Nos últimos anos começou a desenhar-se um movimento designado craft beer revolution [revolução da cerveja artesanal] em todo o mundo. Portugal não é exceção e já são muitos os cervejeiros que se juntam a esta onda de produção artesanal. Habitualmente, todos começam por brincadeira e porque gostam o suficiente da bebida para querer perceber como ela é feita. Os amigos são os primeiros clientes e o sucesso é tal que surge um 'negócio a sério'.
Os jardins do Casino Estoril receberam, de 2 a 4 de junho, o The Beer Promenade Cascais, um festival que visa dar a conhecer estes produtores, juntamente com alguns cervejeiros internacionais. As histórias são muitas e variadas, os sabores também, mas a cerveja é o elo de ligação entre todas, num ambiente descontraído e de cooperação.
O mar num copo de cerveja
"Consegues identificar o cheiro a maresia, na espuma da cerveja?". É com esta pergunta de Miguel Lima, um dos responsáveis pelo projeto Deck Beer Lab, que começa a conversa com o SAPO24. No copo está a Cascales, uma cerveja Sea Gose. Mas o que é isto? Nada mais, nada menos do que uma cerveja salgada, com água do mar.
O projeto Deck Beer Lab, oriundo de Cascais, pretende ser uma forma de identificação do local através da cerveja e surgiu entre dois amigos. "Nós já tínhamos um projeto de restauração, o Deck Bar no Estoril, e pensámos até que ponto seria interessante ter uma cerveja da casa para dar aos clientes. Lancei a ideia ao meu sócio, o João Pisco, e ele achou interessante. Então começámos a fazer as primeiras cervejas", conta.
"O João era fotógrafo e transformámos o laboratório de fotografia dele num laboratório de cerveja. Daí o nosso nome comercial ser Deck Beer Lab, porque tudo começou num laboratório de fotografia que transformámos com o que sabíamos na altura e começámos a fazer as primeiras experiências. Demos aos amigos, recebemos o feedback e lançámo-nos no primeiro festival. Correu muito bem! Chegámos ao segundo dia e meio do festival e já não tínhamos cerveja e passámos o resto do dia a falar sobre a nossa produção, sem ter mais o que vender", recorda Miguel.
O mar de Cascais num copo de cerveja é o conceito-chave. "Como somos daqui, decidimos dar nomes de praias de Cascais às nossas cervejas. Assim, o cliente nacional tem uma certa identificação à terra e também a facilitou a perceção das pessoas acerca dos diferentes estilos de cerveja, porque tentámos encontrar e harmonizar o estilo da bebida com o nome da praia".
"Por exemplo, a nossa IPA [India Pale Ale] tem o nome da praia de Salazar. Como normalmente são cervejas mais amargas, achámos que casava bem com o nome", diz entre risos.
Contudo, a ideia do mar não ficou por aqui. "Há quatro anos, quando batizámos as cervejas com os nomes das praias, pensámos, na brincadeira, em fazer cerveja com água do mar. Fizemos algumas experiências que correram muito mal e ao longo destes anos já fizemos muita cerveja que não resultou bem. Há cerca de um ano conseguimos estabilizar mais a receita, conseguimos trabalhar melhor a água do mar para ela ser fermentável – as leveduras, na cerveja, são muito sensíveis e, muitas vezes, não espoletava o processo de fermentação. Sabíamos que havia colegas no estrangeiro que já o tinham feito e, se eles conseguiam fazer, nós também íamos conseguir. E assim foi!", conta orgulhoso.
"Fizemos esta cerveja, demos à prova a alguns experts que nos deram boas indicações. O que queríamos era uma espuma em que conseguíssemos sentir o cheiro a maresia e que fosse uma cerveja salgada. Para ajudar a este cheiro a maresia, introduzimos mexilhões na cerveja, que são muito típicos aqui de Cascais e daí termos dado este nome à cerveja. Cascales é a origem do nome de Cascais e que decorre, na altura, da existência de muitas cascas de mexilhão na areia da praia. Naturalmente, com a evolução, passou a ser Cascais".
E as reações a uma cerveja salgada? "As pessoas estranham muito. Uma cerveja salgada choca, o nosso palato não está à espera disso. Mas depois de darem o primeiro e o segundo gole dizem que vai ser muito interessante para o verão. É muito refrescante e vai bem com pratos de peixe, marisco, pratos leves", explica.
Na zona Oeste, mais concretamente na Sapataria, concelho de Sobral de Monte Agraço, também surgiu a inspiração do mar dentro de uma cerveja. Pedro Poejo é o mestre cervejeiro da marca Oeste, cujo nome dispensa explicações.
