Talvez o nome não lhe seja imediatamente reconhecível, mas basta apontar que David Baddiel foi uma das três pessoas a escrever "Three Lions" para despertar algum tipo de recordação. "It's coming home, it's coming home", cantaram os ingleses durante o Euro2020, lembra-se? Foi uma canção escrita em 1996, ano em que a Inglaterra foi a anfitriã de um outro campeonato europeu. Tanto num caso como noutro, a seleção dos Três Leões não singrou — mas ficou a música para a eternidade.

Em conversa no seu quarto de hotel em Óbidos, para onde viajou a propósito de um convite para participar no festival literário Folio, o autor britânico aponta para uma das muitas ironias que compõem o Reino Unido.

"Uma ideia gira sobre a 'Three Lions' é que foi escrita por dois judeus, eu e o Ian Brody dos Lightning Seeds, e o Frank Skinner, que é católico. Por isso, é interessante ser esse o hino nacional inglês não-oficial, e que tenha sido escrito por, digamos, três outsiders", revela.

É em jeito de amena cavaqueira que Baddiel conversa com o SAPO24 — o que não é de estranhar, dada a sua experiência como humorista e o seu talento enquanto comunicador nato. No entanto, o que o trouxe a Portugal foi um assunto bem mais sério: o antissemitismo. Judeu secular, o autor britânico escreveu "Os Judeus Não Contam", ensaio polémico com a intenção de despertar tanto desconforto quanto consciência para as contradições de um mundo pós-Holocausto — e que, defende, tende a esquecer-se que os judeus continuam a ser alvo de ódio e perseguição. Aliás, nunca deixaram de o ser.

"Há uma espécie de rebaixamento no que toca aos judeus e ao antissemitismo por parte das pessoas que sentem ser as guardiãs de como devemos lidar com o racismo, a discriminação e os crimes de ódio."

Desde os protestos da extrema-direita em Charlottesville, em 2017, até às recentes declarações de Kanye West nas redes sociais, constata-se que é bastante comum ver manifestações públicas de antissemitismo. Mas o que o levou a escrever este livro foi uma forma mais subliminar e insidiosa de antissemitismo. Pode explicar qual é?

As duas

estão ligadas. Uma não existe sem a outra, porque o tipo de antissemitismo de que falo é muitas vezes reativo. Ou seja, as pessoas pensam em atitudes antissemitas como ataques muito diretos aos judeus, portanto, causados por nazis ou neonazis, ou mesmo sendo coisas como o que Kanye West disse. Mas do que estou a falar é de uma forma passiva de antissemitismo, é sobre a resposta ao racismo e à discriminação em geral. Vivemos em tempos no Ocidente onde as reações ao racismo e a todas as formas de discriminação são muito intensas. As redes sociais, em particular, têm impulsionado estes níveis muito elevados de consciência e há pessoas que são "canceladas", outras ficam muito zangadas, há manifestações e hashtags e coisas como o "Me Too". É um período que se presta muito a...

Escrutínio?

Sim, a escrutínio, a justiça racial, etc... Mas quando me desafiaram a escrever este livro, pensei "bem, mas isso não está a acontecer com os judeus". Não é que não haja apenas um aumento de ódio direto contra os judeus e das teorias da conspiração, ou que não haja uma subida real de ataques violentos contra os judeus. A questão é que há uma espécie de rebaixamento no que toca aos judeus e ao antissemitismo por parte das pessoas que sentem ser as guardiãs de como devemos lidar com racismo, a discriminação e os crimes de ódio. Mas julgo que está a mudar um pouco. A resposta ao Kanye foi interessante porque foi maior do que julgo que teria sido há alguns anos. As pessoas começaram a tornar-se mais conscientes de que os judeus fazem parte desta equação. Ao mesmo tempo, o próprio tweet do Kanye contém o cerne do problema, porque, como muitos ataques aos judeus, contém no seu âmago esta noção de "punching up" [expressão que significa fazer frente a alguém mais poderoso].

Em que sentido?

A maioria do racismo consiste no "punching down" [expressão que significa diminuir quem já se sente diminuído], imagina a minoria em causa como vermes ou lixo, ou seja lá o que for. Os judeus também sofrem isso. Mas, como menciono no meu livro, existe esta dualidade onde os judeus são também imaginados como ricos, poderosos, privilegiados e a controlar secretamente o mundo.

"Esta ideia de que não somos diferentes o suficiente funcionou contra nós, porque em culturas muito racistas levou a paranoia e, em última consequência, genocídio."

Esse é um conceito que desenvolve no livro, de que os judeus vivem confrontados com um padrão duplo no qual são simultaneamente sub e sobrestimados. Porquê?

