CAPÍTULO 2
No comboio
O comboio entre Pau e Biarritz acabava de passar a ponte sobre um pequeno rio de águas agitadas que desaparecia entre a vegetação tão depressa como aparecera. À sua frente, Jemima fazia anotações numa folha de papel, a testa franzida, os lábios pintados de encarnado aperta- dos. Marcelo Silva esboçou um sorriso.
Percebeu que os seus olhos se estavam a fechar. Havia estes momentos em que sentia um cansaço que atribuía às já muitas semanas em viagem. Ou seria da idade? Além da fadiga, sentia o desconforto nos joelhos. Em ambos. Passada a barreira dos cinquenta ainda podia fazer uma vida como aos trinta. Mas só uma ou duas vezes por semana. Velho, não e não! Há várias semanas que deixara de se esforçar por escrever todos os dias. Fora outro daqueles propósitos que cumprira nos primeiros dias do ano.
O seu romance encalhara e ao diretor do Diário de Notícias tinha prometido uma crónica sobre os crimes de colarinho branco em Portugal. Fugia também a essa obrigação há demasiado tempo para ter uma desculpa. Lembrou-se de um livro. Doida, não e não! A história da filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, um dos mais antigos jornais portugueses, agora propriedade de um oligarca russo, dizia-se. A biografada, Maria Adelaide, uma herdeira rica, casara com o administrador do jornal, o escritor Alfredo da Cunha. Acabaria presa num manicómio depois de abandonar o marido por um amante, seu motorista e anos mais novo do que ela. Tivera de enfrentar — essa era a parte que fascinava Marcelo — as grandes sumidades da época, entre elas o médico que desenvolveu a lobotomia, o futuro Nobel de Medicina Egas Moniz, e o conceituado psiquiatra Júlio de Matos, para os quais a mulher, rica, de boas famílias, casada com um ilustre intelectual, só podia ser doida por se juntar com um plebeu. Logo, tinha de ser internada. Que outra explicação para sujeitar o marido a tal embaraço público? Que outra forma de salvar a honra de um homem tão digno se não atestar a óbvia loucura da mulher? O jovem motorista fora preso, durante anos, sem culpa formada. Sorte tivera ela de não lhe terem seccionado as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo, o que numa variante pragmática dessa sofisticada operação se fizera durante décadas nos Estados Unidos da América com um picador de gelo ou picareta de montanhista espetada diretamente no crânio do paciente. Dependendo da perícia do operador dava mais tempo de vida à paciente, ou ao paciente, do que as vinte e quatro horas que Trotsky sobrevivera ao «tratamento», prescrito por Estaline e administrado pelo comunista catalão Ramón Mercader em 1940.
Divagações? Não. Tudo tem que ver com tudo. Nos «loucos anos 20», em Portugal, mulheres que manifestavam comportamentos incompatíveis com as convenções e a moral pública eram frequentemente internadas com o diagnóstico de achaques esquizofrénicos e similares. Possivelmente, Maria Adelaide escapara à lobotomia porque na mesma época Egas Moniz, pioneiro dessa cirurgia, estava demasiado ocupado a montar a empresa que mais tarde viria a ser a Nestlé Portugal. Ele, Marcelo, também ia contra as convenções, mas não aguentava nem as pressões editoriais do Diário de Notícias nem as da jovem amada, e, por vezes, desejava ser internado num manicómio, houvesse um médico que o mandasse internar. Razões não faltavam, achava. Metade do dia tinha medo que aparecesse um assassino a soldo de alguém a tentar matá-lo, a outra controlava ataques de pânico. Mas disfarçava bem. «Always a gentleman», como lhe dizia Jemima quando gozava com as suas atitudes a que chamava «old school».
Olhou pela janela. Numa viagem de comboio, o tempo passa de forma diferente. Os pensamentos viajam, a mente salta de assunto em assunto, seguindo as paisagens em permanente mudança, ou imprimindo imagens à monotonia dos campos verdes. Na Provença, junto à costa, numa planície, ao longo de um rio ou através da Floresta Negra, na planície ibérica, por povoações ou zonas ermas, com vacas em pano de fundo, ao lado de uma autoestrada... o viajante num comboio desliga-se do tempo e atravessa o espaço sem esforço. Numa viagem de quatro horas de avião pode não se falar com o passageiro ao lado. Em metade do tempo, num comboio, trocam-se ideias, discute-se política, música ou a meteorologia. Nas viagens literárias pelos caminhos de ferro, encomenda-se um homicídio a um perfeito estranho ou mata-se a golpes de punhal um passageiro sem ninguém dar por nada. Num avião, há casais que usam o WC para sexo de minutos. Num comboio, passam-se noites de amor e nascem paixões para a vida.
Tinha a sorte de ser do sexo masculino e de viver nos anos 20, mas um século mais tarde do que Maria Adelaide. Marcelo viajava na companhia de uma mulher com pouco mais de metade da sua idade. Largara o emprego. Vendera todo o património da família que herdara, casas e terrenos, joias, antiguidades e obras de arte. Simplificara a sua vida financeira, que se resumia agora a uma conta bancária e a um índice de bolsa, um portfólio de ações, que podia consultar numa app do telemóvel, para a qual raras vezes olhava, mas cujos dividendos alimentavam, incessantemente, a sua conta bancária.
Apesar do dinheiro que gastava em hotéis e restaurantes, em livros, donativos e esmolas, o saldo não parava de aumentar. Um monstro que ganhara vida própria e crescia.
A lobotomia, técnica pela qual o único português antes de Saramago viria a receber um prémio Nobel, não era um desfecho terapêutico que o jornalista, ex-investigador público de «crimes de colarinho branco», tivesse de temer. Outras «terapias» violentas alimentavam o estado de inquietação em que Marcelo facilmente caía. Temia terapias decretadas pelos que povoam as muitas ilhas do arquipélago do crime. Fizera inimigos. E tinha medo. Receava punhos ao virar da esquina, pistolas na mão de um atirador furtivo, uma picareta que lhe atravessasse a têmpora num ataque surpresa vindo de alguém próximo e sádico.
