Em entrevista ao SAPO24, o encenador Pedro Carraca conta que nesta adaptação, escrita pelos britânicos Robert Icke e Duncan Macmillan, o texto parte de um apêndice do romance que não aparece em todas as edições e que convida a um olhar sobre a história de Winston Smith, o protagonista da obra, em 2050.

Estes dramaturgos e encenadores vencedores de diversos prémios, entre eles o UK Theatre para Melhor Encenação, centram a narrativa num grupo de pessoas do ano 2050 a ler o diário secreto de Winston Smith. Durante a leitura, estes cidadãos guardam os seus telemóveis numa caixa para evitar serem pirateados e discutem, em privado, se Smith era uma pessoa real e se os acontecimentos que descreveu realmente aconteceram.

Esta adaptação procura juntar a representação a uma componente multimédia – com vídeo – que testa tanto a tolerância do público à violência, como o conhecimento do texto original.

"Esta é uma história antiga, mas nem por isso se perde nos dias de hoje. Aliás, nós estamos atualmente num momento que George Orwell previa que iria existir neste romance. Uma altura em que iria existir uma câmara de gravação e um microfone em cada sala, algo que existe hoje em dia com cada telemóvel a ter três câmaras de gravação e um microfone", refere Pedro Carraca. "Estamos muito mais à frente e de uma forma muito mais subtil dentro da realidade que ele previu".

Indo mais além do que o próprio romance, o futuro de 2050 não deixa de se apresentar ao espetador como distópico. "É um futuro distópico em que as próprias pessoas se perguntam se, na verdade, no passado, o partido, este partido dominador, que acaba com todas as outras alternativas, terá ganho ou não". "Não seria do interesse para todos os partidos, caso tivesse ganho, que não pudessem entender que ganhou?", questiona o encenador, sublinhando que a conclusão da peça é que "continuamos a viver sobre a regência do partido sem sequer nos apercebermos nisso".

Esta peça foi encenada pela primeira vez em 2013, no Reino Unido, e retrata, tal como o livro, o mundo distópico onde todos são observados e se observam, onde a verdade é brutalmente esmagada e em que todos devem obedecer ao líder do partido que tudo vê e tudo sabe, o Grande Irmão (Big Brother). Nesta realidade vive Winston Smith, a personagem principal da obra de Orwell, que ousa sonhar com um mundo livre.

"A peça não é o livro. A partir do momento em que nós pensamos que estamos a ver esta peça no futuro, e no futuro que é moldado também pela existência desse próprio livro em 1984, nós tiramos o protagonista e o protagonista passa a ser o livro em si. E, portanto, aquilo que nós vamos vendo é uma história, que é a história do Winston, mas é também a história do próprio romance '1984' ao longo de sete décadas, e como é que ele alterou ou não o futuro", refere o encenador.

Em jeito de provocação, questionámos se o momento de estreia da peça em Aveiro estava relacionado com a Eleições Americanas, que se realizaram no dia 6 de novembro, algo que Pedro Carraca se apressou a negar. "Infelizmente, quando nós decidimos fazer a peça, ou seja, quando eu trouxe à discussão fazer esta peça foi em maio de 2022 e ainda não prevíamos que a Kamala iria estar contra o Trump nesta luta de blocos. Mas já se previa um mundo que é cada vez mais polarizado e cada vez menos conversado", destaca, recordando as tensões que já se viam na altura, nomeadamente a guerra na Ucrânia e o regresso que as pessoas estavam a fazer à leitura de '1984'.

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O Teatro Aveirense é também coprodutor do espetáculo em conjunto com os Artistas Unidos e o Centro Cultural de Belém (CCB), e a peça vai depois passar pelo Teatro-Cine de Pombal, a 16 de novembro, pelo auditório do Fórum Cultural do Seixal, a 22 de novembro, e por fim, pelo CCB, de 21 a 23 de fevereiro de 2025, última data anunciada.

Os Artistas Unidos estão agora sem casa desde que foram obrigados a abandonar o Teatro da Politécnica, junto ao Jardim Botânico, nas antigas instalações da Faculdade de Ciências, em julho, por cessação do contrato de arrendamento com a Reitoria da Universidade de Lisboa. Desde essa altura vão estreando várias peças e experimentando outras "casas", com a certeza de que não querem ficar apenas em Lisboa.

"Nós somos patrocinados a 40% pelo Estado e esse patrocínio é um investimento público que é para todos os contribuintes do país. E a nós não nos faz sentido que esse dinheiro se esgote numa carreira em Lisboa", sublinha o encenador, que nota o surgimento de mais interessados que antes não contactavam com a companhia.

Além de Pedro Carraca, a equipa conta com Ana Castro, Carolina Salles, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Paulo Pinto, Raquel Montenegro e Tiago Matias no elenco.

Juntam-se também Jorge Cruz e Nuno Barroca no vídeo que neste espetáculo ganha uma importância especial. "Há todo um mapeamento e todo um tratamento de várias câmaras durante o espetáculo, com gravações ao vivo e com distorções criadas por eles, que não é muito comum em Portugal e podemos ver aqui", adianta o encenador, que destaca que as duas coisas mais importantes na peça são a imagem e a palavra, "a Novilíngua" criada pelo partido.

Em Aveiro a peça está completamente esgotada para este sábado, mas irá andar por todo o país até ao próximo ano. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui e o preço irá depender do local. O espetáculo é aconselhado para maiores de 14 anos.