A visita, que se realiza no âmbito do encontro “Isto é PARTIS [Práticas Artísticas para a Inclusão Social]”, da Fundação Calouste Gulbenkian, é parte do projeto Pa-Redes, promovido pelo Clube Intercultural Europeu (CIE), e envolve outros parceiros que atuam há vários anos naquela zona.
Um dos guias da visita é Mário Maia, de 51 anos, que recorda com saudade o tempo em que morava com os pais e os dez irmãos numa das barracas da Curraleira, um dos maiores bairros de lata de Lisboa, situado entre a praça Paiva Couceiro e as Olaias.
A ele cabe explicar a importância da antiga entrada do bairro, que mostra com orgulho, onde se situava o União Clube da Curraleira, agora desativado.
Era também ali que “as pessoas se encontravam”, nos dias em que havia mercado, “onde algumas pessoas do bairro vendiam hortaliça, peixe, fruta e os moradores vinham abastecer-se”, recordou em declarações à Lusa.
A comunicação com gente de fora do bairro era quase inexistente, mas ainda assim havia “quem se fosse aviar ao mercado”. “Não havia muita comunicação, porque aqui era a Curraleira”, disse.
Mário e os irmãos nasceram na barraca dos pais, com a ajuda da parteira do bairro, numa altura em que a água vinha de um chafariz e, a luz, de velas, histórias que João Alves, de 34 anos, e Nuno Furtado, de 31, só sabem de ouvir contar.
A Nuno cabe falar do chafariz, “que teve uma grande importância para todos os moradores da antiga Curraleira”.
O local, onde naquela altura os moradores iam buscar água e lavar a roupa, e onde havia um bebedouro usado pelo gado, é hoje “o Marquês de Pombal” da zona, o sítio de onde parte a marcha do Alto do Pina e onde se comemoram as vitórias.
“Queremos dar oportunidade de as pessoas conhecerem o agora e o antes”, disse.
Tal como Nuno, quando João nasceu, já chegava água às casas e tinham passado dez anos desde o fogo que destruiu dezenas de barracas e matou uma criança. Não viveu esse tempo, mas sabe a importância que a cruz - hoje num monte ao lado de uma via, onde passam diariamente centenas de automóveis - tem para os que o viveram.
“Neste ponto da cruz, fecho os olhos e consigo imaginar onde ficava a minha casa, as oficinas, as brincadeiras que tínhamos. Onde as barracas arderam ficou um largo, onde nunca mais fizeram casas, e passou a ser um espaço de brincadeira”, contou.
O levantamento destas e de outras memórias da população, “através de fotografias, testemunhos e conversas informais”, foi a primeira fase do projeto Pa-Redes, que começou em fevereiro de 2016, explicou à Lusa Magda Alves, do CIE.
Uma das ideias era transpor as memórias do passado para murais no presente, seguindo-se uma “fase de capacitação de crianças e jovens, em desenho, pintura, serigrafia, fotomontagem, durante vários meses, com apoio do artista Telmo Alcobia, da Associação de Antigos Alunos da Faculdade de Belas Artes”.
Desse processo surgiram dois murais, da autoria das crianças e jovens, que são, tal como outros, ponto de passagem obrigatório na visita guiada. “Eles é que escolheram os temas, relacionado com o território, e eles é que os fizeram”, explicou.
Não desfazendo o trabalho dos mais novos, “parte da população disse que gostaria que os seus murais fossem feitos por artistas profissionais, tendo em conta o que foi feito noutros bairros, para dar visibilidade e dignidade às suas memórias”.
“Designaram-se moradoras e moradores, padrinhos e madrinhas dos murais, escolheram-se os artistas e as memórias”, recordou, acrescentando ter havido “um diálogo constante” entre artistas e moradores.
Assim nasceu um mural de homenagem à criança que morreu no fogo de 1975, que, apesar de retratar um evento que traz más recordações, “tem muitas cores, está muito alegre”.
“Apesar do incêndio", destrutivo para muitos, "as pessoas falam da infância feliz que sempre tiveram, por isso a criança está com um ar feliz, quase que a sobressair do incêndio, a conseguir ultrapassar o episódio”, disse Magda Alves, acrescentando que, além disso, já que o mural está junto a um parque infantil, “convinha que não fosse demasiado pesado”.
Noutros murais estão em destaque “os lavadouros, os tanques, as pessoas a irem buscar água”, locais e situações de que muitos moradores falaram. “Os tanques como espaço de socialização, onde as mulheres se encontravam, contavam histórias e davam-se alguma força, mas também pelo facto de não haver água canalizada”, contou Magda Alves.
Há um outro mural que conta a história da Curraleira, desde a ocupação dos terrenos baldios e a construção das barracas, até à construção dos bairros de realojamento.
Numas escadas visíveis da via que liga a rotunda das Olaias à Praça Paiva Couceiro, os moradores quiseram que ficasse pintado um dos lemas do bairro: “Não olho, não ouço e não falo”.
“É um mural de duplas leituras”, disse Magda Alves, explicando tratar-se de “uma regra do bairro - não se fala do que se passa aqui, não há 'chibos' -, mas também de um recado para o exterior - não querem ver o que aqui se passa? não nos querem conhecer?”.
Estes bairros são “territórios remetidos um pouco para a invisibilidade”, que alguns moradores apelidam de “as costas de Lisboa”.
Por contar ficaram outras memórias. “O projeto acaba, o financiamento acabou, mas o objetivo é continuar e isto ser muito mais do que um roteiro de Arte Urbana”, disse Magda Alves. Um dos objetivos passa por “contribuir para a melhoria das condições de vida das pessoas, nomeadamente em termos de equipamentos”, mas também “incluir estes territórios na malha urbana da cidade”.
“Incluir estes moradores e moradoras na sua própria cidade, fazer com que haja mais pessoas que venham para cá, porque aprendemos também com elas, e que conheçam esta parte da cidade”, disse.
O convite é reforçado por Mário Maia, que, com outros moradores, tem estado “a fazer pelo bairro, a tirar um bocadinho a imagem que tinha”. “Faz falta as pessoas virem, conhecerem. Vivem aqui também seres humanos”, disse, lembrando que “em todos os bairros há problemas, até na avenida de Roma e na avenida da Liberdade”.
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