Um velho de blusão de camurça e boina na cabeça atravessava a cambalear o corredor da carruagem do comboio, esbracejava procurando apoiar-se com as mãos nos espaldares à esquerda e à direita dos bancos que estavam todos vazios. Sem saber dizer porquê, Marcelo achou ameaçadora a súbita presença daquela figura. Não era de certeza o revisor ou alguém a quem pudesse pagar os bilhetes.
Ficara admirado com a ausência de outros passageiros. Talvez por ser um domingo, pensou. Entretanto, sentados na carruagem, fizera uma pesquisa rápida sobre o «Panorâmico dos Pirenéus». Não tinham bilhetes, mas pagaria o que fosse necessário quando aparecesse um revisor. Explicaria que a bilheteira da estação estava vazia e que aquele era o único comboio que ia na direção que pretendiam. Era o tipo de situação que com dinheiro se resolveria sem problemas. Essa parte não o preocupava. Na estação de Pau tinham subido os degraus para a carruagem e, no momento seguinte, o comboio pusera-se em movimento como se tivesse estado à sua espera.
Já no pequeno hotel silencioso, na rua deserta e na estação achara os sítios estranhamente vazios. Tinham sido os únicos hóspedes na sala de pequenos-almoços e na receção não estivera ninguém. Deixou as chaves no balcão e uma nota de 50 euros de gratificação debaixo da sineta. Talvez por ser época baixa, pensou. Era como se Jemima e ele fossem os únicos viajantes que saíam de Pau naquela manhã cinzenta.
Aquele homem de boina e aspeto rural tinha um ar deslocado na carruagem com bancos de madeiras exóticas revestidos de almofadas azuis com design retro e tecidos vintage. Os únicos objetos que remetiam para o século XXI eram os ecrãs de plasma por cima das portas das carruagens.
O esforço para compensar o movimento do comboio, que trepidava e oscilava naquela parte do trajeto, dava à cara barbeada do homem um ar ainda mais francês: expelia, em sopros curtos, o ar que lhe enchia as bochechas, ouvia-se um «a-pu, a-pu», o mesmo som do acrónimo de administration publique, ou da forma verbal «pôde», que é a interjeição comum de franceses indignados ou só esbaforidos. Teria uns sessenta e cinco anos e um ar duro à Jean Gabin nos velhos filmes franceses sobre bandidos e polícias. Velhas são as pessoas que têm mais quinze do que nós, pensou Marcelo a observar o homem. E percebeu, embaraçado, que falara em voz alta. Jemima, a ouvir a sua música de concentração pelos auriculares, fixou-o por um instante. A sonolência, as dores nas articulações, tudo tinha explicações perfeitamente naturais. Lembrava-se de ainda antes dos trinta anos de idade ter começado a sentir dores reumáticas e de tê-lo achado natural, afinal, pensara à época, estava a ficar velho. Só depois de mudar de casa percebera que fora a humidade a escorrer pelas paredes encostadas à rocha de uma colina de Lisboa que o estava a enferrujar.
Fosse a idade ou não, a inatividade fizera-o nos últimos meses ganhar peso. Tinha consciência disso. E não era só a falta de movimento físico. Deixara de trabalhar. De se interessar.
Estes eram os momentos mais tranquilos na viagem que faziam através da Europa, o itinerário de apresentação do novo livro de Jemima em festivais literários que os levavam das capitais europeias às peque- nas cidades da província. A sua mulher escrevera um aclamado ensaio sobre Hieronymus Bosch e a crítica entusiasmara-se. Tinham estado no Reino Unido, na Alemanha e dirigiam-se ao último dos destinos em França, antes de regressarem a Lisboa. Tinham passado os últimos quatros dias em Pau, uma pequena cidade francesa junto aos Pirenéus com um ambiente de turismo burguês e aristocrático desde o fim do século XIX, quando os ricos de Toulouse, Bordéus, Paris e turistas britânicos afluíam para escapar ao barulho e à poluição das grandes cidades sem para isso precisarem de estar à beira-mar.
Jemima e Marcelo haviam gozado dias de descanso. Iam a pé do hotel junto à pitoresca estação de Pau até Parc Beaumont. A pretexto dos joelhos tivera uma desculpa para não jogar golfe com a mulher, que de início insistira muito com ele, até se resignar e desistir. Não era um desporto para ele — nunca o fora — andar pela relva a dar tacadas em bolas e no ar.
Fizera todo o tempo um sol esplendoroso com temperaturas acima da média para a época do ano. No parque de Pau, criado numa propriedade que já fora de Anna de Noailles, amiga de Proust e anfitriã de salões literários em Paris, entre árvores centenárias dos quatro cantos do mundo, espalhadas por extensos relvados verdes e cheios de sombras, dedicavam-se à leitura, ele, e à escrita, ela. Levava sempre consigo um cesto com duas garrafas, queijos e pão. Jemima gostara de um branco dos Pirenéus Atlânticos, um Château de Cabidos, ele preferia o tinto da vizinha Saint-Julien, um Poyferré que descobrira no restaurante ao lado do hotel, e acompanhava-o com queijo de cabra da região e meia baguete. Em quatro dias não enjoara nem o Chèvre nem o tinto.
Jemima só bebia metade do branco. No regresso pelo Boulevard dos Pirenéus, através da cidade, depois de um quarto de hora a caminhar, paravam num dos bancos junto ao Castelo de Pau, ficavam a olhar para as montanhas recortadas no horizonte, muito além do vale à sua frente atravessado pelo pacato rio Ousse, e Marcelo terminava, sem grande entusiasmo, a garrafa de branco. Quando começavam a sentir frio, retiravam-se para um dos cafés no centro.
Depois dos festivais, não terem de falar, nem sequer um com o outro, tirando o indispensável, era um bálsamo. Para Marcelo, pelo menos.
Na paragem anterior, em Lyon, no salão do Palácio da Bolsa, cheio de talha dourada e cristais, Jemima estivera sentada horas a fio a autografar livros, numa longa mesa corrida ao lado de autores de outros países, enquanto Marcelo varria as livrarias da cidade velha, entre os rios Rhone e Saône, onde se habituara a parar antes do almoço num dos muitos bistrôs para beber um copo de Beaujolais da região ou um adocicado Muscat.
