Habituámo-nos a ver David Bowie em grandes palcos, mas também no grande ecrã. Se a sua discografia permanece praticamente intocável (exceção feita a um par de álbuns, como “Never Let Me Down” ou os trabalhos realizados com os Tin Machine), o mesmo não se poderá dizer da sua carreira no cinema. Certo: “O Homem Que Veio do Espaço”, “Feliz Natal, Sr. Lawrence” ou “Labyrinth” alcançaram um certo estatuto entre fãs e não-fãs do Camaleão, mas “História de Um Gigôlo” também existe. Pelo menos no que toca a filmes, a figura David Bowie (importante não confundir com o ator David Bowie) teve os seus altos e baixos, estando presente tanto em películas que resistiram ao teste do tempo como noutros menos bem-amados.
“Stardust” entraria, à partida, neste último grupo. A figura, no caso, é encarnada pelo também músico Johnny Flynn (recomende-se “Been Listening”, de 2010, para começar), que aceitou aquele que será talvez o maior papel da sua vida: dar corpo, voz e alma a um dos maiores ícones da cultura pop do séc. XX. O filme ainda não se encontra disponível, e a data de estreia é para já um mistério, após o cancelamento do Festival de Cinema de Tribeca, que se iria realizar ao longo deste mês (se bem que alguns privilegiados tenham podido assistir a uma sessão online, na passada quarta-feira). Mas já há um curto teaser que permitirá perceber, ou não, se o filme fará jus a tudo aquilo que David Bowie foi.
Para já, as perspetivas não são as melhores. Não pela qualidade – ou falta dela – daquilo que vemos no teaser em questão, mas pelo simples facto de que “Stardust”, mesmo sendo um filme sobre Bowie músico, não conterá nenhuma das canções que este compôs. Porquê? Porque a família de Bowie não a cedeu à produção, não tendo dado o seu aval ao próprio filme. Nas palavras de Duncan Jones, filho do astro, em janeiro de 2019: “Se o público quiser ver uma biopic sem a sua música ou a aprovação da família, é com ele”. Que é como quem diz: “não queremos ter nada a ver com isto e odiamos mesmo sem ver”.
Declarações que não deixaram “Stardust” em xeque, com a Salon Pictures, produtora responsável pelo filme, a vir dizer mais tarde que este não é de todo uma biopic, mas “uma história sobre o início da viagem do David, à medida que ele inventa a personagem Ziggy Stardust”. Compreende-se melhor, assim sendo, uma das falas presentes no teaser, dita por Marc Maron, que interpreta o publicista de David Bowie nos Estados Unidos, Ron Oberman: “Acho que vais ser a maior estrela da América”. É discutível se Bowie o foi (não dizemos o seu contrário), mas Ziggy Stardust foi-o, certamente: o rock mais terra-a-terra, mais visceral, de “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars” fala muito melhor ao norte-americano típico que a sensibilidade romântica e extremamente europeia presente em obras como “Station to Station”, “Low” ou “'Heroes'”.
A isso não é alheio o facto de Ziggy ter sido criado a partir de dois ícones do rock n' roll norte-americano, Iggy Pop e Lou Reed, e de uma estrela mais “obscura”, Norman Odam, que assinava a sua música com o nome The Legendary Stardust Cowboy. Nem o facto de que Ziggy nasceu durante a primeira digressão de Bowie pelos EUA, de apoio a “The Man Who Sold the World”, e que figurará em “Stardust” - uma digressão da qual pouco reza a história, pelo menos em comparação com os grandes e memoráveis espetáculos que Bowie encenaria poucos anos mais tarde.
Portanto: não é uma biopic. Há um fundo de verdade na história, mas é a ficção que a faz mover. Isso mesmo deu a entender o seu realizador, Gabriel Range, em entrevista à Screen International: “o filme baseia-se em factos, mas tomámos alguma liberdade na forma como alguns elementos da história foram abordados. Muitas das conversas são imaginadas”. Não será portanto de admirar que a família de Bowie – que para além de querer proteger o seu legado, quererá certamente proteger o seu amado – tenha dado um redondo “não” ao filme. Ou que o jornal Jerusalem Post já lhe tenha atribuído uma crítica negativa.
O “não” também esteve na boca de Johnny Flynn: “Nunca pensei que o pudesse fazer [interpretar Bowie]. Contei a uns amigos e eles disseram-me que era doido”, explicou, aos jornalistas presentes na sessão online. Marc Maron acrescenta: “Houve momentos, durante as gravações, em que pensei que o Johnny era mesmo o Bowie”. Pior opinião tem Owen Gleiberman, crítico de cinema da revista Variety: “Falta-lhe a insolência de Bowie, a sua vigorosa insinuação de decadência”.
Todas estas são questões que só poderemos responder, cada qual de nós – fãs e não-fãs – assim que “Stardust” puder ser visto. Mas, ainda assim, poderemos colocar uma questão mais filosófica: o que é a “verdade” numa figura como Bowie, que foi tanta gente em tão pouco tempo, e que até conseguiu transformar a sua própria morte numa obra de arte? Não fará a ficção, com todos os seus devaneios fantasiosos, mais sentido ao abordá-lo? O grande ecrã, o mesmo que foi tapado pela pandemia, o dirá. Mas fica uma pequena garantia: se o “Starman” não restituir o brilho aos cinemas no pós-distanciamento, poucas coisas o farão.
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