A convite da editora Livros do Horizonte, o jornalista Joaquim Vieira, biógrafo de Mário Soares e Francisco Pinto Balsemão, assumiu a empreitada de escrever a biografia do escritor José Saramago, tarefa que lhe leva já três anos de trabalho e se encontra na fase final, com lançamento previsto dentro de um mês.
Assume que a proposta o assustou e entusiasmou, em simultâneo, mas não estando longe das suas possibilidades, aceitou o desafio e confessa que tem sido um “trabalho árduo, porque é um percurso de vida muito rico e muito extenso”.
“É um percurso muito rico de vida, sobretudo porque há uma parte que é menos conhecida das pessoas, porque Saramago praticamente só ganhou projeção aos 60 anos, há todo um percurso de evolução até aí que eu acho fascinante”, disse Joaquim Vieira, em entrevista à Lusa.
E explica: “Como é que uma pessoa está na obscuridade durante a maior parte da sua vida e, de repente, começa uma ascensão até chegar ao Nobel? Isso é o que eu acho talvez mais interessante na vida de Saramago, mas interessou-me muito esse primeiro meio século da sua vida, como é que foi a sua formação, para chegar a uma altura e fazer a caminhada para o Nobel”.
Sobre este assunto, há muita matéria para pesquisar, seja escrita por ele — artigos, textos, ficção, muitas cartas — ou sobre ele, como a correspondência trocada entre outros escritores, que dá uma “perspetiva interessante”, por ser uma “opinião livre”.
“Os escritores estavam a pensar que escreviam entre eles e, na altura, não se pensa que se está a escrever para a História”, considerou, exemplificando com o caso dos escritores Jorge de Sena e José Rodrigues Migueis, que escreviam entre eles comentando Saramago, e escreviam para Saramago — que era editor deles — de uma forma “muito diferente”.
“Tratam-no de uma certa maneira, mas depois, entre eles, fazem outro tipo de considerações. A confrontação desse duplo registo é muito curiosa”, considera.
Da consulta dos registos escritos e sobretudo dos depoimentos de pessoas que privaram com o escritor, Joaquim Vieira entrou em contacto com muitas histórias sobre o autor, que o surpreenderam.
Foram pessoas do meio literário, editores que trabalharam com ele, amigos e amigas, também, que revelaram uma relação com José Saramago “um pouco atribulada”.
Especificando, Joaquim Vieira diz que houve “muitos atos de sedução ao longo da vida”, que “há muitas histórias de Saramago com mulheres” e que hoje em dia, na era do movimento ‘#metoo’, “essas coisas, se calhar, ganham um outro significado”.
“As pessoas farão os seus juízos, não o acuso de assédio, mas descrevo certos episódios e depois as pessoas tiram as suas conclusões”, afirma.
O autor da biografia especifica que ninguém acusou o escritor de assédio, de “maneira explicita”, mas “contam-se situações que são um bocado complicadas”.
“Hoje em dia as situações ganham um significado completamente diferente, porque já acabou um pouco a coutada do macho ibérico, portanto vê-se as coisas agora de uma outra perspetiva, mas eu recolhi muitos depoimentos a esse respeito, amigas, amigos, pessoas que assistiram, pessoas que foram também alvo dessas manobras de sedução”, conta, confessando que este aspeto o “surpreendeu um bocado”, até porque chegou a privar com Saramago, e esta era uma imagem que não tinha dele.
Quanto ao resto, há um outro “episódio muito complicado” na vida de Saramago, que é conhecido e não será uma surpresa, que foi o saneamento de jornalistas do Diário de Notícias, que exigiam mais pluralismo, no chamado “verão quente” de 1975, do qual o escritor se “tentou distanciar, dizendo que não tinha responsabilidades nisso”.
“Mas não é essa a ideia que se tira, quando se investiga o assunto e se fala com pessoas que viveram isso também. A ideia que se tira é que ele teve responsabilidades” no saneamento de pelo menos 22 jornalistas, que correspondiam a mais de um terço de uma redação composta por 60.
“Agora, é preciso perceber isso no contexto da época, era uma época de muita agitação em que praticamente ninguém era neutro, toda a gente tomava posição, e Saramago esteve também envolvido em toda essa agitação que houve”.
Inclusive, conta Joaquim Vieira, sendo José Saramago diretor adjunto, na prática era a pessoa editorialmente mais responsável do jornal, até porque era ele quem escrevia o editorial – que na altura se chamava apontamentos, mas refletia a opinião do jornal -, e “essas opiniões, pode-se dizer que eram incendiárias no contexto da época do PREC [Período Revolucionário em Curso]”.
Na altura, dizia-se que o jornal estava na mão do PCP e, de facto, José Saramago era militante do partido, “só que aqueles editoriais escritos por ele eram mais radicais do que a posição do PCP, o que causou até incómodos ao próprio Partido Comunista”.
E este é um detalhe que Joaquim Vieira confessa que também desconhecia: Álvaro Cunhal, na altura secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), “considerava que Saramago era um esquerdista naquilo que escrevia, e o PCP tinha de estar a dar explicações aos militares que estavam no poder, a dizer que aquelas posições escritas no Diário de Notícias não eram aquilo que o PCP pensava daqueles assuntos, para não dar origem a mais confusões políticas”.
“Portanto, houve ali uma perturbação bastante grande para a qual o Saramago contribuiu nessa altura”, acrescenta.
Apesar destes episódios, Joaquim Vieira salienta que “o fundamental” da biografia de Saramago é a obra, a escrita e a literatura, que teve de ler ou reler de fio a pavio.
Se a sua relação com José Saramago, enquanto leitor, vai sair alterada depois de ter mergulhado na vida do escritor, é algo que Joaquim Vieira não sabe responder com rigor, porque, apesar de se tentar abstrair do autor quando lê a sua obra — porque reconhece que devem estar em planos separados -, admite que não o consiga fazer totalmente.
De qualquer modo, diz que esse é um problema que não se põe, porque tão cedo não irá ler nenhuma coisa de Saramago, e acrescenta: “Na minha vida é mesmo um capítulo arrumado”.
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