Há muitos anos, um hospital mandado construir por D. João II tinha vista para o Rossio. Era o Hospital Real de Todos os Santos, que não resistiu à força do terramoto de 1755. Os anos foram passando e ali, naquela a que chamamos Praça da Figueira, cresceram outros negócios. O século mudou e em 1830 uma ervanária numa loja apertada deu lugar ao novo hospital, este de bonecas.
A entrada é discreta, duas bandeiras amarelo pálido anunciam o espaço, juntamente com vestidos e cabeleiras de bonecas que ladeiam a porta estreita. Em cima, num fundo verde, o letreiro é testemunho da história desta loja. A montra está preparada para os Santos Populares que não tardam em chegar. Há bonecas de vários tipos, e ao fundo um Santo António com ar de menino espreita entre manjericos. Os balões de São João, embora típicos de uma outra cidade, também não ficaram esquecidos.
Entrar no Hospital de Bonecas é um avivar de memórias e um despertar de sentidos. Diz-se que toda a gente tem uma criança dentro de si e isso é inegável nas expressões de quem entra na loja. Um casal francês passa a porta e não esconde o entusiasmo. Bonecas em papel, de trapos, das mais tradicionais às mais recentes, de todos os tamanhos, povoam os armários envidraçados e a estante aberta que se vê atrás do balcão.
Manuela Cutileiro, a atual responsável pelo local, mostra um pequeno vestido azul e branco aos clientes. Não tem mais de 18 centímetros de comprimento, detalha de fita métrica na mão. Além disso, o elástico na cintura permite ajustar à boneca. Tudo é pensado para servir às meninas com que as crianças brincam e que alguns adultos colecionam com carinho.
“Este espaço começou em 1830 por uma senhora que tinha muito jeito de mãos e tinha aqui uma ervanária. Vendia ervas secas e as pessoas foram-se habituando a ver que ela fazia bonecas e começaram a vir comprar. E até hoje estamos aqui. Sempre no mesmo sítio, sempre na mesma família”, explica Manuela.
Passando por uma porta de espelhos e subindo dois lances de escadas de madeira, há todo um outro mundo que completa o que se vê na loja. É ali o Hospital de Bonecas, como se lê num quadro à entrada. Ao lado, uma alcofa de ráfia com uma cruz vermelha embala um bebé de brincar. E é a partir daqui que a viagem começa.
Da sala de espera aos blocos operatórios
As camas deste Hospital são prateleiras altas. São dezenas de doentes já curados, outros que esperam a sua vez. Dos pés das bonecas caem etiquetas com o número e a descrição da patologia; é tudo manuscrito, como sempre se fez e vai continuar a ser feito. “Fazemos uma ficha lá em baixo, é sempre atribuído um número de cama a cada paciente”, conta.
No espaço salta à vista o número de bonecas empilhadas. "Esta é a sala onde estão as bonecas que vão embora. De um lado estão as mais atuais, do outro as mais antigas. Estão à espera que as venham buscar”, explica Manuela Cutileiro. Estão separadas com plásticos, prontas a voltarem para os braços de quem com elas se preocupa. Mas não estão sozinhas. Mesmo ao lado, repousam as que ainda esperam conserto. “São de cartão e de papelão, são mais antigas. São casos mais demorados”. Mas o tempo no Hospital — tal qual as pessoas — depende da doença. “Às vezes ficam um mês, mês e meio. Às vezes dois ou três, quando são casos complicados”.
Para tratar as bonecas existem dois “blocos operatórios” e, tal qual num hospital, a visita pode chocar os mais sensíveis. Mas é nestas salas de restauro que os milagres acontecem. Há bonecas partidas, desmontadas. Pedaços soltos fazem pensar, num primeiro instante, que dali não vai mais sair boneca nenhuma. Mas as “doutoras” sabem o que fazem e há que ter confiança.
“De momento somos cinco, só mulheres. Agora não há homens, mas já houve. Foi sempre um negócio de família. Um dos últimos foi um dos meus filhos. A minha filha passou-lhe a pasta, mas depois ele voltou a passá-la”, conta Manuela.
