussão interminável que ano após ano enche caixas de comentários, e para a qual, francamente, já não há paciência - deveria ter visto este concerto dos britânicos, que marcou o seu regresso a um país que tanto os acarinha, um sentimento que é mútuo: parece que foi ontem que os vimos a celebrar connosco o aniversário redondo do festival de Paredes de Coura.
Os fãs acorreram à chamada, preenchendo quanto baste a pista da Altice Arena, com mais algumas dezenas de corpos espalhados ao longo das bancadas. Flashes de luz e do teclado começaram por dar as boas-vindas aos Foals, numa altura em que têm um disco novo para apresentar, "Life Is Yours", lançado em junho. 'Wake Me Up', o trinar da guitarra a apelar ao movimento, deu o mote, com 'Mountain At My Gates' a seguir-se-lhe. «Sentimos a vossa falta», afirmou Yannis, em modo simpatia. Ainda não tinha aquecido o suficiente por esta altura: mais tarde estaria, em palco, a abanar o pescoço como se fosse o frontman da mais metálica das bandas.
'2am' serviu para que casais testassem os seus melhores moves (e alguns desses moves eram bastante bons), e 'My Number', refrão orelhudo que podia dar música a um qualquer anúncio de uma qualquer operadora, deixou todos os presentes a pular como se o mundo acabasse esta noite - e é possível que, para os fãs, o mundo não exista sempre que os Foals não estão a pisar um palco. O que sobressai deste concerto é sobretudo a relação entre banda e fãs, uma relação poliamorosa que praticamente não precisa de ser constantemente relembrada da sua existência. Trocam-se poucas palavras, poucos olhares: é a música e a reação à mesma que indica que ali há um amor gigante.
'2001', com o coro de "Brighton Rock" (sendo que eles até são de Oxford), foi notável, e pouco depois 'Providence' viu o vocalista e guitarrista a descer para junto do público, para dar os props necessários e obrigatórios. Se a velocidade dos Foals, até então, já era sinónimo de poderio rock, foi com 'Black Bull', 'What Went Down' e (sobretudo) 'Two Steps, Twice' que tudo se transformou - uma banda maníaca a extravasar todo e qualquer restinho de energia que ainda tivesse. Tanto que não foi sequer preciso, como uns tais de A$AP Rocky ou DaBaby, pedir que se abrisse um moshpit; este surgiu de forma espontânea. Aquela guitarra solitária? O ponto final da banda mais rock da edição deste ano.
Após os Foals, um drone eletrónico convidou um vasto público a entrar na Sala Tejo, Palco EDP. Os instrumentistas que acompanham Yoann Lemoine, vulgo Woodkid, entraram com lanternas vermelhas, as quais apontaram tanto para o chão como para o público - a mesma cor que se via em palco. Ao drone juntaram-se uns pedacinhos de estática, até que entrou uma batida marcial, poderosa, e o próprio francês, de pé num palco sobre o palco, todo o negrume de 'Iron' a fazer-se ouvir. I want to feel the pain...
Esta música só poderia mesmo ser nocturna: há ali um charme em Woodkid que não dá para descrever facilmente, e que apela ao lado mais gótico das nossas almas. «Lisboa, estão prontos para dançar?» viu-o atirar-se a 'Enemy'. Mas Woodkid, autor destas palavras, haverá de ter plena consciência de que não faz música para dançar, mas para sofrer (alguns dirão que se podem fazer as duas coisas). Com um trio de cordas a dar textura às canções, e com visuais que passavam da água para as chamas, Woodkid veio apresentar os temas que compõem "S16", o seu segundo álbum de estúdio. É porém do primeiro, "The Golden Age", que fazem parte as canções que (ainda) nos encantam, e as quais recebemos como velhas amigas. Tão velhas que o próprio músico, que afirmou que o Super Bock Super Rock «foi um dos primeiros festivais» em que tocou em Portugal (em 2014), já nem sequer se lembra que o vimos um ano antes no Mexefest. Não que a Sala Tejo, cheia, se interessasse por esse pequeno faux pas. A promotora até é a mesma.
