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Mandaram-me para casa dela dois anos depois de a guerra ter acabado, mas naquela casa a guerra parecia continuar. Era costume as persianas e as cortinas manterem-se fechadas mesmo durante o dia, como se ela se empenhasse em manter uma espécie de escrupuloso blackout. Julgo, porém, que temia mais o sol do que jamais receara os bombardeamentos alemães. Era possuidora de uns valiosos e lúgubres tapetes persas e dir-se-ia que a aterrorizava que algum raio de sol transviado entrasse sorrateiramente e os desbotasse.
A casa da bisavó Webster transmitia a mesma húmida sensação de frio que sentimos em muitas igrejas. Tínhamos por hábito comer em bandejas, de frente para a lareira, mas a frieza daquelas refeições era realçada pelo facto de, por motivos económicos, a lenha ser disposta, mas nunca acesa. Naquele período de austeridade que se seguiu à guerra, a bisavó Webster conseguiu servir refeições muito mais austeras e racionadas do que as de qualquer outra família. Isto estava em parte relacionado com o facto de servir a comida na sua inestimável baixela de prata, polida diariamente na cave por uma criada inválida que ela tratava pelo apelido, Richards.
As diminutas nozes de manteiga da bisavó Webster, quando Richards as trazia numa enorme manteigueira de prata lavrada, pareciam tão ínfimas em contraste com o seu luxuoso entorno que eram quase inexistentes. A sacarina que servia invariavelmente, em vez de açúcar, tinha o mesmo ar envergonhado e menorizado pelo valiosíssimo açucareiro que a continha, e a mesma depreciação sucedia às avarentas e minúsculas porções de esparguete em lata, elástico e desenxabido que mal sujavam a enorme e resplandecente superfície da bandeja na qual eram servidas; mais do que comida, assemelhavam-se a um pequeno e lamentável acidente que desfeava a beleza da prata, uma minúscula excrescência esbranquiçada que Richards devia ter limpado.
Mal conhecia a bisavó Webster quando me mandaram ir passar uma temporada a casa dela. As verdadeiras razões que levaram uma pessoa como ela a aceder ao pedido da minha mãe de me acolher como hóspede, jamais as vim a conhecer. É possível que a sua idiossincrática noção de dever familiar a tenha levado a pensar que seria incorreto recusar que uma bisneta convalescesse debaixo do seu teto, contanto fosse ponto assente que a presença da dita bisneta não interferiria, fosse de que maneira fosse, com o implacável e plácido curso do modo de vida que com tanta consideração ela escolhera.
Na manhã em que cheguei a casa dela, inábil, acanhada como uma colegial e arrastando a mala, ela estava sentada na penumbra da sua sala de estar. Mal me cumprimentou. Disse que esperava que tivesse feito uma boa viagem de comboio e que Richards me conduziria ao quarto.
— O almoço será servido à uma e meia — declarou. Este anúncio tão corriqueiro foi pronunciado como se de uma ameaça mortal se tratasse. — Espero que tenhas noção de que insisto na pontualidade.
A bisavó Webster disse-me que preferia que ficasse no meu quarto até que o almoço fosse servido, mas que não tinha nenhuma objeção a que descesse e me sentasse com ela na sala de estar, desde que soubesse como entreter-me sozinha.
Eu tinha então catorze anos. Acabara de submeter-me a uma pequena cirurgia em Londres. Ao sair do hospital, padecia de uma anemia grave, e os médicos tinham dito à minha mãe que recuperaria muito mais depressa se apanhasse o ar do mar. Havia sido pedido à bisavó Webster que me acolhesse unicamente porque vivia a cinco minutos do mar.
Ao princípio, encantara-me saber que era considerada uma inválida e que iria passar dois meses com ela. Quando contei a novidade à tia Lavinia, ela respondeu: «Farei figas por ti, querida», e não entendi o que queria dizer com aquilo. Na altura, estava convencida de que não havia nada pior na vida do que estudar no meu colégio interno; porém, no instante em que a enorme e intimidante porta negra da bisavó Webster se abriu, no meio daquele medonho alpendre envidraçado com vitrais e cheio de plantas envasadas que Richards tinha de regar dia e noite, comecei a reconsiderar essa opinião.