Por vezes, as pessoas dizem-me — quanto a este livro e às coisas que digo — que todas as minorias têm este problema, em que sentem que são ignoradas na luta contra o racismo e a discriminação. Quanto a isso, não sei, porque não posso falar por elas, mas sei que os judeus são imaginados de uma forma muito específica. Há um maneira particular de olhar para os judeus e que os torna diferentes. Isso tem a ver com três características. Duas delas já referi: além de serem retratados como sub-humanos, os judeus são retratados como sobre-humanos. São sempre descritos como monstruosos pelos racistas, mas essa monstruosidade está frequentemente presente em cartoons ou em livros como "Os Protocolos dos Sábios de Sião", são identificados como uma entidade controladora do mundo. E a Internet tem responsabilidade nisto, porque é muito movida — ou, pelo menos, os seus recantos mais obscuros —  por teorias da conspiração. E quase todas, é espantoso, se centram na ideia de que os judeus controlam tudo, mesmo envolvendo temas recentes como as vacinas ou o colapso do sistema bancário mundial. Todas as pessoas que acham que encontraram a verdadeira explicação para estas coisas acabam por decidir que foram os judeus. E isso é devido a esta ideia do poder judaico. A outra razão [para esta dualidade] é que os judeus são uma etnia. São racialmente discriminados, mas como não parecem assim tão diferentes das típicas pessoas brancas, são imaginados como tal. Muitas vezes parecem brancos, mas nem todos, pois há judeus com outros tons de pele, muitos têm pele escura. No entanto, a ideia geral quanto aos judeus é de que são brancos e isso torna difícil às classes progressistas e politizadas considerá-los por completo como uma verdadeira minoria.

Porque não se "parecem" com uma?

Sim, e há exemplos óbvios de sucesso judeu, como o Mark Zuckerberg. É como se esta situação do Kanye fosse um ataque a Zuckerberg. Portanto, há alguns judeus que estão em posições de poder, mas é como se fossem entendidos como uma representação de todos os outros. Contudo, vejamos: se houver um ataque a uma charcutaria kosher em Nova Jersey, quando se lê sobre como o assunto é tratado, é quase como se este não fosse um ataque a uma minoria vulnerável, porque alguns judeus noutros lugares têm poder e dinheiro. Isso não acontece a outras minorias. Há montes de hindus ricos, mas se houver um ataque contra os hindus, as pessoas não o encaram como "pois, mas é compreensível porque os hindus são ricos".

"Eu sou ateu, mas isso não me daria livre-trânsito para fora de Auschwitz. Tenho membros da minha família que foram mortos no Holocausto e que sei que eram judeus seculares."

Uma questão que levanta no livro é que, ao promover-se esta ideia dos judeus como pessoas brancas, por assim dizer, isso leva ao apagamento da identidade judaica, certo?

É preciso encarar como é que a maioria branca dominante, especialmente os progressistas, imagina as minorias. E imaginam-nas como diferentes deles, não é? Já os judeus são simultaneamente vistos como um pouco diferentes, mas não o suficiente. E isso cria, a meu ver, muitas formas de antissemitismo dissimuladas, do género dizer-se "sim, esta pessoa é judia, eu 'descobri' que é judia". Eu sei, por falar com pessoas — mesmo aquelas que se julgam muito anti-discriminação — que a sua atitude para comigo muda um pouco quando descobrem que sou judeu. Ao mesmo tempo, não podem colocar-me na mesma categoria das pessoas negras, porque consideram que não demonstro ser suficientemente diferente delas. A história do racismo contra os judeus tem sido pautada muito pela ideia do "eles estão secretamente entre nós, mas onde estão?" O racismo aí trata-se de descobrir quem são os judeus, dando-lhes braçadeiras, colocando-os em listas, agrupando-os. Esta ideia de que não somos diferentes o suficiente funcionou contra nós, porque em culturas muito racistas levou a paranoia e, em última consequência, genocídio.

Folio
Folio créditos: DR

O que descreve vai ao encontro de outro conceito que descreve no livro, o de que os judeus são "brancos de Schrödinger".

Eu fiz um espetáculo ao vivo em Manchester onde subi ao palco apenas para falar sobre o livro, e sempre que cheguei a este tema — porque era uma performance sem guião — pensava "será que tenho de explicar às pessoas o que é o 'Gato de Schrödinger'"? É um bocado difícil de descrevê-lo, mas no essencial é aquela ideia de que se pode estar vivo e morto ao mesmo tempo, um paradoxo. Já o conceito dos "brancos de Schrödinger" — e eu uso uma ideia da física para explicar isto — é de que os judeus são brancos ou não dependendo das ideologias políticas do observador. Esta é uma ideia-chave, porque quando estou a falar de antissemitismo ou de racismo contra judeus, as pessoas têm de compreender que os judeus foram racializados.

