
Um
NASCIDO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIA
O que é mais verdadeiro do que a verdade? Resposta: a história.
ditado judaico (de Isabel Allende TED Talk)
Uma história que se desvenda
Todos temos as nossas histórias para contar, e esta é a minha. É a minha verdade. Como as bonecas russas, esta é uma história contida em muitas outras. Como dizia o meu bom amigo Ian, «a distância mais curta entre dois pontos não é necessariamente uma linha reta». Este livro de memórias com histórias que se aninham dentro de outras é sobre a viagem da minha alma. É o caminho muitas vezes solitário percorrido por um missionário incauto, improvável e profundamente imperfeito.
Um dos princípios centrais do método de cura de traumas que desenvolvi ao longo dos últimos cinquenta anos é o de que não pedimos às pessoas que enfrentem os seus traumas diretamente. Em vez disso, encorajamo-las delicadamente a que se dirijam à periferia dessas sensações, emoções e imagens difíceis, e ajudamo-las a aceder primeiro a certas experiências corporais positivas essenciais. O que se segue é o exemplo de uma destas visitas a algumas memórias positivas específicas como preparação para a aceitação de um episódio terrível de agressão sexual. Como tal, vamos começar com uma descrição de duas das minhas alegres e centrais experiências de infância. Ambas foram tremendamente emocionantes, mas também representavam a segurança e o calor de um amor generoso.
Uma surpresa de aniversário
Embora tenha tido uma infância repleta de violência e de ameaças à vida, houve algumas ocasiões nas quais me senti querido e protegido. Lembro-me destas duas experiências que me deixaram com uma sensação de plenitude e abertura de coração, e com uma boa dose de autoconfiança. Acredito que estas impressões sensoriais e emocionais me ajudaram a sobreviver àquilo que certamente me poderia ter destruído.
Na manhã do meu quarto aniversário, acordei com uma grande surpresa. A meio da noite, os meus pais tinham entrado silenciosamente no meu quarto enquanto eu dormia profundamente. Então, debaixo da minha cama e estendendo-se pelo resto do quarto, tinham montado às escondidas os carris de um comboio elétrico Lionel.
O leitor consegue imaginar a minha alegria quando acordei com o barulho do comboio às voltas naqueles carris? Saltei imediatamente da cama e corri até ao transformador, onde podia controlar a velocidade do comboio. Toquei a buzina com alegria. Acredito que esta surpresa me deixou com uma sensação de maravilhamento e de ser amado. Refletindo sobre esta memória, recordo-me de uma ocasião, ainda antes desta, na qual senti uma alegria tremenda e exuberante ao ser abraçado, fazendo-me sentir muito especial.
Quando eu tinha cerca de dois anos, o meu pai era o conselheiro-chefe de um campo de férias de verão na Nova Inglaterra. Evocada por uma fotografia a preto-e-branco, tenho uma «memória corporal» dele na piscina. Lembro-me de correr e saltar para a piscina. Ele certificou-se de que eu não me afogava enquanto a água me cobria o corpo, que se afundava. Ainda sou capaz de sentir as mãos dele a fechar-se suavemente em volta das minhas ancas, a levantar-me acima da água, para depois me pousar na relva à beira da piscina. Eu começava então a andar às arrecuas e punha-me a correr, repetidas vezes, a toda a velocidade pelo relvado, e saltava para a piscina e para os braços acolhedores do meu pai. Ao fim de muitos destes saltos, a água rapidamente se tornou minha amiga. Depois, o meu pai passou a segurar-me os braços estendidos, e deixava-me deitado de bruços e a espernear enquanto eu fazia os meus primeiros movimentos natatórios. No seguimento desta introdução, apaixonei-me pela natação. Mais tarde, já adulto, dava sempre por mim em busca de lugares, num lago ou no mar, de um qualquer sítio onde pudesse voltar a sentir-me sustido pela água.
Ter presentes estas «memórias corporais» de uma sensação de ser cuidado ajudou-me a passar por muitos momentos de grande angústia, sem me sentir completamente esmagado e aniquilado. Anos mais tarde, na minha viagem de cura, estas memórias ajudaram-me na resolução do trauma que se segue.
Num momento de terror violento
Quando eu era um miúdo já adolescente, a minha família era objeto de prolongadas e potencialmente fatais intimidações por parte da máfia de Nova Iorque. O meu pai foi chamado a depor como testemunha contra Johnny «Dio» Dioguardi, um mafioso implacável da família criminosa Lucchese.* Numa tentativa de proteger a minha mãe e também a mim e aos meus irmãos mais novos de uma morte quase certa, o meu pai recusou depor contra Johnny Dio, embora tal lhe fosse exigido pelo jovem e ambicioso Robert F. Kennedy, então conselheiro-chefe da comissão do Senado de Nova Iorque que tinha como propósito investigar possíveis crimes de extorsão. Observar a imagem abaixo, uma fotografia de Johnny Dio, claramente vale mais do que mil palavras.

Johnny «Dio» Dioguardi, o chefe da máfia que causou muita dor não só à minha família, mas a muitas outras durante a sua vida de crimes e homicídios. É a personificação do tipo de trauma intenso para o qual o tigre interior tem de ser despertado, para que possa lutar e superá-lo.