Lyon e Pau tinham sido para Marcelo os dias mais tranquilos da digressão com Jemima.
— As celebrações exuberantes da literatura vão acabar depois do último festival, em Biarritz, mal passemos os Pirenéus. Depois voltamos à parvoeira —, dissera-lhe Marcelo numa das poucas conversas que haviam tido em Pau, entre muitas garrafas de vinho, escrita e leituras.
— O que queres tu afinal, Marcelo? Porquê essa pose de derrotado? — Ultimamente Jemima acusava-o de «ter desistido». Marcelo só não sabia do quê. — Aflige-te o facto de eu ser o centro das atenções nestes festivais? É isso?
— Não, pelo contrário. Estes festivais dão-me alento. É, como acabei de dizer, a perspetiva do regresso que me aflige.
— Eu disse-te que devias escrever em inglês! Acaba o teu novo livro e hás de encontrar uma editora fora de Portugal.
O jornalista publicara o seu primeiro livro há pouco mais de um ano. Suspirou. Fora um fracasso editorial. Escrevera sobre o caso que o tornara conhecido dez anos antes, mas já ninguém parecia interessar-se pela história de um escroque que caminhara sobre cadáveres e usara o erário público e os seus agentes para construir o seu império empresarial. O homem estava morto, o império colapsara — era uma história que se repetia há séculos em Portugal. Ninguém queria saber. Tinha já começado um novo livro, mas era esse que estava encalhado.
— É a idade? Preocupa-te o facto de estares com a idade que tens? Sabes quantos anos tinha o Saramago quando publicou o seu primeiro sucesso? Já mais de cinquenta, julgo.
— Não é a idade que me aflige, nem a carreira. Mais uma carreira, literária ou não, até podia ser criador de periquitos, não vai fazer qual- quer diferença.
— Se não tens a atenção do mundo concentrada em ti, definhas, Marcelo. Se não está tudo em jogo, nada está em jogo para ti. Nem sequer eu.
Semanas antes, meses antes, Marcelo teria argumentado, dizendo o que sentia.
Diria, levantando logo de início barricadas: não entendes o funcionamento do nosso sistema nervoso porque vens de um regime monárquico, de uma sociedade de classes com fronteiras traçadas. No espírito republicano português, cada um é o seu país. Cada pescador é o mar, cada escritor a literatura, a luta pelo nosso lugar é constante, não respeitamos os padres e os superiores, não temos príncipes, princesas, lordes e senhores do burgo, nem donos de aldeias a limitar-nos os sonhos. Desprezamos quem está acima de nós, exatamente por ser nosso igual. Por isso, é tudo uma bandalheira. Assim, ou damos logo a vida, ou não nos insurgimos contra nada. É isso que nos condena.
— Mas tu não estás em causa — disse, em vez disso, à mulher. — Tu és tudo para mim.
O que o afligia depois de semanas a percorrer a Europa era a certeza de que a partir da cadeia montanhosa, quando seguissem pelas planícies de Castela, o deserto da Extremadura até ao Vale do Tejo, os livros perderiam páginas e peso. Mas sabia que nada disso preocupava Jemima. A sua mulher tinha as suas razões. O sol. A praia. O peixe. Os cravos de Abril. A música de Rodrigo Leão ou a voz de Mariza. Os amigos. Tinham casado há menos de um ano, numa cerimónia muito festiva, mas não formal. Jemima decorara-se com ouro de design minhoto, insistira em fado como música de fundo, centros de mesa com cravos vermelhos e uma tuna de capas negras e guitarras portuguesas para animar a noite. A paixão resignada impedira-o de sentir um vestígio de embaraço.
Aos poucos, mas em pouco tempo, tinham deixado de ter conversas. Seria da diferença de idades?
Jemima começou a riscar o papel e a sacudir a caneta.
— Algo a correr mal? — perguntou, para mostrar interesse.
A mulher sacudiu no ar a caneta de verniz preto brilhante com enfeites de prata.
— Every stinking time! — disse, irritada, a voz ríspida, os olhos verdes focados na ponta da caneta como se pelo poder do olhar pudesse reativar o fluxo de tinta. — Não escreve, outra vez — acrescentou, deixando cair os ombros atléticos de Vénus de Milo.
— Pareces o teu rei Carlos a barafustar contra as canetas, só que em bonita.
Jemima afastou um auricular para o ouvir. Marcelo tirou uma esferográfica de tinta de gel do interior do casaco e estendeu-lha.
— Vê se esta esferográfica de plástico não escreve melhor do que esse utensílio lacado de tinta permanente que parece uma peça de museu. — O teu mal é a inveja — disse Jemima. — Isto — levantou a caneta — não é um «utensílio», é um troféu.
— Em Portugal, só os grandes empresários da área da construção e políticos locais usam esse tipo de canetas. Regra geral são oferecidas aos políticos pelos empresários.
Jemima não queria ouvir mais uma palestra sobre Portugal. O país não era assim tão grande nem tão importante. Marcelo parecia-lhe cansado. Envelhecera visivelmente. O cabelo rareava, a cara estreita ganhara volume, tal como o resto do corpo, o nariz parecia ter-se dilatado, as narinas e os olhos rasgados tinham-se afundado nas covas e perdido brilho e cor. Nos seus fatos de linho e sapatos ingleses, lembrava-lhe um turista da Grand Tour, um colecionador de memórias, exausto e sem rumo numa esplanada em Florença. Porquê Florença, não sabia. Mas a ideia do cenário tinha o seu encanto e ligava bem com Marcelo. Ao longo da relação, Jemima percebeu que aquilo que tomara por sprezzatura, a arte de esconder o esforço sob uma atitude negligente e de ligeireza, era, no caso do marido, um genuíno desinteresse e desprezo.
— Onde iremos dormir hoje? Ou tencionas ficar no comboio a beber vinho? — perguntou, e voltou a colocar o auricular antes de Marcelo poder responder.