"Começou tudo como um projeto caseiro, como a maioria das cervejeiras. Depois foi evoluindo. Sou licenciado em Engenharia Biotecnológica e mestre em Tecnologia Alimentar/Qualidade e houve uma altura em que a minha atividade profissional não tinha muito a ver com a minha formação e eu quis fazer algo que estivesse relacionado. Então tentei ligar o meu hobby ao que queria a nível profissional e assim foi crescendo o negócio".
Este projeto, que começou com venda ao público em setembro de 2016, tem uma cerveja que reflete as praias do Oeste. "Foi uma parceria que fizemos com um restaurante na Ericeira, o Mar das Latas. Eles queriam um produto ligado ao mar e começámos a criar várias hipóteses. Pensámos na utilização das algas porque talvez assim conseguíssemos um produto que tivesse alguma coisa a ver com o mar, com o aroma de maresia que é muito agradável. E surgiu a Oeste Algas. É uma cerveja de verão, muito fresca, como um passeio junto à praia", remata.
A cerveja também é das mulheres
Na capital, a cerveja artesanal também cria raízes. Susana Cascais é sócia-gerente do projeto Dois Corvos, implantado no coração de Marvila, em Lisboa. A ideia do nome partiu do brasão da cidade que, associado à lenda do padroeiro S. Vicente, tem dois corvos. "Queríamos ter uma identidade muito forte, ligada a Lisboa. Durante muito tempo as indústrias saíram das cidades e foram para as periferias. Agora estamos a ver um regresso e isso é importante: é estar no sítio onde estão as pessoas, estarmos inseridos na vivência da cidade".
"A Dois Corvos faz agora dois anos de vida. Em julho comercializámos a nossa primeira cerveja. Eu e o Scott Steffens, o meu marido, vivemos nos Estados Unidos e mudámo-nos para Portugal em 2012. Nessa altura havia muito pouco oferta de cerveja artesanal por cá e não havia nenhuma em Lisboa. Não viemos com intenção de criar uma fábrica de cerveja, mas a necessidade acabou por tornar essa possibilidade mais real. O Scott já era cervejeiro caseiro desde os anos 90 e nós trouxemos o equipamento que usávamos para fazer cerveja em casa e foi assim que começou, como uma brincadeira. Fazíamos, os amigos provavam e gostavam e incentivaram-nos muito a fazer cerveja e a comercializar", recorda.
E não é estranho ser mulher neste mundo da produção cervejeira onde os homens são uma maioria? Para Susana, é "muito interessante", embora haja um senão. "Sinto-me sozinha, no sentido em que gostava que houvesse outras mulheres a entrar no negócio. Já se vai vendo, aos poucos. Ancestralmente, quem fazia cerveja eram as mulheres, por isso é um bocadinho voltar à história e viver as origens da cerveja", diz Susana.
Como consumidoras, há o estereótipo de que as mulheres são mais exigentes. Para Susana Cascais, é tudo uma questão de arriscar. "A cerveja artesanal é mesmo muito diferente, tanto nos sabores e aromas como no que nos faz sentir quando a bebemos, devido à presença de menos gás e de ingredientes processados e industriais. E é engraçado ver que as mulheres que vão visitar o nosso espaço e não gostam de cerveja não saem de lá sem provar e não só adoram como vão para as mais fortes. Tenho várias amigas que não gostavam e que de repente dão um pulo e já estão a beber uma Imperial Porter com 8% de álcool e é a cerveja preferida".
"Uma cerveja artesanal é muito a experimentação, é as pessoas darem-se a oportunidade de experimentar vários estilos. Se calhar não vão gostar de todos. Há um ou dois ou três que são os sabores de eleição, mas acho que com a cerveja artesanal não se pode dizer taxativamente ‘não gosto de cerveja’. É preciso provar e ir à descoberta. Muito provavelmente vai descobrir algo que gosta e que gosta muito", explica.
Da Invicta, chegam a todo o lado
Diogo Abreu é madeirense, mas o seu "coração já vive no Porto". Há dois anos, trocou a ideia de cerveja como "bebida de todos os adolescentes" pela sua essência. Quis, então, aprender a produzi-la e fez um curso em Lisboa. "Fiquei infetado até hoje", diz sorridente.
Além disso, para Diogo a cerveja é algo mais do que uma bebida. "A cerveja para mim não é um fim, é um meio. Costumo dizer que o meu ingrediente preferido na cerveja são as pessoas. A cerveja levou-me a conhecer pessoas incríveis".