Para ajudar a garantir o silêncio do meu pai, fui brutalmente violado com a tenra idade de cerca de doze anos por um gangue pertencente à máfia do Bronx, provavelmente os Fordham Daggers.**
Este incidente violento teve lugar sob densos arbustos de um jardim do bairro, um lugar que até então tinha sido para mim um parque infantil e um refúgio. A violação foi um segredo que mantive escondido de todos, principalmente de mim mesmo. Estava enterrado nos recônditos da minha mente, mas o meu corpo «lembrava-se». Todos os dias, quando ia a pé para a escola, o meu corpo ficava tenso e a minha respiração tornava-se difícil, como se todo o meu ser passasse a um estado de hipervigilância, a preparar-se para um novo ataque. Mas ainda mais destrutivo do que isto era o medo constante de sofrer com a desintegração da própria estrutura da minha família e, com ela, o colapso de qualquer sensação duradoura de segurança.
Nunca fui capaz de falar com os meus pais sobre esta agressão, pois, se o fizesse, estaria a confirmar a violência que sofri. Como tal, entranhou-se-me profundamente na psique como um senti- mento generalizado de vergonha e de «maldade». Para afastar estes sentimentos terríveis, evitava a todo o custo pisar qualquer racha no passeio enquanto percorria cuidadosamente o trajeto entre a escola e a minha casa. Fazia-o como se de alguma forma pudesse repelir a ameaça com aquele ritual clássico. Além disso, rezava constantemente com a esperança de que Deus me protegesse de outro ataque. E para isto, pousava a mão no topo da cabeça, como era exigido pelos judeus ortodoxos. Fazia-o apesar de nenhum dos meus pais ser judeu praticante. Para dizer a verdade, quando o meu pai me via fazer aquele gesto, imitava-me e fazia pouco de mim. Era uma humilhação que eu temia. Quando me ponho a pensar nesta desmoralização, penso que talvez fosse a sua tentativa de me desencorajar, e acredito que (pelo menos na sua mente) ele estava a tentar «proteger-me» de o fazer em público, situação na qual eu poderia ser alvo de desprezo ou desdém. Infelizmente, não resultou. Apenas piorou as coisas. Sentia-me ridicularizado e humilhado por ele, ao mesmo tempo que era deixado completamente sozinho com o medo e a ansiedade.
Precisei de quarenta anos para conseguir aceder e libertar a «memória corporal» daquela violação brutal. Pude então restaurar gradualmente um sentimento duradouro de autocompaixão e «bondade». O que se segue é a forma como desenterrei e curei esta memória.
Um curandeiro ferido
Avançemos agora muitas décadas. À medida que fui desenvolvendo a Experiência Somática (SE), o meu método de cura de traumas, comecei misteriosamente a experienciar sensações perturbadoras persistentes e imagens fugazes. Parecia que a minha garganta e estômago se contraíam fortemente, entupidos com uma «gosma» branca e viscosa. Ciente de que estes sintomas alarmantes continuavam a atormentar-me, dei-me conta de que já era mais do que chegada a altura de tomar uma dose do meu próprio remédio. Como diz o ditado, ensinamos sempre aquilo que mais precisamos de aprender. Quíron, o arquétipo do curador ferido, estava a chamar por mim.***
Ao lidar com esta minha angústia, pedi humildemente a um dos professores que havia formado que me ajudasse a desvendar as possíveis origens destes sintomas preocupantes. As lembranças que se seguem começaram a surgir à medida que me lançava numa exploração interior. Ao centrar-me inicialmente nas sensações corporais e depois nas imagens perturbadoras, alguns movimentos internos profundamente enterrados começaram a emergir.
* Johnny «Dio» Dioguardi (que foi mencionado nos filmes sobre a máfia Tudo Bons Rapazes e O Irlandês) foi uma cruel figura do crime organizado italo-americano e um extorsionista. É conhecido por estar envolvido no hediondo ataque com ácido que cegou e desfigurou o colunista Victor Riesel. Riesel estava a redigir uma denúncia sobre a máfia de Nova Iorque e sobre os falsos sindicatos que ajudaram Jimmy Hoffa a tornar-se presidente dos Teamsters.
** Num website sobre o Bronx, alguém escreveu que, quando eu vivia no bairro, antes de 1953, havia um gangue chamado Fordham Daggers. Eu era demasiado novo para saber muito sobre eles, a não ser que todos lhes tinham medo.
*** Na mitologia grega, Quíron era filho do titã Cronos e da ninfa da água Filira, que Cronos violou. Quíron foi ferido duas vezes: uma ao nascer e outra no fim da sua vida. A primeira ferida pode ser entendida como uma lesão emocional profunda por ser o resultado de uma violação e posteriormente da rejeição por ambos os pais. Apolo assumiria o papel de seu pai adotivo. Sendo um centauro, Quíron era literalmente um monstro, mas também um órfão e, por fim, um pária. Sendo metade homem, metade animal, Quíron personifica o conflito latente em todos nós, entre os nossos instintos animais e a razão ou divindade; entre a selvajaria dionisíaca dos centauros e a ordem apolínea do pai adotivo. No entanto, ele pende firmemente para o lado apolíneo e, em muitos aspetos, ofusca o deus da luz, dominando e até promovendo as artes e as ciências (techne e episteme), numa tentativa de compensar a sua rejeição precoce e de provar, tanto a si mesmo como aos outros, que também é digno de amor e aceitação.
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