Às vezes dizem-me que os judeus não podem sofrer racismo racial porque não são uma raça, biologicamente falando, mas esta é uma questão complicada. Há muitas pessoas que consideram ser de uma raça distinta, porque têm ADN asquenaze — até eu, quando fiz testes genéticos, descobri que sou 99% um judeu asquenaze —, se bem que isso não importa. O que me interessa é que, na conversa sobre racismo, os judeus são constantemente racializados, colocados numa categoria racial, normalmente uma raça inferior. É o que faz a extrema-direita, que defende que os judeus não são brancos, não fazem parte da raça branca ariana e que, por isso, precisam de ser exilados ou destruídos. Esse aspeto não é considerado quando os progressistas imaginam que os judeus são brancos, o que fazem com frequência, e rejeitam a ideia de que os judeus sofrem racismo por não serem brancos. Quando a Whoopi Goldberg vai a um programa e diz que o Holocausto não foi uma questão racial, que era uma questão de brancos contra brancos, o problema aí é mesmo esse: claro que os nazis não pensavam que os judeus eram brancos, por isso é que os massacraram.

Em relação ao judaísmo, parece haver também alguma dificuldade em distingui-lo entre uma religião e uma etnia. O David já disse várias vezes que é um judeu secular e ateu, mas acaba por ser julgado da mesma forma que um praticante ultraortodoxo, certo?

Eu descrevo-o da seguinte forma: eu sou ateu, mas isso não me daria livre-trânsito para fora de Auschwitz. Tenho membros da minha família que foram mortos no Holocausto e que sei que eram judeus seculares. Se olharmos para as leis de Nuremberga, estas dificilmente eram sobre religião. No fundo, se tivesses três avós judeus, serias carne para canhão nos campos de concentração. Do que não tinha noção quando escrevi o livro é quantas pessoas sentem confusão quanto a este tema. Julgava que era algo simples e óbvio, especialmente porque, se olharmos para a história do antissemitismo na era moderna, não se trata de religião. Pessoalmente, penso que nem sequer se trata de religião na Idade Média, mas parece-o.

Porque a perseguição religiosa misturava-se com a perseguição étnica?

Sim, mas o que acontece a partir do século XIX é que se trata muito mais, de uma ideia do judeu como uma espécie de figura perigosa, o que nada tem a ver com o facto de ser kosher, ir à sinagoga ou não rezar a Jesus. É apenas esta ideia monstruosa do judeu como uma alguém que mina as bases da sociedade. Mas voltando ao início, do que falo não é tanto quanto ao facto de isso existir — porque toda a gente sabe —, mas sim da resposta das pessoas progressistas ao tema. E a sua resposta muitas vezes é considerar que o antissemitismo não é um problema assim tão grande porque na realidade é apenas intolerância religiosa. Não, não é. É racismo, porque somos alvo, como todas as raças o são, por uma questão de sangue, de nascimento. 

E é interessante essa consideração, porque se quisermos simplificar a coisa ao máximo, a utilização de "os" ou "as" antes do nome de um grupo automaticamente discrimina-o, cria-se um "outro". Não é costume referir pessoas cristãs como "os cristãos", mas descreve-se quase sempre pessoas judias como "os judeus". 

Eu levei algum tempo a compreendê-lo, mas uma forma de ver isto — e tenho a certeza que este assunto vai voltar a ser abordado — é quando se fala de Israel. Uma pessoa progressiva nunca diria a um muçulmano que queira falar sobre islamofobia que antes tem de dizer o que pensa sobre a Arábia Saudita ou o Irão. E alguém alertou-me recentemente que ninguém pergunta a um cristão o que pensa sobre o que Vladimir Putin está a fazer na Ucrânia. Porque Putin é cristão e está a levar a cabo esta guerra, em parte, porque é uma guerra santa, está a lutar em nome da igreja ortodoxa russa. O que quero dizer é que só quando se é membro de uma minoria é que se é julgado pelas ações de qualquer membro dessa minoria. Se fazes parte da maioria, não sentes isso.

"Desde que o livro saiu, tenho notado que as pessoas têm alguma dificuldade em aceitar a sua finalidade, de que se calhar temos de começar a falar de judeus tal como falamos de outras minorias."

Um das conclusões principais que ressalva é esta ideia de que os progressistas têm um ângulo morto no que toca ao antissemitismo, porque é difícil combater por uma minoria que é encarada como estando diretamente ligada a uma noção de capitalismo e de poder. Pode explicar essa ideia?