Horas antes, esta mesma sala acolheu aquela que era, muito provavelmente, a proposta mais musical do dia. Ou, pelo menos, a mais interessante, no sentido em que não eram uma banda para se ver de forma indiferente, mais preocupados em atualizar as redes sociais que em olhar para o palco. Os Son Lux, projeto de Ryan Lott que entretanto ganhou mais dois membros, exigiam toda a nossa atenção. Melhor dizendo, a sua eletrónica abstrata, de construção assaz jazzística, merecia toda a nossa atenção. Lott, vocalista e teclista debruçado sobre o seu instrumento, levava as notas a fugirem pelo éter, enquanto um ritmo partido soava em toda a sua lenta (in)existência, como em 'Honesty', tema que se fez ouvir assim que o trio entrou em palco coberto pelo fumo. 'Prophecy', com uma letra que pede milagre bíblico (It's time to raise the dead...), ainda começou com uma certa estrutura pop, mas depressa se transforma e cativa, apelando não à dança mas ao cérebro. 'Plans We Made' mereceu alguns guinchos vindos da plateia, música dispersa e batida gota-de-água, até ao silêncio - cortado por um dispensável falatório vindo da audiência. Foi um concerto para nos ajudar a respirar, e saímos de lá com os pulmões límpidos.
Um piano, um batuque e uma guitarra solarenga deram, pelo fim de tarde, as boas-vindas a Mayra Andrade, que logo na primeira canção conseguiu algo extraordinário: silenciar a Altice Arena com a doçura, e a força, da sua voz. Silêncio, mas apenas por uns epifânicos instantes. Depressa os presentes se aperceberam de que aquela música era feita para dançar, já que é o movimento que gera a vida. O mesmo movimento que, ao lado de «cada nota, cada melodia e cada pensamento» Mayra Andrade dedicou aos que «todos os anos sofrem com os incêndios», e que estão a sofrer enquanto o festival decorre. Dança, e dub: um tema a fazer lembrar os Thievery Corporation sobe suavemente pela Arena acima, num crescendo de espetacularidade ao qual se junta a sua voz processada, enfiando os corações onde eles devem estar, no alto. Só podia mesmo merecer uma imensa salva de palmas. 'Pull Up', os braços de Mayra erguidos em sinal de vitória crioula, e 'Tunuka', que termina com uma bateria apontada à estratosfera, foram dois outros belíssimos momentos da cantora cabo-verdiana, que na Wikipedia surge como "promessa" mas que, francamente, já é "certeza".
Não se percebeu porque é que uma banda como os Local Natives, que já andam nestas andanças desde 2005 e conseguiram que o seu primeiro disco, "Gorilla Manor", chegasse ao 3º do top de vendas da Billboard, foi obrigada a tocar a meio da tarde, quando ainda não eram muitos os que marcavam presença na Altice Arena. Os norte-americanos, no entanto, não pareceram estar extremamente incomodados com isso - assim como os fãs, que reagiram entusiasticamente assim que o grupo começou a tocar 'Megaton Mile', tema que faz parte desse seu álbum de estreia. Donos de um rock melódico com sabor independente, os Local Natives (que há muito não visitavam a Europa) transportaram-nos para aquele território que poderemos descrever, e seria justo, como "fofinho". Num registo quase quiet/loud, em que o - algum - ruído por vezes dava lugar ao groove, como em 'Coins', os Local Natives deixaram ainda elogios a Lisboa: «Vocês vivem num sítio incrível, parece a nossa casa». Já que de Lisboa a Los Angeles são muitas horas de viagem, ainda bem que se sentiram bem.
O Super Bock Super Rock regressa ao Meco em 2023, mas numa localização diferente, que está ainda a ser estudada.
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