Há uma palavra que uma certa facção do hip-hop norte-americano utiliza para descrever os Black Eyed Peas: “vendidos”. É uma palavra que normalmente se escuta em meios punk, onde uma tentativa mais feérica de ganhar a vida através da arte é imediatamente vista como uma capitulação ao sistema capitalista que nos governa. No caso do grupo, o problema não residiu necessariamente em querer fazer dinheiro – todos precisamos de pôr pão na mesa –, mas na fórmula que decidiram adoptar para se fazer dinheiro: uma transformação completa da sonoridade do grupo e o abandonar da cena musical em que se inseriam, a do rap mais alternativo. Discos como “Behind the Front” (1998) e “Bridging the Gap” (2000), onde a consciência e a batida tinham o mesmo peso, ficaram para trás. O presente dos Black Eyed Peas começou a ser construído com “Elephunk” (2003), álbum que vendeu mais de 8,5 milhões de cópias por todo o mundo e onde will.i.am, o grande mentor da coisa, pôde por fim mostrar todo o seu génio enquanto máquina de fazer pop e ter sucesso com isso.
A inclusão de uma senhora chamada Fergie também teve a sua quota parte no êxito dos Black Eyed Peas. Convidada a cantar apenas num tema, depressa Fergie e os Black Eyed Peas perceberam que existia ali uma química que não podia ser ignorada. E o mesmo pensou Jimmy Iovine, diretor da Interscope, que imediatamente a convidou para fazer parte do grupo de forma permanente. Resultado: 'Pump It', 'Don't Phunk With My Heart', 'My Humps' ou 'Fergalicious' tornaram-se algumas das canções pop mais badaladas da primeira década do novo milénio, com gente que as cantava de Macau à Venezuela, da Nigéria à Guatemala (tudo países que os Black Eyed Peas visitaram). Que o grupo tenha, depois disso, abraçado a eletrónica mais efusiva, de estádio, de “The E.N.D.” – de onde vem aquela earworm intitulada 'I Gotta Feeling', uma espécie de 'Macarena' do século XXI na medida em que também é absolutamente insuportável –, parece não ter beliscado o estatuto que outrora alcançaram.
Até que saiu Fergie e os Black Eyed Peas entraram em hiato. Para regressarem em 2018, com “Masters of the Sun” (álbum onde voltaram às origens boom bap), e em 2020, com “Translation” (onde, sem pudor, se atiram à nova vaga da pop latina potenciada por 'Despacito'). Aquela palavra – “vendidos” – parece assim fazer cada vez mais sentido, mesmo que não se faça parte da facção mais tradicionalista do hip-hop. Os Black Eyed Peas parecem ter deixado de procurar a novidade; já estão num ponto da sua carreira em que a pilhagem daquilo que é moda (seja os ritmos latinos, seja o eurodance, seja ambos, como em 'Ritmo') constitui todo o seu modus operandi. Se isso é mau? Não, “mau” não é a palavra certa. A palavra certa é “ofensivo”, e essa é uma palavra que também descreve aquilo a que se assistiu no Rock In Rio.
'Let's Get It Started', a canção com que os Black Eyed Peas abriram, conferindo-lhe um ritmo quase samba, ainda chegou a abrir boas perspetivas. Na sua versão original, não é mais que um belo tema pop, sem descurar as origens r&b e hip-hop do grupo. A bomba 'Pump It', com o guitarrista de serviço a juntar-se ao quarteto – will.i.am, apl.de.ap, Taboo e a cantora J. Rey Soul, uma nova adição aos Black Eyed Peas – para tocar o riff da sagrada 'Misirlou' de Dick Dale (tornado icónico em “Pulp Fiction”), deixou estilhaços por todo o recinto. Foram os únicos dois pontos positivos que se retiveram de uma hora e vinte de concerto em que o desprezável autotune ressoou como uma avalancha e a eletrónica maximal colocou um prego no caixão daquilo que outrora foi uma música revolucionária. O house foi criado nos anos 80 por negros homossexuais, ostracizados pela sociedade em geral; na versão dos Black Eyed Peas – e de muitos dos que fazem este tipo de música hoje em dia, convém apontar – é uma sonoridade embalada e produzida em massa, o capital uma vez mais a recauchutar expressões que se lhe opõem e a comercializá-las a quem prefere ignorar a história, porque estudá-la é demasiado chato.
“Ofensivo”, porque como se isso não bastasse, o que fica no final deste segundo dia de Rock In Rio é a ideia de que os Black Eyed Peas não vieram dar música, mas sim apresentar um produto. E a prova disso está na forma como publicitaram o seu novo single, 'Don't You Worry', um plágio descarado de 'I Gotta Feeling' que também vai roubar os seus versos a Bob Marley. Depois de a terem apresentado ao vivo – até aí tudo bem – os norte-americanos decidiram terminar o “espetáculo” (vamos colocar entre aspas para não ofender os artistas pop que dão espetáculos a sério) com uma visualização coletiva do videoclip dessa mesma canção, num momento de marketing agressivo capaz de fazer corar de vergonha alheia muita agência publicitária. E assim também deu para perceber o porquê de will.i.am ter passado boa parte do tempo a fazer um direto para o Instagram enquanto estava em cima do palco: há que vender o produto através de todos os canais disponíveis. Resumidamente, o público que neste dia de Rock In Rio pagou 74 euros pelo bilhete teve que se sujeitar a um dos anúncios mais longos do mundo. Isto é um apelo aos Black Eyed Peas: tentem pelo menos encontrar um meio-termo entre a guetização e a Guettaização. Caso contrário, não estão no mundo da música a fazer nada. E, por arrasto, nós que gostamos de música também não.