Marcelo pesquisava os hotéis no destino, ao final de cada etapa. O combinado, a pedido de Jemima, era evitarem aeroportos e aviões. Não porque a mulher tivesse medo de voar. Mas porque viajar exigia outro ritmo, dizia, e ver paisagens, assimilá-las, exigia lentidão. Apanhavam táxis, comboios e barcos ao longo dos trajetos. Mas se não fosse o seu telemóvel e as suas pesquisas, a viagem seria um pesadelo logístico, pensou Marcelo.
Cumpridos os itinerários e horários, a viagem era improvisada dia a dia. Viajavam ambos só com uma mala de mão, com roupa para três ou quatro dias, que iam entregando nos hotéis para ser lavada e engomada. Por vezes, compravam peças novas de vestuário e deixavam para trás a roupa usada.
— Acho que vou até ao bar esticar as pernas. Vais lá ter?
Pareceu-lhe que Jemima fizera um sinal de anuência ou de consentimento. Mas não tinha a certeza.
— Como quiseres, não demoro muito — acrescentou.
O comboio começou uma travagem, com o metal a chiar até se imobilizar após um solavanco. Marcelo, empurrado de volta para a cadeira quando se tentava levantar, deixou-se ficar encostado, contrariado. Olhou pela janela. Era a estação de uma pequena vila. No apeadeiro parcialmente coberto de ervas não estava ninguém. Ao longe viu um helicóptero. Tão longe que, se tirasse os óculos, podia passar por um inseto do outro lado do vidro da janela panorâmica. Levantara voo por cima da mancha de casas que pareciam desabitadas, com as portadas de madeira azuis e verdes, castanhas e vermelhas, fechadas, uma ou outra entreaberta e descaída, como se as dobradiças se tivessem partido. O único carro à vista na praça da estação era um jipe preto, de formas quadradas, que se estava a afastar deixando para trás uma nuvem de poeira. Olhou para o relógio de ponteiros que levava ao pulso e desdobrou o bilhete com o itinerário do comboio de Pau para Biarritz. Voltou a olhar pela janela à procura de uma placa toponímica. Nada.
Um grupo de homens entrou na carruagem. Contou cinco. Não eram turistas, usavam fatos escuros que pareciam demasiado justos e bonés de pala. O comboio voltou a pôr-se em movimento. Os homens percorriam lentamente as filas de bancos, olhando para a esquerda e para a direita. Um deles, ao meio, o único de cabeça destapada, cabelo ruivo fino penteado junto ao crânio, parou um instante e fixou o olhar em Jemima, antes de voltar a andar. Era o único que não tinha físico de ginasta ou halterofilista.
Jemima não se apercebeu dos novos passageiros. Continuava imersa no trabalho. Marcelo ficou apreensivo. O medo tem muitas formas, uma delas, era a sensação de já ter vivido aquela situação, naquele cenário. Estou a ficar paranoico. Há muito que deixara de ter ataques de pânico, só ameaças que controlava a tempo. Reduzira a sensação de perda de chão por uma exacerbada consciência dos perigos, reais ou hipotéticos. Quem o observasse, nada notaria da sua tensão interior. «Self-control», diria Marcelo, um treino permanente.
Permaneceu sentado. Olhou novamente para o relógio. Ainda não eram onze da manhã. Não necessariamente cedo demais para tomar um aperitivo. Ou um chá, para apaziguar a mulher. Um chá preto far-lhe-ia bem.
— Vou até ao bar esticar as pernas e beber um chá. Vens lá ter? — repetiu, sem desta vez registar qualquer reação.
Como tantas vezes lhe acontecia nos últimos tempos, ficou sem ter a certeza se lhe tinha falado em inglês ou em português. Por vezes, ficava convencido de que estava a falar numa língua e afinal falava noutra e só o notava quando Jemima olhava para ele, visivelmente sem o compreender. Noutras ocasiões, julgava que tinha falado e não tinha, fosse em que língua fosse. Estavam a perder-se num labirinto de mal-entendidos.
As horas sentado, uma impressão de vertigem ou o movimento do comboio fizeram-no sentir o piso a fugir debaixo dos pés. A carruagem seguinte estava igualmente vazia, tirando o velho que lhe acenou ao de leve com a cabeça como se estivessem a cruzar-se numa rua de aldeia. Pareceu-lhe suspeito. Suspeito! Sentiu uma súbita vontade de rir, que conseguiu reprimir. Empurrou a velha porta em madeira reforçada com barras de ferro do vagão-restaurante. Fizera uma pequena pesquisa desde que subira a bordo. Leu que aquele não era um comboio regular. E a carruagem em que estava a entrar servira outrora para o transporte de valores da Alemanha para Portugal — entre muitos outros carrega- mentos, de centenas de telas de «arte degenerada» e ouro, parcialmente obtido de cofres, joias e dentes de judeus, homossexuais, opositores ao regime nazi ou ciganos, despachado pelo Conde Schwerin von Krosigk para pagar a Salazar o volfrâmio das minas da Panasqueira.
Não tinha pesquisado fontes de segurança blindada, só um subreddit de comboios, mas se não era verdade, era bem inventado. Um estudo, encomendado pelo Banco de Portugal sobre o chamado «ouro nazi», concluiu que tudo tinha seguido os trâmites legais da época. Claro. Depois, no pós-guerra, o vagão funcionara uns anos como bordel, imobilizado numa estação ferroviária abandonada nos subúrbios de Colónia, até acabar por ser revendido e restaurado como sumptuoso bar de comboio de luxo, com assentos de madeiras escuras revestidos de veludos bordeaux. A parte das madeiras exóticas e dos veludos acabava de confirmar com os seus olhos. Olhos de um suspeito que a terra um dia há de comer, pensou e ouviu o seu próprio riso. Por trás do bar, estaria embutido um longo espelho de cristal da Boémia emoldurado em talha dourada, trabalhado com cabeças de animais em relevo. «Um espelho de uma precisão ótica tal, que vemos a fealdade e a beleza dos rostos ampliadas, como se cada linha, cada traço, cada ruga tivesse um contorno de sombra e de prata», assim ou parecido lera no comentário de uma amante de comboios com queda para o gótico. Teria de ver o espelho, teria de ver-se nele. Mas mais tarde. A última notícia que lera fora a da compra do comboio por um fundo das Ilhas Caimão. Junto ao bar, dois homens conversavam, o ruivo de sapatos de verniz, encostado ao balcão, e o seu segurança, recuado um metro, de costas para a janela. Ambos observaram Marcelo de forma mais ou menos discreta.
