A iniciativa “Arte em São Bento” apresenta este ano uma mostra de 33 artistas portugueses, proveniente da Coleção Manuel de Brito, com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues.
Composta por mais de 2.000 obras, de artistas nacionais e estrangeiros, esta é uma coleção que “foi surgindo em meados dos anos 1960, de um conjunto de afinidades e proximidades com artistas, quer com artistas que [Manuel de Brito] inicialmente representava, quer com outros artistas de quem mais tarde se foi tornando amigo”, contou o curador, no final de uma visita à imprensa.
A grandiosidade da coleção tornou particularmente penosa a escolha das peças para esta mostra, reconheceu Sérgio Fazenda Rodrigues, revelando que se guiou por “três ideias principais que se complementam”.
Uma delas foi homenagear os artistas da década de 1970 - os mais representados na coleção -, que de alguma forma foram precursores da liberdade, tanto no campo da arte contemporânea como da sociedade em geral, e pô-los em diálogo com artistas atuais.
Por outro lado, o curador quis “introduzir pequenos comentários políticos que criassem situações de um possível desconforto: Não é nenhuma visão do país, não é nenhuma ilustração do estado das coisas, é apenas a tentativa de questionar algumas situações e não dar tudo por adquirido”.
O terceiro vetor que guiou a montagem desta exposição tem a ver com a ligação que as pessoas estabelecem com o meio, com a vegetação, com os animais e com o próprio corpo.
Neste contexto, as obras não são simples peças de decoração do espaço, são a construção do fio condutor que guia de local para local.
Num canto da parede do 'hall' de entrada da residência, formando um ângulo de 90 graus, encontra-se uma “caixa de correio improvável”, de Rodrigo Oliveira, que “não recebe nem dá uso à sua função”, e que se situa por baixo dos retratos dos primeiros-ministros.
Nas salas do piso térreo, o curador procurou “uma aproximação do olhar para a relação com a natureza", compondo-a com obras que “lidam com a questão da vegetação envolvente e a ideia do corpo, do contorno, da mancha”.
Ali encontram-se obras de Eduardo Batarda, João Queiroz, Maria Helena Vieira da Silva, António Dacosta e Lourdes Castro, no caso, uma peça em vidro “que trabalha a silhueta, numa provocação que remete para a figura sentada na sala a fumar um cigarro”.
Na mesma sala, está exposta uma peça de Ana Pérez-Quiroga, que Sérgio Fazenda Rodrigues considera das mais emblemáticas, um dos sacos de serapilheira usados nas trincheiras de guerra, com o lema da Revolução Francesa e do Partido Socialista – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” – impresso a vermelho.
Colocado como uma “almofada cómoda” em cima do sofá, esta é a única obra que vai mudando de sítio ao longo do tempo, ocupando diferentes espaços da casa e forçando, de cada vez, uma interação diferente.
“Ela agora está provocatoriamente colocada sobre um sofá, porque na verdade não é nenhum instrumento de conforto, é antes um instrumento de resistência, mas esta contradição entre o uso que ela promete e o local onde ela se encontra é aquilo que lhe dá também interesse”, frisou.
Na sala de refeições estão expostas obras que se prendem com o uso dos alimentos, como é o caso de uma pintura da Paula Rego “que fala de um suposto festim, com a inversão do papel humano e animal”.
No átrio das escadas, entra-se na “fusão da ideia de árvore e corpo humano, de corpóreo e corpo de vegetação", particularmente expressivo em obras de Rui Sanches, Manuel Baptista, Pedro Vaz e António Dacosta.
Nas escadas, uma pintura de Helena Almeida “acompanha o sentido da ligação ao corpo”, bem como uma escultura de Rui Chafes alusiva à guerra, em que se torna de “difícil distinção a lógica ‘corpo e belicista’”.
No topo das escadas, destaca-se “uma obra de António Palolo, uma pequena pintura, que foi produzida durante o período da Guerra do Ultramar, que tem três pequenos soldados, que nos apresenta uma cena bastante trágica, mas de uma forma bastante desconcertante”, explicou o curador.
“Essa inversão de mostrar o que é trágico de uma maneira contraditória interessa-me particularmente”, acrescentou.
A sala de espera é ocupada por trabalhos que “vão brincando com ocultação e desocultação”, de que é exemplo o quadro “Little Diamond Crown”, de Pedro Paixão, que retrata a cantora Nina Simone coroada com joias da Rainha de Inglaterra, “mas que ao sair da escuridão tem um brilho que nos capta”.
Na sala de reuniões sobressai o quadro “Arca de Noé”, de Júlio Pomar, que pretende aludir à “ideia da intuição que o espírito do animal traduz”.
Na mesma sala, Sérgio Fazenda Rodrigues foca-se num quadro de Pedro Gomes, “que é um recorte de uma cara com um conjunto de gestos que imitam os três macacos da sabedoria, em que as mãos cerram o olhar e dizem não ver o mal, cerram os ouvidos e dizem não ouvir o mal e cerram a boca e dizem não falar o mal”.
O curador deu também especial ênfase a uma peça de Noronha da Costa, que “parte do estudo da luz, da ideia da luz elétrica, com uma tomada que está na parede, para a luz natural, com uma vela que está acesa, e que de alguma forma foi precursora de uma outra grande pintura que surgiu mais tarde de um outro artista alemão, Gerhard Richter, que ficou muito conhecida como ‘pintura de uma vela’”.
À medida que se sobe, “o tom vai-se tornando mais divertido e vai questionando a seriedade”, pelo que a última obra do circuito público, já na escada de acesso ao piso seguinte, é a pintura “Ballons”, de Bruno Pacheco, que representa um “conjunto de balões com figuras de banda desenhada, que vão a fugir pela escada acima”.
Já no “circuito privado”, a que o público não terá acesso, encontra-se uma obra de José Escada, “Pensando em Chartres”, um díptico de Jorge Santos, que apresenta uma paisagem noturna sobre a copa das árvores, um retrato de Antero de Quental, da autoria de Urbano, e mais dois quadros, de Menez e de Fátima Mendonça.
A Residência Oficial do Primeiro-Ministro, no Palacete de São Bento, acolhe, todos os anos, uma seleção de obras de artistas portugueses pertencentes a uma coleção de arte contemporânea, numa iniciativa criada em 2017 com o intuito de "afirmar a vitalidade da criação artística nacional e projetar a imagem de um país inovador", segundo um texto da organização.
Nas edições anteriores da Arte em São Bento, a Residência Oficial acolheu a Coleção de Serralves (2017), a Coleção António Cachola/Museu de Arte Contemporânea de Elvas (2018), a Coleção Norlinda e José Lima (2019), a Coleção Figueiredo Ribeiro (2020), a Coleção AA, de Ana Cristina e António Albertino Santos (2021) e a Coleção Peter Meeker, de Pedro Álvares Ribeiro (2022).´
* Por Ana Leiria da agência Lusa
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