Este nunca seria um concerto dos Arcade Fire semelhante aos anteriores. No final de agosto, a nova digressão da banda canadiana viu-se ensombrada por acusações de abusos sexuais feitas contra o seu vocalista e guitarrista, Win Butler. Pelo menos três mulheres afirmam ter tido relações sexuais impróprias com o músico, «dadas as diferenças de idade, de dinâmica de poder e o contexto em que ocorreram», podia ler-se num artigo da Pitchfork dedicado ao caso. Feist, que iria fazer as primeiras partes desta digressão, cancelou a sua presença, afirmando que essa «era incongruente com o que tenho trabalhado por clarificar para mim mesma ao longo de toda a carreira». Por seu turno, Butler – que é casado com Régine Chassagne, a outra face dos Arcade Fire – admitiu ter cometido adultério, pediu desculpa pelos seus atos, e salientou que todas as relações extraconjugais que manteve foram consensuais.
É uma sombra problemática, e é-o ainda mais no que aos Arcade Fire diz respeito. Desde nascença que os canadianos têm sido a banda arquétipo do indie: letras honestas, canções bombásticas recheadas de refrães pensados para momentos de comunhão ao vivo, uma discografia onde nem alguns momentos menos conseguidos (como “Everything Now”, onde aquelas flautas confundiram muita gente) manchavam sucessos anteriores, uma carreira que foi construída sem o selling out que por vezes define alguns dos seus colegas mais próximos de profissão. Nós gostá(va)mos dos Arcade Fire porque os Arcade Fire pareciam uma fantasia, adolescentes como nós, corações no mundo para que o mundo mudasse apenas pela força de uma melodia.
Usamos a palavra “nós” porque é ela que, em inglês, dá título ao novo álbum dos Arcade Fire, editado em maio. E porque essa palavra, que também se encontrava escarrapachada em palco, ganhou um outro significado que ainda estamos a tentar entender: haverá realmente um “nós” quando uma das partes se sente traída pela outra? É certo que, nisto da música, mais vale seguir o exemplo dos ultras do futebol e pregar: zero ídolos. O clube tem que estar acima de todos ou, no caso, a música tem que estar acima de tudo. Ainda gostamos, e muito, das canções dos Arcade Fire. Não podemos é garantir que ainda gostamos de quem lhes dá voz, pelo menos até que a sombra se dissipe, a verdade venha ao de cima, as vítimas encontrem paz e aqueles que lhe são mais queridos – tanto a família, como os amigos, como todos os fãs – o consigam perdoar por completo.
Alguém dirá que há que separar a arte do artista, o que é absolutamente válido. Outros dirão que o propósito da arte também pode ser esse, desafiar o que já sentíamos, deixar-nos desconfortáveis. São questões que, francamente, não têm uma única resposta certa, mas que pairam no ar sempre que um artista cruza a linha vermelha que separa o criador da sua humanidade (todos os artistas brincam a Deus). Win Butler errou e já não é só o criador de 'Wake Up', 'No Cars Go' ou 'Ready To Start'. O pedestal em que o colocaram, consciente ou inconscientemente, desapareceu; o ideal de perfeição que lhe vinha acoplado esfumou-se.
Foi-se esse ideal, resta o profissionalismo. Os Arcade Fire continuam a ser, ao vivo, uma banda estrondosa: o público, alheado ou procurando alhear-se das notícias que incomodam, acolheu-os como sempre os acolheu, de braços abertos, de gritos ao nada que é tudo, de palmas muitas e de cânticos afiados onde a língua guarda os versos que se tatuaram. Mas agora tudo nos soa alegremente triste, e não ao seu oposto, que era aquela efusiva melancolia que perpassava os discos dos Arcade Fire até à dança de “Reflektor” (2013). É como se Win Butler estivesse a tentar pedir perdão ao mundo inteiro, sabendo que a seu lado está a mulher que traiu e, à sua frente, os fãs que desiludiu.
Neste que foi o primeiro de dois concertos que os Arcade Fire darão no Campo Pequeno, houve uma tríade de canções que nos fez pensar precisamente em Régine: 'It’s Never Over (Hey Orpheus)' (Seems like a big deal now / But you will get over), 'My Body Is A Cage' (That keeps me from dancing with the one I love), e 'Afterlife' (Let's scream and shout 'till we work it out), versos que do seu significado original passam para um que mais se assemelha a perda e tentativa de reconciliação, mesmo que nesses três momentos nem um nem outro músico se tenham olhado ou tocado. Pensamos em Régine porque não sabemos o que lhe passará pela cabeça, obrigada a suportar o peso não só da polémica como também da profissão. A sua posição em palco acaba por ser a mais injusta de todas. O espetáculo tem de continuar mesmo que o ego queira fugir.
Ou talvez também ela veja em toda esta digressão uma forma de se alhear, à semelhança dos fãs. As canções, como 'Ready To Start', que levantaram várias pessoas das suas cadeiras, 'The Suburbs', com o público a cantar o refrão no final, ou 'Reflektor', a gigantesca bola de espelhos a convidar ao movimento dos corpos, são e serão para sempre mágicas, mesmo que a sua interpretação já não tenha a centelha de outrora, que nos fazia querer morar numa comuna com os Arcade Fire. O que outrora era especial é agora apenas muito bom. Falta uma luz, que volte a trazer-nos para aquele lugar onde éramos despreocupados – e bem que o público tentou ser essa luz, iluminando o recinto antes do encore.
Pelo meio ficou o acompanhamento do público em 'Rebellion (Lies)', o destaque que Butler deu à belíssima 'No Cars Go' («esta foi a terceira canção que compusemos juntos», afirmou, na primeira vez que reconheceu a presença da esposa em palco), os bonecos insufláveis que se ergueram em 'Unconditional I (Lookout Kid)', a maravilhosa 'Haiti' (com membros dos Boukman Eksperyans, que substituíram Feist, em palco). O final, com 'Wake Up', terminou como um concerto dos Arcade Fire deve terminar: com os seus fãs – e que sorte têm eles de terem fãs assim – a colocarem as suas dúvidas de parte e a participar, com a banda, numa espécie de arruada que só terminou no exterior do Campo Pequeno. O alinhamento era de sonho, o público correspondeu, mas os Arcade Fire pareceram estar a tocar, na maior parte do tempo, para eles próprios, fazendo do Campo Pequeno o seu confessionário e da sua plateia o padre que os absolvesse. Foi um grande concerto de uma grande banda? Foi. Isso basta? Teremos que dizer que não. Ou isso, ou decorar um dos versos de 'Unconditional I': Let me say it again, no one's perfect...
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