Acenou com a cabeça e sentou-se numa das primeiras mesas na zona de entrada da carruagem. Olhou à volta. Reparou que mais dois seguranças estavam no extremo oposto sentados em bancos basculantes afixados nos painéis entre as janelas panorâmicas. Um deles manteve a cabeça de perfil, o outro fixou-o como se estivesse a tirar uma radio- grafia, à distância, com dois olhos estranhamente afastados sobre um nariz de boxeur. Um quinto homem abrira um painel técnico ao qual tinha ligado um portátil, cujo ecrã reproduzia o interior da carruagem.
Marcelo tirou o pequeno livro de bolso que levava no interior do casaco. Tentou, sem sucesso, concentrar-se na leitura. Acontecia-lhe por vezes. Regra geral, quando a vida à volta era mais interessante do que a história. Era um pequeno policial, comprara-o numa das feiras de livros enquanto Jemima, algumas mesas mais à frente, assinava livros. Reparara, momentos antes, que a mulher conversava com um leitor jovem, atlético e com um sorriso preenchido com dentes imaculadamente brancos. O policial chamara-lhe a atenção por se passar em Brest, na Bretanha, onde se encontravam. O nome alemão do autor devia ter sido um aviso. A história era um encadeamento de lugares-comuns sobre os franceses e o seu modo de vida, um inspetor de gabardine e personagens decalcadas do grande almanaque de estereótipos gauleses.
Pela sua pronúncia, Marcelo percebeu que a empregada do vagão-restaurante, cujas palavras o arrancaram às divagações sobre ficção policial, não era francesa.
— Com os cumprimentos do senhor ao balcão.
A mulher segurava entre os dedos da mão direita as hastes de vidro de dois copos virados ao contrário. Girou habilmente o pulso, deu meia- -volta à palma da mão e pousou as duas bases dos copos na mesa. Na outra mão segurava uma garrafa de champanhe que colocou um instante à sua frente antes de a abrir. Marcelo olhou por cima das páginas do livro, primeiro para os olhos escuros da empregada, que lhe pareceu de ascendência árabe, e depois para o homem encostado ao balcão. Reparou no reflexo no espelho: o cabelo do homem luzia num ruivo infernal e os olhos espelhados pareciam berlindes azuis. Era o espelho da Boémia.
O homem ao balcão virou-se e fixou-o com um sorriso. Estivera à espera do seu olhar para avançar até à mesa. No copo que tinha na mão, meio cheio, o líquido cor de mel oscilava como se fosse derramar-se à medida que avançava com passos seguros dando a sensação de que era o cenário que cambaleava. Um dos seguranças continuava a manusear o computador portátil.
Marcelo rodou um pouco o torso num gesto que demonstrava a intenção de se levantar sem se elevar da cadeira.
— Olá, como está? — disse o homem ruivo, estendendo-lhe a mão e dizendo um nome.
Falou em inglês com naturalidade, como se estivessem no comboio para Bristol e não para Biarritz. Nome russo ou ucraniano. Raramente fixava os nomes à primeira quando alguém lhe era apresentado ou se apresentava. Tinha consciência da sua fraca memória onomástica, de tan- tos Gustavos que tratava por Gaspares e Vânias que passavam a Vandas, e desculpava-se dizendo que os nomes eram como as roupas, escondiam mais do que revelavam. Orban, dissera o homem, ou fora Ossip? Oleg?
— Obrigado pelo champanhe. O que celebramos hoje? — perguntou Marcelo.
— Celebramos a vida! Somos os únicos passageiros deste comboio...
— De facto. França parece estar hoje despovoada, porque será? Os comboios andam normalmente cheios até ao último lugar — disse Marcelo e fez-lhe sinal para se sentar numa das duas cadeiras à sua frente.
— Greves. — O homem fez um gesto com a mão que parecia manifestar desprezo pela classe trabalhadora, pelos franceses ou por ambos. — Este é um comboio privado para turistas especiais, pertence a uma sociedade que não é francesa. Como não há voos de linha nem transportes públicos e as autoestradas estão bloqueadas por camiões e tratores há três dias, os passageiros para o comboio não devem ter conseguido chegar à estação de Pau, de onde partiu para esta viagem inaugural. Era suposto estar um grupo de convidados a bordo e também passageiros locais, mas as greves, enfim!
— O nosso hotel em Pau fica muito próximo da estação, fomos a pé, não demos pela greve. Isso explica alguma coisa. E na receção não estava ninguém quando saímos. Entrámos no único comboio na gare, o painel dizia Saint-Jean-de-Luz, presumo que pare em Biarritz que é o nosso destino.
O eslavo sorriu.
— Não vê televisão, não? A França está em pé de guerra! — A cara barbeada contraiu-se num breve esgar. Estimou que teria aproximada- mente a sua idade, mas o eslavo parecia mais novo, o cabelo ruivo podia ser de transplante ou pintado. — A próxima paragem é já Biarritz, o que é uma pena. São pouco mais de duas horas de viagem, não sacia o apetite... nem mata a sede! — concluiu o eslavo e levantou o copo.
Marcelo ergueu a taça e bebeu também um gole.
— Ah, Pinot Noir, muito bom — disse o jornalista. — Gosta de comboios, é? Se isto fosse o transiberiano eram mais de quarenta horas de viagem e dava tempo para esgotarmos o champanhe e o... whiskey? — interrogou, apontando para o copo do ruivo.
— Duas vezes afirmativo. Gosto tanto de comboios que comprei este, vim hoje inaugurá-lo. Comigo não há greves — disse o eslavo com um sorriso.