Eu realizei um documentário sobre o meu livro para o Channel Four e falei com Jonathan Safran Foer. Ele colocou a questão de forma muito simples: "A forma como muitas pessoas veem o mundo hoje em dia é a de assumir que há apenas vítimas e agressores" [o termo original é "victimizers", que não tem tradução direta em português europeu]. Ou, como eu descreveria, poderosos e impotentes, e os poderosos são sempre responsáveis pelo que acontece aos impotentes. É visto a preto e branco. A maioria das pessoas imagina os judeus como parte dos poderosos. Em qualquer que seja a sua posição do espetro [político], acham difícil de imaginar os judeus impotentes. E há muitas razões para isso. Uma delas é apenas racismo puro, a associação de judeus a dinheiro. Outra tem a ver com aquilo a que podemos chamar o "verdadeiro sucesso judeu": os judeus têm-se saído bem como uma minoria que se adapta a outras culturas, se bem que isso vem sempre com o senão de que assim que os judeus começam a singrar, acontecem-lhes coisas violentas. É o que tem acontecido ao longo da história. Outra razão ainda é o que já falamos, de que os judeus não parecem ou se apresentam suficientemente diferentes para entrar na categoria dos impotentes. Se imaginarmos o mundo assim, então, usando os termos do Jonathan, não podemos colocar os judeus na categoria das vítimas, ou seja, têm de entrar na dos agressores. Mas o mundo é muito mais complicado do que isso. 

Desde que o livro saiu, tenho notado que as pessoas têm alguma dificuldade em aceitar a sua finalidade, de que se calhar temos de começar a falar de judeus tal como falamos de outras minorias, de que ofensas a judeus devem causar "cancelamentos", de que a identidade judaica é um tipo particular de identidade que outras pessoas talvez não devam apropriar-se. Por exemplo, uma das coisas de que falo no livro é o facto de os judeus continuarem a ser ignorados nos castings de filmes e séries de televisão, sendo que personagens judias não vão para atores judeus. E agora isso é inaceitável para quase todas as outras minorias. Mas no que toca aos judeus, tudo bem, acontece a toda a hora. Bradley Cooper interpreta Leonard Bernstein num filme que vai sair, uma grande produção americana, e está a fazê-lo com um nariz prostético. É algo inimaginável para qualquer outra minoria que alguém use uma prótese para se parecer mais com essa etnia, não sendo a sua.

Portanto, a ideia que apresenta é de que há uma conversa sobre este tema e com visões contrárias quanto à presença de raças e etnias. Por exemplo, há quem se queixe que a nova série do Senhor dos Anéis tem demasiada diversidade étnica, mas os judeus nunca são incluídos.

O livro tem sido muito bem sucedido, mas ainda sinto uma espécie de raiva entre alguns progressistas — e voltarei a vê-la quando este filme ["Maestro", onde figura Bradley Cooper] for lançado — com a ideia de que os judeus devem ser incluídos na conversa. Porque há um sentimento — especialmente da parte das pessoas brancas, menos das outras minorias — de que estão a gastar todo o seu tempo a tentar preocupar-se com X, Y, e Z e agora os judeus perguntam "e nós?". A Sarah Silverman diz no meu documentário que o que pensam é: "Vocês estão bem, não precisam disto". E o problema com isso é duplo: um é que a suposição de estarmos bem cria uma espécie de ideia de que, quando coisas más acontecem — como, por exemplo, quando 11 judeus são mortos a tiro em Pittsburgh —, não se tem de mudar nada porque foi apenas uma aberração; o outro é que faz com que muitos judeus se sintam excluídos. A maioria tem antepassados — apenas há uma ou duas gerações — que viveram períodos muito, muito extremos. A minha mãe nasceu na Alemanha nazi, toda a sua família foi assassinada. Isto não aconteceu há séculos, trata-se da minha mãe.

O que é extraordinário é o quanto isto às vezes cai em ouvidos moucos. Eu não gosto de falar do Holocausto o tempo todo, mas a questão é que, se eu fosse de outra minoria e tivesse vindo de algum lugar em África, digamos, devido a alguma coisa terrível que tinha acontecido nesse local — como a toda a minha família ter sido assassinada —, penso que isso iria, esperemos pelo menos, continuar a ressoar e a gerar interesse e simpatia e uma necessidade de proteção numa conversa progressiva. Tal não acontece quando se trata do Holocausto.

"Os judeus, como os meus avós, estavam a dar-se bem na Alemanha, em termos materiais, no início dos anos 30. E depois foram assassinados. Esta ideia muito, vá lá, de esquerda, de que tudo o que importa é dinheiro e circunstâncias materiais e que os judeus estão a dar-se bem, não é verdade. O racismo é muito mais complicado e perigoso do que isso."

Estou a pensar, por exemplo, na comunidade irlandesa nos EUA, também fruto de muita imigração. Os irlandeses ainda hoje têm uma conotação de classe trabalhadora, ao contrário, talvez, dos judeus.

