Foi um ano duro, mas nem tudo é mau. Alguns tiveram boas razões para celebrar naquele que ficará para a História como o ano da pandemia. Este é o Almanaque da Felicidade de 2020. Se também teve motivos para ser feliz este ano partilhe connosco, envie um email para 24@sapo.pt
"O vencedor do Leão do Futuro é o filme Listen de Ana Rocha de Sousa".
Esta foi a frase que deu alento e orgulho a Portugal num ano que tem sido penoso, fatigante e aflitivo para a Cultura. A distinção, que não é mais do que a maneira de um dos festivais de cinema mais consagrados avisar o mundo — tomem nota, está aqui a alguém para seguir com a atenção —, certamente contribuiu para recordar que no meio do pandemónio da pandemia há histórias de bonança.
A realizadora portuguesa, de 42 anos, já tinha sido notícia quando foi anunciado que a sua primeira longa-metragem iria fazer parte do elenco selecionado na secção Horizontes do Festival de Veneza. Só que estar na lista para algo e ganhar efetivamente é irremediavelmente diferente. Especialmente para alguém que se estreava na cadeira da realização. E, mais ainda, quando esse alguém vem de um país pequeno, como Portugal.
Listen (2020) estreou no festival de Veneza em 7 de setembro. Um dia depois, o The Hollywood Reporter enfatizava a "hábil direção de atores" de Ana Rocha de Sousa. Aliás, chega mesmo ao ponto de dizer que o drama é ao "estilo de Ken Loach" (I, Daniel Blake [2016]), devido à maneira como toca na desigualdade social da família emigrante portuguesa — Jorge Mourinha, do Público, vê as coisas pelo mesmo prisma e chega mesmo a escrever que Loach veria esta história "como um figo".
Mas no seu filme há muito de Mike Leigh, uma das suas referências. O realizador de Mr. Turner (2014) ou Segredos e Mentiras (1996) dirigiu peças de teatro, escreveu outras tantas, ganhou as mais altas distinções em Cannes ou Veneza — e se há louvor e encómio de Listen para português se orgulhar a Leigh se deve. A sua escrita, tendo por norma realçar os inconformados inteligentes que não se ficam numa sociedade que os quer mandar a baixo, foca-se na classe trabalhadora e nas relações dos protagonistas. Assim, não é de estranhar a influência na realizadora distinguida com o Leão de Ouro.
Só que de onde vem necessidade de contar esta história? Numa entrevista ao Observador, Ana Rocha explicou que o filme surge na necessidade de explorar algo mais além da representação. "Não deixo de querer ser atriz, nunca deixei de estar disponível para emprestar o meu corpo, mas comecei a sentir que a minha liberdade ali já estava toldada. Senti que precisava de mais", explica.
Vergílio Ferreira escreveu que “o que passa depressa é o tempo que passou”. E depressa já se passaram mais de 20 anos desde a estreia na RTP, em 1997, de Riscos, série da qual Ana Rocha fez parte — para aqueles cujo Bilhete de Identidade vai além dos 30 e poucos anos, a memória pode dar de si e dar a benesse de se recordar das histórias de Mariana, a sua personagem, ao lado de Paula Neves e Edmundo Rosa.
Porém, depois de duas décadas a tratar de texto alheio, sentiu a necessidade de dar o salto e dar a vez à sua voz. Começou cedo com uma participação em No Dia Dos Meus Anos (1992) de João Botelho. Na televisão, entre 1997 e 2009, participou em novelas como Sonhos Traídos, Mistura Fina, Jura ou Um Estranho em Casa. Participou também em várias peças de teatro, incluindo Sonho de uma Noite de Verão no Teatro Nacional D. Maria II, com encenação de João Ricardo.
Só que, tal como revela na entrevista ao Observador, as palavras não eram as dela. Representava-as, dava-lhes corpo, tinha o seu cunho, mas não eram suas. E, assim, seguiu o caminho que muitos fazem quando os horizontes do país são demasiado pequenos: rumou fora e além à fronteiras à procura do sonho.
Tendo uma Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, quis explorar a fotografia, a escrita, o vídeo. E onde melhor casar tudo isto senão no cinema? Daí a ida para Londres. A ambição de encaixotar todas as suas necessidades artísticas e a vontade de realizar levou-a a tirar um Mestrado em realização na London Film School. A carreira de atriz estava, para já, em pausa.
Ora, durante a sua estadia na capital britânica enquanto discente existiu um momento que se revelou decisivo na sua carreira: o facto de Mike Leigh ter escolhido a sua curta-metragem (Laundriness) de 24 minutos para fazer uma apresentação à London Film Society. O terceiro ato desta história, contada ao Público pela própria Ana Rocha, termina com a informação de que Leigh ficou com a sensação de que o filme poderia alongar-se durante mais tempo. “Foi marcante. Significou que o que eu estava a fazer fazia sentido para pessoas para além de mim e que respeito muito”, disse.
Findo o trajeto académico, regressou a Portugal em 2013. O plano sempre foi, aliás, esse: partir para regressar. E quando regressou atirou-se ao mundo do design de interiores e fez outros trabalhos — o documentário Adriano Aqui e Agora sobre Adriano Correia de Oliveira, a curta Quem nos larga e vídeos de música de artistas como Sérgio Godinho, Maria João ou Raquel Tavares.
Mas em 2016 foi o ano de viragem. Além de começar a escrever Listen num quarto no Areeiro, em Lisboa, foi também mãe — durante o discurso emotivo de agradecimento em Veneza dedicou o filme à filha. Foi lá que nasceram os “75 minutos cirúrgicos" em 2020 celebrados, como catalogou o diretor da Mostra de Veneza, Alberto Barbera.
A realizadora salienta que não quer que o filme seja visto como sendo “anti-Inglaterra”, mas sim que este aponta para as falhas no sistema da Segurança Social naquele país. Mais, Listen não tem por intuito “vampirizar ninguém”.
“Mantive um distanciamento, debruçando-me sobre a verdade dos casos, de uma forma muito rigorosa, mas nunca precisando de colar um rosto de famílias. Ainda assim, espero que essas famílias se sintam retratadas e que o filme as possa ajudar de alguma maneira”, revelou ao Observador.
Quanto ao filme propriamente dito Jorge Mourinha enfatiza que estamos perante “uma cineasta que sabe o que está a fazer e não se esticou para lá do que sabe” e que “parecendo que não, nestes tempos em que muita gente quer ser (ou anda à procura de) génio logo à entrada, já é bastante”.
Planos para 2021 e depois? Aos 17 quis fazer televisão e fê-lo. Agora, quer continuar a fazer cinema e a dar espaço aos atores para trabalhar. Veneza já saudou e o reconheceu o talento. Cabe esperar pelo futuro e ver os próximos passos de Ana Rocha.
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