— Ah, o comboio é seu? Estava à espera para saber a quem devia pagar os bilhetes.
O eslavo riu-se.
— Considere-se meu convidado. E sim, é whiskey, Writer’s Tears, single malte irlandês. Cheers, na zdorovye! — Bebeu um gole.
— É russo ou ucraniano? — perguntou.
— Sou russo-ucraniano. Ou um ucraniano-russo. Como preferir, tanto faz.
— Até há pouco ninguém queria saber que nem Estaline nem Trotsky eram russos.
— É isso, um bromance que acabou mal, esse... — O ruivo voltou a rir-se e bebeu outro gole. — Para Trotsky e para mais uns milhões de soviéticos de várias etnias e credos. É jornalista? Escritor? — perguntou.
— Touché. Duas vezes afirmativo também. Sou jornalista e escritor — respondeu após uma impercetível hesitação.
Tinha a carteira de jornalista no bolso e um artigo encomendado para o Diário de Notícias. Sim, ainda era jornalista. E estava a escrever o seu segundo romance. Mas também tinha na carteira um documento do Ministério da Administração Interna sem prazo de validade a identificá-lo como «inspetor-geral». Nunca o devolvera, ninguém o pedira de volta, o contrato nunca fora formalmente rescindido. Perguntava-se se alguém estaria a desviar os salários que deixara de receber após a morte do banqueiro e o seu exílio para Berlim há já vários anos. Não ficaria admirado.
O russo ou ucraniano tirou um vaporizador do bolso interior do casaco. O jornalista, escritor ou inspetor-geral encartado reparou no discreto logótipo de uma abelha em fios de ouro no forro do blazer. O fato custava mais de 10 mil euros, o relógio de pulso facilmente vinte vezes esse valor. O vapor tinha notas de tabaco turco.
— Oligarca? — perguntou Marcelo.
O ruivo apontou-lhe o dedo ao peito com um sorriso de quem diz «tu... tu és bom».
— E a sua companhia, não vem até ao bar? — perguntou em vez de responder.
— É a minha mulher — respondeu Marcelo.
— Peço desculpa — disse o ruivo. — Até podia ser sua filha. Não pude deixar de reparar nela, uma mulher de uma invulgar beleza. Felizes de nós que nos podemos dar a certos luxos.
Marcelo pensou em replicar sobre masculinidade tóxica ou em explicar que Jemima era uma académica e intelectual conceituada. Resolveu ficar calado.
O eslavo prosseguiu. Disse-lhe que percebera logo que Marcelo não era francês. Os franceses topava-os à distância. A família dele era originária de Odessa, com os russos de Moscovo só se juntava para os negócios ou para lá ir ao Carnaval.
— A nossa Maslenitsa, conhece? É já para o mês que vem. Tem de lá ir, é a maior festividade de Moscovo! É festa por toda a cidade. Vai lá que eu convido-o, a si e à sua mulher, ficam no meu apartamento a um minuto da Praça Vermelha. E de onde é o meu amigo?
— De Lisboa — respondeu Marcelo.
— Ah — exclamou. — Tenho investimentos em Portugal, aliás, também em Espanha, em França... — riu-se.
— Aprecia o Mediterrâneo, portanto — disse Marcelo.
— Isto agora está tudo meio fodido com a guerra — disse o eslavo. Marcelo arqueou a sobrancelha, um reflexo quando ouvia palavrões. O eslavo respirou fundo.
— Esta guerra lixou a vida a muita gente. Felizmente diversifiquei os meus interesses, percebe? Ganho dos dois lados. Isto que vou agora contar é off the record. Entende?
— Ser off pressupõe que eu esteja de acordo. Mais do que estar de acordo, que esteja a trabalhar e interessado em ouvir o que tem para dizer — explicou Marcelo.
— Na minha terra não é assim e pode ter a certeza que vai ficar interessado — disse Oleg. — Mas faça como entender.
Marcelo encolheu os ombros.
— Não publico um artigo há algum tempo e estou como passageiro neste comboio. Digo-lhe o mesmo: faça como entender.
Os olhos-berlindes de Oleg Porovich pareciam por um instante lançar pequenas chamas azuis, mas um sorriso aberto e pouco eslavo apagou-as.
— Vou contar-lhe uma história que nunca ouviu. Não é o habitual das fortunas de oligarcas feitas nos anos 90.
Durante a hora e meia que se seguiria, o ruivo pediu mais duas vezes whiskey e só se levantou uma vez, apresentando as suas desculpas, para ir falar com os seguranças que estavam no outro extremo da carruagem. Marcelo terminou a primeira garrafa e começou uma segunda. Cansado de semanas em que tivera de fazer conversa de circunstância começou por ouvir o eslavo sem grande concentração. Apercebeu-se de que o discurso do ruivo tinha o tom de uma confissão, num registo só possível em conversa com alguém que é muito próximo. Ou com um perfeito desconhecido. Teriam podido conversar se este não tivesse optado por um monólogo, interrompido só para fazer perguntas em tom de interrogatório que vinham, mais ou menos, a propósito do assunto sobre o qual estava a falar. Ficava à espera das respostas como se o avançar da sua história dependesse do contrapeso da experiência do interlocutor. Se a resposta de Marcelo era monossilábica, fazia um curto gesto com a mão para que fosse desenvolvida.
— Também já arriscou tudo numa jogada? — Ficou à espera da resposta.
— Sim — respondeu o jornalista. O eslavo faz um gesto impaciente com a mão. Hesitação do jornalista antes de desenvolver: — Sempre que me apaixonei.
— Viu aquele filme em que estranhos no comboio confessam os seus ódios e um deles propõe um pacto para dois homicídios perfeitos? — perguntou o eslavo.
— Patricia Highsmith — disse Marcelo. Olhar admirado do ruivo, pausa, e outra vez o gesto impaciente com a mão. — Ah, o realizador do filme... Alfred Hitchcock, 1951. E não foi o crime perfeito. Para mais, Hitchcock alterou o final, como é frequente em Hollywood — disse Marcelo, e o outro sorriu.