No que toca às circunstâncias materiais dos judeus, eu fiz uma pequena pesquisa e constatei que não são, de facto, as pessoas mais ricas do mundo, para começar. Mas a ideia que pretendo passar é que nem todo o racismo é igual. Eu diria que os judeus não sofrem o mesmo tipo de racismo estrutural que, por exemplo, os negros na América sofrem. Há inquestionavelmente racismo estrutural por lá, e no Reino Unido também, contra os negros, em termos de oportunidades de emprego, e tem havido tentativas de corrigir esta situação. É algo que os judeus não sofrem da mesma maneira — apesar de o terem sofrido no passado, quando tinham de mudar os seus nomes para conseguir emprego. Mas o que continua a acontecer é um aumento do crime violento, do crime de ódio, um aumento do antissemitismo online e um aumento da normalização destas coisas, o que, de um ponto de vista histórico, é muito preocupante. Porque os judeus, como os meus avós, estavam a dar-se bem na Alemanha, em termos materiais, no início dos anos 30. E depois foram assassinados. Esta ideia muito, vá lá, de esquerda, de que tudo o que importa é dinheiro e circunstâncias materiais e que os judeus estão a dar-se bem, não é verdade. O racismo é muito mais complicado e perigoso do que isso.

Parece contraditória essa ideia de minimizar os perigos antissemitismo quando os relatórios indicam que os crimes de ódio têm aumentado em particular contra os judeus. Quando fala das teorias de conspiração, estranhei não ter mencionado no livro a ideia do globalismo, da filantropia de George Soros. A ideia do conspirador judeu, está a crescer?

Definitivamente. As teorias da conspiração estão a crescer em geral. Há pessoas que eu conheço que estão cada vez mais aptas a acreditar nelas, pessoas inteligentes — não vou mencionar nomes —, que são muito conhecidas no Reino Unido. O problema é que é tão fácil passar esta ideia da elite controladora, dos globalistas, dos interesses instalados... Se se quiser imaginar como é o poder, qual o seu aspeto, ele vai ser sempre representado, na minha opinião, como um judeu. Como aquele mural de que falo no livro que aquele tipo fez, o Mear One. Essa é a imaginação padrão na cabeça de um teórico da conspiração quanto às pessoas que controlam o mundo, todos barbudos, com o nariz em gancho e muito dinheiro, Temos séculos e séculos desta forma de imaginar esta espécie de riqueza e poder obscuros, associados a esse tipo de rosto.

No que toca a essa desvalorização do antissemitismo, lamenta também no livro que quem o perpetua tem muitas vezes carta branca para fazê-lo, ao contrário de outras formas de discurso de ódio.

A questão é que podemos chamar à cultura progressista uma cultura reativa. Não é que não gere alguns movimentos, mas até mesmo o "Black Lives Matter" foi uma resposta a George Floyd, certo? O "Me Too" foi uma resposta a Harvey Weinstein. Estas coisas são boas, mas são reativas. O que estou apontar é que, quando algo antissemita acontece, a resposta é mais silenciosa. Como frisei, a situação do Kanye West gerou mais ruído do que estava à espera.

Mas ele também é uma figura pública de maior dimensão.

E, no entanto, não só não pediu desculpa, como o Elon Musk, que basicamente vai ser o dono do Twitter em breve, acabou por publicar um tweet a dizer "Oh, eu falei com ele e acho que ele levou a sério o que eu disse". Agora, o que se tem de imaginar é se tivesse sido uma pessoa branca a dizer algo igualmente negativo sobre alguém da identidade de Kanye, algo igualmente horrível sobre uma pessoa negra — essa pessoa teria sido expulsa do Twitter e o Elon Musk não estaria a dizer "eu falei com ele, está tudo bem". Eu não gosto do conceito da "cultura do cancelamento", da forma como as pessoas podem ser destruídas por dizer coisas estúpidas, mas, se existe, tem de ser equilibrado para todos.

Folio 2022
Folio 2022 créditos: DR

Um dos momentos do livro onde parece mesmo ter o "coração na boca" é quando aborda os comentários de uma antiga deputada do Parlamento Britânico que sugeriu que deve haver uma razão para os judeus serem historicamente perseguidos, como se fossem os responsáveis por isso. De onde pensa vir este tipo de mentalidade?