Quem chega ao negócio também o faz por orgulho no legado da família. “Nós temos sempre uma profissão, aí é que é o engraçado desta história. Eu sou educadora de infância, toda a vida foi a minha profissão. Só cheguei ao Hospital, tal qual os meus antepassados, já depois da profissão em si. Isto é mais uma missão e nós chegamos sempre aqui por volta dos 40, quando já nos estamos quase a reformar. Então é a altura de ficarmos definitivamente no Hospital”.
As duas salas que servem de bloco operatório estão divididas por categorias. De um lado, as coisas mais antigas. “Não são só bonecas do século XIX, mas também algumas de porcelana e também nos trazem peças de arte sacra para restauro”, conta. Do outro, as bonecas mais recentes. E é nesta sala que a imaginação começa a fervilhar.
Em pequenas gavetas, as peças são às centenas. Existem braços, pernas, olhos, cabeças inteiras e cabeleiras. Tudo conjugado e nasce uma boneca ou, na maior parte das vezes, uma peça ou duas e a doença que a levou ali vai embora. “Aqui temos muitas peças de porcelana atual, para substituição. É muito mais barato substituir peças do que estar a fazer restauro. Normalmente compramos as peças em fábricas na Alemanha ou em Espanha. Cá em Portugal já não há fábricas. Mesmo as bonecas que vendemos vêm da Alemanha ou de Espanha, e o que nós fazemos é vesti-las. A não ser as bonecas de pano que fazemos”, explica Manuela.
No atelier de restauro está, sossegada, a Doutora Ermelinda. Perguntamos, à cautela para não a desconcentrar do trabalho minucioso, o que costuma fazer por ali. “Muita coisa. Pôr olhos, braços, pernas, cabelos, penteá-las, vesti-las. Faço isto já há 16 anos, agora não conseguia fazer outra coisa. Era costureira, mas até gosto mais de fazer isto. Não tem nada a ver uma coisa com outra, mesmo que pareça”, assegura, sem desviar os olhos de um pequenino vestido.
Manuela ajuda a defender a ideia. “É preciso mais paciência [para as bonecas], mas tem a vantagem de as clientes não serem esquisitas. Vestem tudo!”, refere com um riso tímido e ar pensativo... depois corrige: “Bem, às vezes não vestem. Queremos vestir-lhes uma coisa e não lhes serve ou não lhes fica bem”.
No Hospital de Bonecas todos os dias de trabalho são diferentes. “Nunca sabemos o que nos chega. Todos os dias entram e saem doentes. E temos também muitas visitas de estrangeiros, porque, graças a Deus, vêm cá jornalistas do mundo inteiro. Aquela senhora francesa que estava na loja há bocado disse que nos tinha visto na televisão a semana passada, num programa muito popular em França”, exemplifica.
A verdade é que o espaço tem mais visitas de estrangeiros do que portugueses. “É inegável. Os estrangeiros acham-nos graça. Não há muitos espaços como estes, há quem diga que nunca viu nada assim, mas isso são opiniões. Há Hospitais de Bonecas que trabalham com bonecas mesmo muito antigas ou com peluches, mas como nós, que fazemos um bocadinho de tudo, desde as roupas, a arranjar bonecas mais recentes ou mais antigas, aí acredito que não haja muita gente a fazer isto assim. Quando visitamos Hospitais noutras partes do mundo há realmente muita diferença entre esses e o nosso”, afirma Manuela, orgulhosa.
E o que não falta a esta loja da Praça da Figueira é mundo. "Mandam [as bonecas] pelo correio ou vêm cá deixá-las e depois nós enviamos. Temos sempre bonecas de países que nós achávamos que não tinham nada a ver com a nossa história. Da Rússia, da Roménia, da Austrália, do Brasil, da Estónia, França, Mónaco, Suíça”, enumera.
As salas do Hospital de Bonecas guardam, além das próprias, memórias das várias pessoas que por lá trabalharam. Manuela, que se diz “médica de Clínica Geral por fazer um bocadinho de tudo”, faz questão de mostrar as molduras que registam o quadro de colaboradores. “Todas as nossas salas têm um quadro com as pessoas que trabalham ou trabalharam aqui. Mesmo as que não estão cá, porque já estão muito velhinhas, continuam com o nome do quadro. Também fazem parte da história. Algumas também vão embora porque casaram, mudam de vida, mas os nomes ficam cá”.