Eram perguntas sobre assuntos em que o jornalista estivera a pensar na carruagem quando Jemima escrevia ao seu lado. Ficou na dúvida se vagueara em pensamentos por tantos sítios que qualquer pergunta se relacionaria, de uma forma ou de outra, com o que já lhe passara pela cabeça. Ou seria o resultado de uma cadeia de coincidências as perguntas do eslavo se sobreporem às ideias que instantes antes o haviam assaltado? Será que aquilo em que pensava, como por vezes suspeitava, mas não assumia, porque era racional e demasiado cerebral, podia antecipar e condicionar o que ainda iria acontecer?
Que reparara logo na bela mulher quando passou pela carruagem, repetiu o eslavo. Marcelo não duvidava, estivera lá e o seu interlocutor já o dissera uma vez; porque o repetia agora? Estava-lhe no sangue reparar em passageiros. Os comboios tinham mudado desde os tempos em que era chefe de turno no Krasnaya Strela, o Seta Vermelha, o comboio noturno que durante a noite fazia os 700 quilómetros entre Moscovo e São Petersburgo. Ali trabalhara cinco noites por semana, anos a fio e nunca se fartara do seu trabalho. Sonhara muitas vezes ser ele o passageiro de uma das cabines de luxo, com WC privado e serviço toda a noite. Levara milhares de chaleiras de chá preto e garrafas de vodka aos passageiros. Ainda adolescente, numas férias em casa de uma tia que vivia em Moscovo, visitara um vizinho, cuja casa tinha uma divisão cheia de locomotivas Märklin a puxar comboios de carga e de passageiros. Ficara com tanta inveja que tivera vontade de matar o miúdo a quem pertenciam aquelas maravilhas. Hoje colecionava comboios verdadeiros.
Durante três anos, até Leninegrado se voltar a chamar São Petersburgo, trabalhara no bar do vagão-restaurante e no serviço noturno às cabines VIP. No mesmo ano em que a sua cidade natal voltara ao nome antigo, também o KGB mudara de nome para FSB e Oleg Porovich, aos vinte e um anos de idade, mudara de tudo: de emprego, de mulher, de situação económica e de país. Largara lastro, deitara para fora as lealdades, a educação que recebera, os escrúpulos. Tinha quatro passaportes, todos válidos, todos legais. Estivera dez anos em Kiev e dez em Viena. Ia ao dentista a Londres. O seu cabeleireiro vinha de Istambul, de quinze em quinze dias, encontrá-lo onde quer que ele estivesse.
Os comboios já não eram o que haviam sido. Agora tinham filas de bancos, como os aviões, cadeiras que envergonhariam uma barbearia de subúrbio, impessoais, sem conforto nem alma. Mas aquele era um comboio à antiga, com espaço e carismático. Disse-o com orgulho como se tivesse algum mérito no facto.
— Em Lisboa havia barbearias? — perguntou.
— Sim. — Gesto impaciente do eslavo. — Mas na maioria são barbearias modernas, barbeiros antigos já só um ou dois.
Por nostalgia, havia interrompido a viagem para ver aquele seu novo comboio. O seu chefe de segurança não lhe conhecia a paixão pelos carris. Mesmo com os guarda-costas tinha de ter cuidado. Mas era um homem de coragem. E não se deixava intimidar, insistiu. Por coincidência, também estava a caminho de Portugal, disse, antes de se perder em pensamentos e da pergunta seguinte.
Agora toda a gente ia para lá. Dissidentes chineses, associados de negócios russos, parceiros ucranianos, estrelas da música, futebolistas, jovens e menos jovens que queriam fugir à guerra. Lera que até Sharon Stone, a atriz das pernas descruzadas, acabara de lá comprar casa. Como se lembrava do filme! Sharon Stone sempre lhe parecera uma russa pela sua frieza. E pela voz russa nos ecrãs. Certo que era só uma voz de dobragem de mulher para todas as atrizes, e uma única voz masculina para os homens, mas o efeito era o mesmo. Quando tudo estivesse organizado, compraria uma casa ao lado da de Sharon Stone. A empresa em Lisboa que vendia os terrenos era daquele ator de Hollywood, o galã da publicidade das cápsulas de café. Imagine-se, Oleg Porovich vizinho de Sharon Stone e do galã dos cafés! Organizaria uma festa e os vizinhos seriam os seus convidados. Com o melhor espumante da Crimeia e caviar. E presentes de boas-vindas, uns Rolex e outras quinquilharias. Sabia como impressionar os americanos e os europeus ocidentais. Vizinho da Sharon Stone! Fez contas mentais. Teria já quase setenta anos! Sem se aperceber levantou a mão para, durante um instante, tapar os olhos de pasmo. Antes a ruiva do comboio que nem trinta anos teria. O marido era muito mais velho, apesar de apessoado e com um bronze de gente bem na vida. Pelo aspeto eram intelectuais. Sentia fascínio por eles, era uma coisa que não se comprava. Mas isso não mencionou na conversa no bar.
Dava-se bem com intelectuais, ouvira-os noites a fio e a sua memória facilitava-lhe a conversa sempre que falava com algum. Durante o seu primeiro ano de trabalho, o professor Maxim Vladimirovich Sergijevski, já com mais de noventa anos, fazia a viagem todos os meses, na companhia de um assistente, entre Moscovo e São Petersburgo e falava-lhe da literatura espanhola e portuguesa, das paisagens, das viagens marítimas, da saudade e de Cervantes e Camões. Oleg interessava-se mais por Portugal porque para leste ficava a Sibéria e para oeste a liberdade. Sempre fora assim, a oeste ou guerra ou liberdade. Portugal era o extremo ocidental da Europa, logo, o pensamento de Oleg seguia linhas claras, o ponto máximo da liberdade. Aí iria viver e ficar muito tempo. Naquela vila junto ao mar, para onde haviam emigrado princesas e reis, o italiano, os reis da Grécia. Até aquele que até há pouco fora o rei de Espanha. Lembrou-se desse velho a quem entregara em Maiorca uma mala de dinheiro, em notas de 20 e 50 para lhe dar mais volume. E o velho fizera um gesto para que a entregasse ao criado ou secretário que viajava com ele, fino demais para pegar na mala. Facto é que duas semanas mais tarde tinha as licenças para a construção dos hotéis. Só tratara ele próprio do negócio para ver de perto aquela personagem. Sangue azul e séculos de consanguinidade haviam dado corpo a uma personagem decadente como conhecera tantas nas estações de comboio. Tirando as roupas e a pose não era muito diferente dos velhos das cervejarias ao lado das estações de Moscovo ou São Petersburgo à espera de que alguém lhes pagasse um copo.