Mas como chegou ao Porto? "Fui convidado recentemente para participar neste projeto, a OPO 74, em que acredito imenso. Acredito de tal maneira que sou um madeirense que gosta de cerveja mas que já pertence a uma cervejeira do Porto. Essa é que é a ironia! Gosto imenso da maneira de eles estarem, das cervejas, e estou cada vez mais dentro do projeto e a ponderar até mudar de residência".
Quanto às cervejas da marca, diz que "não são para 'geeks', são para toda a gente e altamente bebíveis". E é isso que tenta passar nos festivais onde passa. De sorriso na cara e copo na mão, vai explicando os pormenores que muitas vezes "passam despercebidos" na OPO 74.
"O João Rilo, responsável pela marca, é um apaixonado por música. Por isso, todas as nossas cervejas são homenagens a músicas de que gostamos. Por exemplo, a Grapefruit Moon é uma cerveja que leva toranja e é também uma música do Tom Waits; a Common People é dos Pulp; a Red Mosquito dos Pearl Jam, entre outras".
Mas a cultura numa aparentemente simples garrafa de cerveja não fica por aqui. "A nossa cerveja tem raízes profundas na cidade do Porto e isso vê-se também nos rótulos, com alusões aos azulejos das casas".
No logótipo, "três losangos intercetam-se e transformam-se em cerveja. O primeiro é malte, o segundo levedura, o terceiro lúpulo. Falta a água, mas não está exposta porque é um elemento, é inerente à vida", explica orgulhoso.
O nome da marca não deixa grandes dúvidas. "OPO é o nome internacional da cidade de Porto". Então e o 74? Com um ar enigmático, Diogo diz que "é absoluto segredo". E esse, segundo o ditado, é a alma do negócio.
Também na Invicta, Francisco Pereira leva uma outra marca cervejeira a bom porto: a Letra. A nível internacional, o destaque já é grande e aproveitam uma característica tipicamente portuguesa: a cultura do vinho. Consigo tem também Filipe Macieira, seu sócio.
"Temos a gama LETRAonOAK, que diz respeito a cervejas envelhecidas em barricas. O vinho do Porto está muito associado ao nosso projeto de internacionalização da marca, grande parte do que produzimos é para exportação. Somos um dos países a nível mundial com uma cultura do vinho mais vincada e com muito conhecimento na área. Envelhecer uma cerveja Strong Ale numa barrica de carvalho francês que esteve com vinho do Porto durante 20 anos é uma coisa fácil de percecionarmos. É uma coisa muito especial e única, que nos liga lá fora, porque somos do Douro e aproveitamos tudo isso. Além disso, o vinho do Porto é reconhecido a nível mundial e podemos projetar a marca como uma referência", esclarece Francisco.
Para ajudar a este reconhecimento, o próprio design da garrafa é um destaque. A rolha de cortiça e o rótulo tradicional e simples, em papel pardo, dão um ar realmente português à marca, com um toque premium.
Francisco conta que a Letra esteve presente, há duas semanas, no Copenhagen Beer Celebration, o festival mais reconhecido a nível internacional. "Apresentámos, essencialmente, cervejas envelhecidas em barrica de moscatel, Porto, aguardente. São todas cervejas fortes por si só, mas que ainda vão adquirir tons e sabores às barricas. São coisas únicas a nível mundial".
Por cá, têm um espaço na Rua da Alegria, no Porto, com capacidade para 40 torneiras de cerveja, estando a usar metade neste momento. "Também temos uma parceria com a Mikkeller, uma das marcas mais conceituadas do mundo, e estamos a montar uma Bottle Shop dentro do nosso espaço. O conceito passa também por ter um jardim, um Beer Garden, que é um espaço fantástico onde as pessoas podem beber uma cerveja ao final da tarde, com petiscos e coisas diferentes que harmonizam com as nossas cervejas", explica.
Quanto à marca, espelha um 'abecedário' das cervejas, com estilos para todos os gostos. De A a F, surge uma gama de cervejas que segue uma ordem. "Por exemplo, a Letra A é uma cerveja de trigo, a primeira que introduzimos e também a mais soft, mais leve, com aromas de banana. É uma cerveja muito de verão", refere o cervejeiro.
Entre os diferentes estilos, é difícil escolher o preferido. Contudo, resta a certeza de que qualquer um proporciona bons momentos e que representam bem o país e o que por cá se faz.
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