Bem, ela é simplesmente uma antissemita, a Jenny Tong. Ela encobre o seu antissemitismo com anti-Sionismo, mas se vires a publicação de que falo no Facebook, ela escreveu-o imediatamente após o massacre de Pittsburgh, em 2018, por um atirador da extrema-direita. Ela assume que o ataque estava relacionado com Israel, só que não teve nada a ver. Noutro post, de um vídeo de uma mulher a criticar Israel, ela [Tong] começa apenas a falar de judeus no geral. Deixa cair a máscara, e em vez de usar a estratégia de nos chamar sionistas ou israelitas, diz "mas o que é que se passa com os judeus que os tem levado a ser continuamente odiados? Se perguntares isto, serás acusado de ser um antissemita". A questão é que eu estudei inglês na universidade e examinei textos, poesia, livros, para procurar interpretações. E se eu aplicar essas competências a coisas como estas publicações no Facebook, é muito óbvio o que se passa. Ela está quase a admiti-lo em voz alta. Diz "acho que vou ser acusada de antissemitismo". E a razão para dizer isso é porque, sim, é antissemita. O que será mais antissemita do que dizer: "Oh, deve haver algo nos judeus que os tenha levado a ser eternamente odiados?"

"Obviamente que a extrema-direita encontrará sempre uma minoria para bode expiatório. Fazem-no sempre. A razão pela qual por vezes os judeus já não são o alvo é porque já foram todos exilados ou mortos. E depois apenas avançam para outra minoria."

É o chamado dog-whistling, não é? [a expressão significa um tipo de mensagem que parece inócua mas que se dirige secretamente a um público específico]

É mais do que isso. Este é um tema comum para antissemitas. Wiley, um rapper britânico, andou a filmar-se e a publicar isso no Twitter com perguntas como: "Porque é que Hitler vos fez isso? Eu nunca recebo uma resposta. Ele deve ter tido uma razão, blá, blá, blá, blá". Roald Dahl fez a mesma coisa. Em 1982, disse que "até mesmo um nojento como Hitler deve ter tido alguma razão para fazer o que fez". Esta ideia de ter "uma razão" baseia-se no pressuposto de que os judeus devem ser responsáveis porque são de alguma forma maus. A verdade, claro, é que Hitler, tal como muitas outras pessoas ao longo da história, escolheram fazer dos judeus bodes-expiatórios para prosseguir as suas razões psicóticas e socio-económicas. Porque é politicamente útil a um governo dizer que tudo o que está errado é por causa de uma minoria.

Como as populações ciganas, por exemplo.

Sim, e foram várias, têm sido minorias diferentes ao longo dos anos, mas são muito frequentemente os judeus. E, no entanto, apesar de ser esse o caso, ainda persiste esta sensação de que há algo em relação aos judeus. Parece algo tão obviamente antissemita, e no entanto Jenny Tong escreve-o no Facebook como se estivesse a dizer algo razoável.

No que toca a Portugal, as questões de judaísmo estão quase ausentes da discussão portuguesa. A extrema-direita não aponta o dedo aos judeus, mas sim às comunidades ciganas. Mas a lógica que descreve parece ser a mesma.

Obviamente que a extrema-direita encontrará sempre uma minoria para bode expiatório. Fazem-no sempre. A razão pela qual por vezes os judeus já não são o alvo é porque já foram todos exilados ou mortos. E depois apenas avançam para outra minoria.

Numa altura em que se fala muito de reparações históricas, sente que há falta de reflexão, principalmente em alguns países europeus, no que toca aos judeus?

Há uma total ausência de qualquer forma de reflexão e conversa sobre reparações aos judeus, quanto a expulsões, quanto a roubos, quanto às enormes quantidades de dinheiro que foram retiradas a judeus, que foram forçados a ser credores de dinheiro e a gerir dívidas — em Inglaterra, a aristocracia e a realeza liquidavam as suas dívidas, matando judeus. Até a mim é devida uma enorme quantidade de reparações por parte da Alemanha, mas não posso recebê-la porque a propriedade dos meus avós, que era uma fábrica, já fazia parte da Rússia no final da guerra. Perdemo-la por causa dos nazis, mas não podemos receber dinheiro por ela, porque o que resta dessa propriedade está agora em Kaliningrado [cidade localizada no enclave ocidental russo entre a Polónia e a Lituânia], e os alemães não assumem qualquer responsabilidade por isso, o que é obviamente uma loucura do ponto de vista ético. Mas esse é um bom tema a enquadrar no livro, porque se tem falado muito sobre reparações coloniais. O Reino Unido tem uma quantidade enorme de coisas que saqueou arrumadas no Museu Britânico, e eu concordo que deviam ser devolvidas ou, pelo menos, devia haver compensações. Mas lá está, se chegares e perguntares "então e os judeus?" (risos). As pessoas rir-se-iam ou ficariam zangadas. Quanto a esse tema, as pessoas consideram que os judeus já foram suficientemente recompensados, o que não é o caso, especialmente no que toca ao valor real do que foi perdido. Os gestos feitos foram bastante pequenos e foram para comunidades muito específicas. A comunidade judaica da Alemanha Ocidental safou-se bem porque os americanos forçaram os alemães a pagar-lhes, mas a comunidade judaica da Alemanha de Leste não recebeu dinheiro nenhum até à queda do muro. E por essa altura, era tarde de mais.