Fora também nas viagens de comboio que conhecera Vladimir Vladimirovich, na altura consultor de relações internacionais de Anatoly Aleksandrovich Sobchak, o presidente da câmara de São Petersburgo. Assim começara a sua ascensão. Ao ponto de ter acumulado mais poder do que alguma vez sonhara, e dinheiro, rios de dinheiro que brotavam incessantemente e aos milhares de milhões das profundezas da terra na forma de petróleo, de gás e de diamantes, e que, ao longo dos anos, transformara em casas, palácios, em armazéns cheios de carros, em barcos e iates, paredes cobertas de quadros, piscinas olímpicas, helicópteros ou aviões, hotéis e, claro, comboios. Às vezes tinha de eliminar pessoas. Era inevitável. Um homem que caminha pelos esgotos pisa baratas, evitá-lo seria uma perda de tempo e não tornava os esgotos mais salubres. Nunca fora condenado por qualquer crime. Nem o seria.
— Já alguma vez o tentaram matar ou viu alguém ser morto? — perguntou.
— Sim. — Pausa de Marcelo. Gesto com a mão de Oleg. — Várias vezes para a primeira parte da pergunta, uma para a segunda — pormenorizou Marcelo.
— Então sabe como é — sentenciou Porovich.
O ruivo continuou. Seria ele próprio agora mais feliz? Mais feliz do que nos dias em que se sentava em frente ao professor Maxim e ficava a ouvi-lo falar do seu último livro, sobre como tantos mitos haviam surgido em Sevilha, de D. Quixote a Carmen de Ravel, ao Barbeiro e a D. Juan e às portas dos saloons nos filmes de cowboys norte-americanos?
Marcelo bebia o champanhe e sentia-lhe o efeito como uma estranha efervescência cerebral. Os primeiros detetives científicos na literatura policial britânica trabalhavam tipicamente com um «magnifying glass», a clássica lupa. Ele preferia o simples «magnific glass», uma técnica de inspiração dionisíaca que, em vez de aumentar e aproximar o objeto sob análise, afastava o observador e ampliava o campo de visão, arredondando os resultados dos métodos mais científicos. Naquele caso, ocorreu-lhe, poderia ter abusado dessa técnica: sentia que se afastava ao ponto da vertigem e toda a situação lhe parecia estranhamente longínqua com contornos oníricos.
Os mitos de Sevilha! Lembrara-se de ter falado com um velho autor francês, dias antes, num jantar num festival em Penmarc’h, na Bretanha, que escrevera sobre a estranha origem de tantos mitos na capital andaluza. Coincidência! Ocorreu-lhe que talvez Jemima tivesse razão e o deserto ibérico fosse mais fértil do que ele queria acreditar. Jemima!
Quando o comboio apitou, apercebeu-se de que Jemima não se juntara a ele no vagão-restaurante. Um dos seguranças, o de nariz achatado, aproximou-se e sussurrou ao ouvido do ruivo.
O eslavo levantou-se como se levantam as pessoas mais jovens, num súbito movimento vertical sem se apoiar na mesa nem esticar antes uma das pernas.
— O meu chefe de segurança, tenho de lhe obedecer — disse e apontou o dedo indicador a Marcelo. — Gostava de dizer que chegámos ao nosso destino, mas ambos sabemos que não é assim. Tente manter-se longe dos problemas. É um homem inteligente. Entenda as suas limitações.
Marcelo ficou um instante sentado, de olhos semicerrados. Estava numa festa de jardim, em Sintra, com a tia Anne, num palacete recém-restaurado. Parvenus, mas simpáticos, dissera-lhe a tia. O filho dos anfitriões, um miúdo mais ou menos da sua idade, chamara-o para descerem a propriedade até um repuxo no meio de um pequeno lago. Trazia alguma coisa escondida debaixo do blazer de veludo. Uma pistola. Apontou-a ao peito de Marcelo. Depois desviou-a lentamente e disparou na direção de um cisne. O tiro falhara. Lembrava-se do estrondo da explosão e do cisne a tentar desajeitadamente levantar voo, sem conseguir libertar as patas da superfície da água que fazia redemoinhos. O atirador voltou a apontar a pistola e, diante de Marcelo, acertou na ave em movimento. O ruído do disparo ecoara e a cabeça branca do cisne desfizera-se. O miúdo afastara-se com a pistola, devagar. Era a imagem do domínio sobre a vida e a morte. Assim se afastava o eslavo em direção à saída dianteira mesmo atrás da locomotiva.
Apoiou uma mão para se levantar. Já não era uma efervescência cerebral. Era mais do que isso. Não se conseguia levantar. Estaria bêbedo? A música aumentou de volume, sons de bolero sul-americano. A empregada de sotaque estrangeiro no seu francês deu-lhe a mão, e, sentindo uma súbita energia, como o coice de um cavalo, levantou-se. Rodopiaram, Marcelo ria-se, puxou para si a mulher de olhos muitos escuros e peito grande e quente dentro de uma camisa branca de empregada de café. Era um bolero que dançavam, era ele que se tentava esquivar, era ela que se contorcia por cima de uma mesa. Vacilou, hesitou, tombou, levantou-se para voltar a cair, encostou-se na cadeira, sentiu os olhos a fecharem-se. O tempo passou, não sabia quanto. Que belo champanhe, tinha de pedir mais uma garrafa daquelas para levar a Jemima. Pensou no que diria Jemima. Sentiu-se triste. Olharia para ele desiludida, um homem que perdera os sentidos em frente a um balde com uma garrafa vazia.
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