Depois do restauro, o museu
Depois das salas de trabalho vem o museu propriamente dito. Não existem vitrinas em volta de todas as bonecas e não há qualquer placa que as identifique. Todas têm história, provavelmente tiveram em tempos um nome dado por quem com elas brincou. Agora estão sentadas, todas juntas, à espera que os visitantes construam novos contos.
Manuela Cutileiro diz não ter uma boneca preferida. Todas são especiais. “Eu acho que sou como uma mãe que tem muitos filhos. Conforme os dias e as situações, às vezes acho mais graça a uma ou a outra, mas não tenho uma boneca favorita. Todas elas têm as suas histórias que não nos contam, por isso podemos sempre inventar a história que quisermos a respeito de qualquer uma delas. Às vezes lá me apetece escrever qualquer coisa sobre elas e invento coisas”, confidencia.
Ao todo, são à volta de quatro mil bonecas na parte do museu, sem contar com as que se encontram na loja, prontas a encontrar uma nova casa, ou com as doentes no Hospital. Mas não se pense que tudo isto é uma coleção de bonecas. “Nós não somos colecionadores, somos um Hospital. Gostamos de todas as bonecas. Temos essa vantagem, os colecionadores vivem obcecados com determinada peça, com determinada boneca. Nós não, nunca tivemos jeito para isso. Somos mais ajuntadores do que colecionadores”.
A primeira sala do museu apresenta as bonecas próprias da loja, vestidas a rigor para representar o país. “Estas são bonecas que vestimos principalmente com trajes típicos de Lisboa e de Portugal. Temos um bocadinho de tudo, até porque fazemos roupa de Carnaval para as crianças. Fazíamos estes trajes em grande e depois começámos a fazer para as bonecas”, mostra.
Ao lado, as casinhas de bonecas que encantam gerações. Há uma minúcia extrema em cada uma. Os cenários são vários: há um jardim de Natal, uma casa com os vários pregões de Lisboa — desde a vendedeira de castanhas ao amolador que dizem anunciar a chuva — e ainda a mais clássica casinha, com tudo aquilo a que tem direito, desde as crianças que correm com os seus animais de estimação à noiva que é vestida para o grande dia. “Algumas casas têm 40 ou 50 anos. Fazemo-las para dar ideias às pessoas e para decorar as montras, mas são vendidas vazias. Agora temos lá [na montra] uma do Santo António, uma casa de uma fadista ao estilo da casa da Mariquinhas”.
A completar o topo da sala estão enormes bonecas de porcelana. São as maiores do museu e têm cerca de 40 anos. Mas com estas ninguém brincou. “Eram só para decoração, são mais ricas”, diz Manuela.
Embora a atenção continue focada nas dezenas de exemplares presentes na sala é preciso continuar a visita. Segue-se a sala dos bonecos com mais idade, que apresenta alguns cantinhos temáticos. “Temos um espaço alusivo a uma escola antiga, porque a nossa oficina antigamente era no quarto andar e aqui era uma escola primária oficial, a escola nº 78. Só quando a escola acabou é que passámos cá para baixo e guardámos este cantinho para a escola”, refere. “Ainda hoje há muitos antigos alunos que nos vêm cá perguntar o que estamos a fazer e até nos trazem fotografias do tempo da escola, como estas que temos aqui”, aponta.
Parte das bonecas presentes no espaço são fruto de ofertas. “Sempre juntámos bonecas, mas há muitas pessoas que vêm cá oferecer-nos coisas, mesmo restos de bonecas. Tudo isso é muito útil para nós, vêm cá muita vez”. Contudo, nem sempre o motivo é o mais feliz. “Às vezes entregam as bonecas porque não têm espaço em casa para elas. Outras vezes porque a própria família já não se interessa pelas coisas e as pessoas têm pena que vão um dia para o lixo. Até há bonecas que foram aqui arranjadas e voltam para cá”, diz a doutora, que reconhece todas as que por ali passaram.
“As bonecas mais antigas são todas aquelas que estão ali no armário do fundo. São em porcelana, são do século XIX. Depois todas estas são raparigas com 70, 80, 90 ou 100 anos. Mais de 100, muitas delas”, continua.
A sala tem os estores corridos e a luz não é forte. Tudo para a preservação das bonecas. “Temos de ter em conta a claridade e sobretudo o pó. São duas coisas de que elas não gostam nada! As diferenças de temperatura também não são bem-vindas”, explica Manuela.