Portugal também tem um passado negro com o judaísmo — houve pogroms, conversões forçadas durante o período da Inquisição, e houve de facto uma grande expulsão por decreto real no século XV.

Inglaterra foi o primeiro país a expulsar os judeus, em 1290, durante três séculos. Eu sei que também foram expulsos de Espanha e sabia que os sefarditas foram expulsos de Portugal, mas não sabia quando foi. Uma das coisas sobre o antissemitismo, que é tão terrível quanto espantosa, é que se formos ler a entrada da Wikipédia sobre antissemitismo, é tão longa... Porque eu julgo que as pessoas pensam que se resume ao Holocausto, mas há séculos e séculos e séculos para trás.

"Eu ouço isto muitas vezes de jovens judeus: se um judeu quiser falar de antissemitismo, digamos, numa reunião de estudantes ativistas, não poderá fazê-lo sem primeiro alguém dizer "bem, e o que pensas de Israel?""

O Holocausto acaba por desviar a atenção desse legado histórico.

A Rússia também foi incrivelmente antissemita ao longo da história, por exemplo. Eu considero que existe uma forma muito complicada de antissemitismo na atual guerra, porque os russos apresentaram os ucranianos como nazis. Sabemos que isso não é verdade, não só porque Zelensky é um judeu, como o seu avô foi um sobrevivente do Holocausto. Mas eles têm de os apresentar como nazis e, como parte disso, há um tipo de negação estranha do Holocausto porque a forma como Putin fala de desnazificação é como se o Holocausto não fosse algo que tivesse acontecido aos judeus de qualquer das formas. Ouvi uma entrevista a uma mulher no Reino Unido que disse que o Holocausto foi algo que afetou muito mais os russos do que aos judeus. E isso é um tipo de negação do Holocausto. Está tudo muito embrulhado e eu pergunto-me muitas vezes quando chegará uma altura em que os judeus não estejam no fogo cruzado da História.

Os Judeus Não Contam
Os Judeus Não Contam créditos: Vogais

Livro: "Os Judeus Não Contam"

Autor: David Baddiel

Editora: Vogais

Preço: 12,56€

No que toca a Israel, tem defendido que equivaler judeus a israelitas é, por inerência, um ponto de vista racista. De que forma pensa que o conflito israelo-palestiniano contamina o discurso público em relação ao judaísmo?

Contamina-o enormemente, especialmente na esfera progressista. É a forma mais óbvia pela qual um judeu que tente falar de antissemitismo é ignorado ou descartado nesses círculos. Eu ouço isto muitas vezes de jovens judeus: se um judeu quiser falar de antissemitismo, digamos, numa reunião de estudantes ativistas, não poderá fazê-lo sem primeiro alguém dizer "bem, e o que pensas de Israel?" Considero isso racista porque penso que não é uma resposta coletiva que se exija de outra minoria. Não é exigido a um muçulmano que queira falar de islamofobia ou a qualquer outra minoria que tenha de justificar as ações de um Estado estrangeiro distante. Israel tem um problema e os judeus têm um problema com o facto de Israel ser o único estado judeu, é mais uma razão para se sentirem vulneráveis. Mas na verdade, isso torna a situação pior, por ser tão concentrada. Tudo o que Israel faz, parece reflectir-se sobre todos os judeus.

Pelo contrário, há muitos Estados muçulmanos, e todos agem de formas diferentes. Algumas muito más, como no Irão, que está a fazer coisas terríveis neste momento. Eu, não sendo racista, acho que tal não se reflete nos muçulmanos de todo o mundo. Contudo, noto também que quando alguém fala de islamofobia, não é chamado a justificar as ações da República Islâmica do Irão contra as mulheres que estão a ser alvejadas por não usarem um hijab neste momento. E isso é o correto, não lhes deve ser feita essa pergunta, que fique muito claro.

"Este livro é uma espécie de crítica à esquerda. Mas só o é porque à direita vejo um antissemitismo crescente e contínuo, por isso não estou interessado em ser apoiado pela direita. A minha crítica à esquerda é que não estão assim tão preocupados quanto a isso."

Como escreve no livro, numa ocasião comentou em tom de piada no Twitter que não deveria estar a ver golfe na televisão, que isso lhe provocava vergonha. Alguém respondeu "que sorte estar a assistir a golfe, não tem de se preocupar com as pessoas a levarem tiros na Palestina". No fundo, a insinuar que o David não quer saber desse tema.