— Espero que saibas que foi a tua mãe que me pediu que te acolhesse — disse a bisavó Webster no primeiro almoço difícil e esparso que partilhámos. — A tua mãe afirma que estiveste doente. A minha experiência diz-me que é sempre melhor obrigar os jovens a vencerem os seus padecimentos e a prosseguirem com os estudos. Mas ultimamente parece que já ninguém concorda comigo…
A bisavó Webster deu um profundo suspiro e fulminou com o olhar o tapa-fogo da sua lareira apagada. Depois acrescentou: — Se o teu pai não tivesse dado a vida no cumprimento do dever por uma causa na qual acreditava profundamente… devo confessar que não teria cedido às exigências que a tua mãe me impôs. Mas já que aqui estás… pronto, que se há de fazer. Só espero que alguém te tenha ensinado a distraíres-te.
Richards serviu-nos dois pratos repugnantes antes de a bisavó Webster ter decidido dirigir-me de novo a palavra.
— Que roupa é essa que tens vestida? — indagou ela.
— É o blazer da escola.
— Blazer? — repetiu ela. — Blazer? — A sua boca minúscula franziu-se numa expressão de asco e conseguiu até que a palavra soasse como um impropério obsceno e grosseiro. — Felizmente, não conheço estes termos modernos. O que sei com toda a certeza é que, seja lá o que for que tens vestido, tornou-se pequeno. Olha para essas mangas.
Olhei para as mangas do meu casaco e vi que entre a manga e a mão assomava uma grande porção de antebraço.
— Não te culpo a ti por isso — acrescentou a bisavó Webster. — Culpo inteiramente a tua mãe. As coisas vão ficando pequenas a uma rapariga em crescimento. Sei que a tua mãe é uma viúva de guerra, mas não posso deixar de dizer que me parece imperdoável que te tenha mandado para aqui ataviada dessa maneira. Não há nada menos atraente do que ver uma jovem exibir uma extensão repulsiva de braço. Não voltarei a abordar este assunto.
A bisavó Webster dizia sempre a verdade. Não tornou a referir nem as minhas mangas nem os meus braços.
No início da minha estada, via-a como pouco mais do que uma anciã deprimente e cerimoniosa, demasiado velha para que alguém pudesse julgá-la usando critérios humanos. Assemelhava-se àquelas familiares periclitantes e com um pé para a cova que às vezes apareciam em casa das minhas colegas de escola. Naquele momento, tudo o que sabia acerca daquela mulher e do efeito que causava era que eu já começava a contar os minutos dos meses que teriam de passar para poder fugir daquela casa.
Embora tecnicamente a bisavó Webster pudesse proporcionar-me o ar do mar que os médicos me haviam receitado, uma vez que a casa dela ficava em Hove, um subúrbio de Brighton, nem uma só lufada conseguia jamais penetrar o interior bafiento, com as suas janelas vitorianas hermeticamente fechadas e acortinadas. Na sua casa enorme e fria, sentia-me muitas vezes a anos-luz do mundo pelo qual eu ansiava e que ela abominava: o mundo da abarrotada praia de Brighton, onde as crianças escavavam fossos para castelos de areia com torres elaboradas e moldadas com baldes de estanho colorido; onde aqueles a quem a bisavó Webster se referia sempre, com um calafrio, como «excursionistas» se deitavam para bronzear os corpos citadinos e pálidos sob um sol débil ou comiam algodão doce e maçãs caramelizadas enquanto passeavam pelo pontão, onde havia salões de jogos, espetáculos de marionetas, bandas do Exército de Salvação e postais de senhoras obesas em fato de banho.
Nem uma só vez consegui ir à praia de Brighton nos dois meses que vivi com a bisavó Webster. Podia perfeitamente ter ido sem ela, mas a bisavó fazia-me sentir que, como sua hóspede, era meu dever jamais sair da sua beira, como se fosse a sua dama de companhia. O facto de poder haver diferenças entre nós, não só de idade, mas também de gosto, jamais a incomodou. Quando planeava o dia, decidia que faríamos juntas o que a ela lhe apetecia fazer.
Pouco depois da minha chegada e de ter ficado a conhecer os seus costumes sedentários e intransigentes, dei-me conta de que seria um desastre completo tentar persuadi-la a ir à praia.
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