Ao fundo, do lado direito, a recriação de um quarto de criança. “Nós recebemos muitas visitas de escolas e é divertido mostrar aos miúdos que as bonecas não estão isoladas do resto do mundo, não estão fora do contexto em que nasceram”. Assim, é importante mostrá-las no seu espaço de brincadeiras, com móveis de outrora que conseguem evocar memórias.
“Normalmente as crianças acham piada a certas coisas até além das bonecas, como os telefones antigos. Para eles um telefone não é uma coisa que anda à roda para marcar os números. Para eles esses pormenores são deliciosos”, conta.
Mas se bonecas há muitas, nem todas são iguais. O visitante mais atento vai perceber que há uma divisão, em duas vitrinas, para realçar isso mesmo. “De um lado temos bonecas alemãs, feitas nos anos 30 e 40, e do outro temos bonecas da mesma época mas feitas em Portugal e em Espanha. São completamente diferentes, como as pessoas também são diferentes”.
Apontando primeiro para uma boneca rechonchuda de cabelo curto e loiro, Manuela exemplifica. “Se olhar para esta boneca, vê que tem o penteado das meninas alemãs, tem o corpo gordinho como as meninas alemãs, tem as pinturas muito delas e os trajes também. Se olhar para estas vê-se mais uma mulher espanhola, mais pintada, mais sexy até, com uma cintura mais marcada. São muito diferentes, é fácil descobrir”.
Então e as portuguesas? “Nós nunca tivemos muita produção de bonecas. E as que tivemos foram muito inspiradas pelas espanholas. Espanha sempre teve muito prestígio. As bonecas e os caramelos eram das duas coisas que só são boas se vierem de Espanha. Por isso os fabricantes tinham de copiar as modas de Espanha, eram as que se comercializavam melhor. E tirando as pinturas e assim também não somos muito diferentes. Mais pintados, menos pintados…”, atira.
As duas salas que restam no museu são as que parecem mais cheias, por serem mais pequenas. A primeira recria um Hospital de Bonecas antigo. “Temos muitos instrumentos de trabalhos antigos. Há aqui um instrumento de fazer caracóis, por exemplo. Aquecia-se no lume, prendia-se o cabelo e pronto. Tanto fazia para pessoas como para bonecas. Eram os bigodis da época”, refere. Ali, muitas das bonecas são ofertas à casa, algumas com papelinhos com a indicação de quem as deu e com uma pequena história. “Normalmente estas bonecas não saem de cá”, diz Manuela.
O segundo espaço tem “ar de metro em hora de ponta, está superlotado”. No futuro vai ser despejado e organizado, com o intuito de haver uma sala “mais para coisas de rapazes”. No entanto, isto não significa, para Manuela Cutileiro, que as bonecas são só para as meninas. “Os rapazes também brincam com bonecas. Gostam, é normal. Como é que nós queremos que eles tratem dos filhos se não lhes dermos uma boneca para a mão para eles tratarem quando são pequenos?”.
A fazer a ponte entre os dois espaços — e com alguns exemplares a que mais facilmente se atribuem brincadeiras de meninos — está a secção de bonecos mais recentes. Existem Pinypons e Barriguitas, não esquecendo a Nancy e a Barbie acompanhada pelo seu Ken. Estes últimos, alguns já com 50 anos, aparecem de forma original pendurados numa rede no tecto, qual instalação de arte contemporânea. As séries de televisão também não foram esquecidas: há a Heidi e o Pedro e até os Trolls, que com os seus cabelos coloridos povoam um armário envidraçado. E, agora parecendo em jeito de celebração, um Gil em miniatura lembra a Expo’98, discretamente.
Depois da visita, há uma pergunta que se impõe — ainda que não seja assim tão bem recebida. Há pessoas que têm medo de visitar o espaço? Manuela Cutileiro não hesita na resposta: “Isso depende da quantidade de filmes de terror que cada um viu. Não diria que as pessoas ficam mesmo incomodadas, acho que é mais para fazer charme. Lá uma por outra, mas não é caso habitual”, garante. Além disso, as crianças não veem filmes de terror. “As crianças não têm essa ideia das bonecas como algo assustador, para elas isto são brinquedos. E ninguém tem medo de um brinquedo”, remata.
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