Muitas dessas interações são de bots no Twitter, mas, mesmo sendo bots ou o que quer que seja, ainda é indicativo de uma resposta real. Quando o Liverpool FC lançou uma saudação ao Yom Kippur no Twitter, as respostas foram todas basicamente a dizer "e a Palestina? Isto é nojento por causa da Faixa de Gaza", ou outra justificação. E o Yom Kippur não é uma coisa israelita, é uma coisa judaica. O problema é que a identidade judaica, que remonta a séculos, está continuamente a ser associada a Israel. Não me considero um ativista, mas recebo textos e cartas de jovens ativistas judeus que sentem que não podem trazer à tona o antissemitismo, porque serão confrontados com uma barragem de perguntas sobre Israel.

Existe esta ideia de que, como consequência de uma certa esquerda ter dificuldade em combater o antissemitismo, a causa tem sido defendida e por vezes co-optada pela direita. A este respeito, sentiu em algum momento que alguém tenha tentado instrumentalizar o seu livro? 

Nem por isso. Quero dizer, alguns políticos conservadores no Reino Unido escreveram algumas coisas, como o Michael Gove — que neste momento é considerado centro-direita, mas foi uma das pessoas responsáveis pelo Brexit —, que elogiou o livro no Twitter. É uma espécie de faca de dois gumes para mim, como alguém que vem da esquerda, porque este livro é uma espécie de crítica à esquerda. Mas só o é porque à direita vejo um antissemitismo crescente e contínuo, por isso não estou interessado em ser apoiado pela direita. A minha crítica à esquerda é que não estão assim tão preocupados quanto a isso, como estão com outros tipos de racismo. Foi bastante alienante durante a liderança de Jeremy Corbyn do Partido Trabalhista, porque no início fui um grande apoiante dele. Mas depois tornou-se claro para mim que havia um problema: não era o facto de ele ser ou não um antissemita, mas sim o facto de que a comunidade judaica estava a levantar essa questão [do combate ao antissemitismo] e estava a ser descartada. Isso foi o que me irritou. Para mim, esta é uma questão interessante, porque tornei-me uma pessoa muito politicamente flutuante, já não tenho um mapa ideológico que imponho ao mundo. Penso em cada assunto individualmente, sou uma manta de retalhos. As leituras que fazem do meu livro não me incomodam no geral, mas o que é muito complicado é estabelecer que o facto do antissemitismo estar a ser tomado com uma arma da direita não significa que não exista à esquerda. 

A leitura que faço é que pende à esquerda, pelo menos a nível social, e que ao fazer esta crítica, pretende que a esquerda faça um melhor trabalho.

Sim, estou a querer dizer isso, mas também pretendo sublinhar que, historicamente, o antissemitismo tem sido sempre associado a ações muito violentas perpetradas pela extrema-direita, e parece que já acabou, as pessoas pensam que é uma coisa do passado. Que há outras preocupações a ter hoje em dia. Mas não é assim que a história funciona, temos de encarar as coisas com nuance.

Por outro lado, considera que este livro proporcionou uma plataforma para que os judeus sejam mais vocais? 

Sim, especialmente no Reino Unido, e na América um pouco também. O fator mais importante — e que é muito banal — é o título, porque é ousado. Por exemplo, na Alemanha, estupidamente, não lhe chamaram isso, acharam que ia ser demasiado extremo, tendo em conta a sua história. Mas o título tem permitido algo. De certa forma, em qualquer tipo de movimento social é necessária uma hashtag, algo que precisa de estar nas redes sociais quando algo acontece. Por exemplo, quando o Royal Court, um teatro de Londres, encomendou uma nova peça, esta tinha uma personagem que é um bilionário sem escrúpulos, e chamava-se Herschel Fink, que é um nome comicamente judeu. Eles alegaram que não se aperceberam disso, mas, de qualquer modo, quando isso aconteceu pela primeira vez, o hashtag #jewsdontcount foi tendência no Twitter britânico. É um bom exemplo do que falamos, porque no mundo do teatro britânico está muito "woke". Acontece que esta personagem deveria ter sido originalmente mexicana, mas eles decidiram que isso não podia ser, porque não podia haver uma personagem mexicana que fosse um vilão, seria ofensivo para essa comunidade. Por isso chamaram-lhe Herschel Fink, que é um nome judeu. Ou seja, isso já não conta. Desta forma, o título tornou-se um "grito de guerra" para a comunidade do Reino Unido quando coisas como esta acontecem e sentimos que os judeus não contam. Todos os dias alguém me escreve com um exemplo do que estou a falar e diz: "Os judeus não contam". E isso importa, porque ajudou a equilibrar as coisas.