Deste dia sobretudo dedicado à pop, a genuinidade e genialidade maiores vieram do Brasil. Assim como o NOS Primavera Sound tem os seus Shellac, o Rock In Rio tem a sua Ivete Sangalo. Em nova visita a uma terra que, garante, ama como poucas, a artista brasileira trouxe a sua música carnavalesca – axé, samba, tudo o mais que faça abanar o corpo – a um festival que parece ter enchido só para a ver, sobretudo de compatriotas: eram várias as bandeiras do Brasil que se vislumbravam por entre a plateia.
Quem, a quinze minutos do início, já gritava “poeira!”, mais gritou quando 'Sorte Grande' surge logo no início, fazendo com que todos tirassem o pé do chão. Uma velha piada associada a Mao Tsé-Tung dizia que se todos os chineses dessem uma patada no solo, ao mesmo tempo, provocariam um terremoto. O autor da graçola claramente nunca esteve com fãs de Ivete Sangalo. Nova vitória para uma declarada «filha desta terra», que não escondeu as saudades que tinha de pisar um palco português.
Se respeitamos Ivete, também não há como não respeitar David Carreira quando, cinco minutos após o início do espetáculo, já o português tem o público inteiro na mão. É aquilo a que se chama de entertainer nato, mesmo que em termos musicais não se tenha ainda decidido em relação ao rumo que quer para a sua – perdoem-nos o trocadilho infame – carreira: ora canta reggaeton, ora apresenta uma canção com laivos synthpop, ora atira-se à disco menos complexada, sem descurar as canções pop romântico-pegajosas através das quais o seu pai se tornou famoso.
Isso tudo, que não é mais que atirar o barro à parede a ver se cola, é facilmente posto de parte quando o vemos a controlar os gritos e o esbracejar da audiência, como um mestre de marionetas. Nem o facto de as interações entre canções soarem a algo lido de um teleponto parece ter quebrado a magia que aqueles que o foram ver sentiram, com um dos maiores aplausos da tarde a surgir quando David Carreira vestiu a camisola da seleção nacional para dar uns toques numa bola, perguntando se temos orgulho em sermos portugueses. Como bem sabemos, o patriotismo mede-se pela forma como festejamos um golo.
Ellie Goulding quase ia descobrindo, da pior maneira, que não é fácil subir a um palco depois de por ter lá passado um furacão chamado Ivete. A poucos minutos do início do seu concerto, o recinto onde pouco antes não cabia nem uma agulha esvaziou-se, ameaçando fazer de todo o espetáculo um enorme fiasco. A cantora britânica terá sentido a pressão, mostrando-se demasiado tímida e fechada, como quem deseja voltar urgentemente para o seu quarto de hotel. Tanto, que as tradutoras para língua gestual presentes em frente ao palco (uma das melhores ideias alguma vez tidas por um festival de música em Portugal) pareciam estar a divertir-se mais que a própria Goulding. Foi preciso esperar pelos temas mais mexidos, como 'Powerful', dos Major Lazer ou 'Outside', de Calvin Harris para que a britânica, e o público que entretanto regressou do seu jantar, espevitasse. Perto do final, a inevitável 'Love Me Like You Do' deu um ar de sua graça a todos os que viram “50 Sombras de Grey”. «Vão cantá-la comigo?», perguntou. A resposta foi um rotundo sim.
Num caso claro de peixe fora de água, os Magdalena Bay estrearam-se em Portugal com um concerto na Rock Street, começando a tocar perante duas dúzias de pessoas (e um fã extremoso, que não escondeu o entusiasmo) que, claramente, não sabiam ao que vinham. Mais estranharam ao ver Mica Tenenbaum, vocalista e compositora, com um headset e um fato justo, curto e colorido, não muito distinto daqueles que uma Beyoncé ou uma Rihanna poderiam vestir. A música não poderia estar mais longe disso: a pop dos Magdalena Bay vai buscar sobretudo aos anos 80, dos sintetizadores e do glitter, com uma boa dose de ruído rock e uma personalidade menos mulher e mais menina, twee misturado com Carly Rae Jepsen. As coreografias, simples e claramente ensiadas, procuraram dar alguma vivacidade a uma atuação que foi um tiro ao lado pelo contexto em que se inseriu. Dêem-lhes primeiro um Musicbox que eles depois conquistarão o mundo.
O Rock In Rio prossegue no próximo sábado, com concertos de Duran Duran, a-ha, UB40, Bush, Delfins, Ney Matogrosso e Omar Souleyman, entre outros.
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