“MacDonald” Stradivarius, uma viola de arco construída por Antonio Stradivari em 1719, tornou-se viral em 2014, um feito raro para um instrumento de arco nos dias de hoje. Na altura, a sociedade leiloeira Sotheby’s andava à procura de um novo dono para este instrumento. A contrapartida era que a licitação base começava nos 45 milhões de dólares americanos.
Caso tivesse sido bem-sucedida, este instrumento do período de Ouro de Stradivari teria batido recordes de venda para qualquer instrumento musical alguma vez vendido em leilão. Mas não foi o caso.
Um resultado dececionante para Tim Ingles, consultor na casa de leilões especializada em instrumentos de música Ingles & Hayday, que achava o valor justificável e que, na altura, comentou com David Kestenbaum, do podcast norte-americano Planet Money, “soa a uma Strad. Toda a gente sabe que [os instrumentos Stradivarius] têm uma profundidade no tom e uma qualidade prateada nos seus registos altos.”
Em Portugal, há quem não partilhe da mesma opinião. O conceituado violoncelista Pavel Gomziakov, residente em Lisboa desde 2010, comentou com o SAPO24, minutos antes de partir para Moscovo: “é um disparate. Obviamente que ninguém comprou essa viola de arco. A licitação inicial foi sobrevalorizada.”
O que é que a Stradivarius tem?
O resultado do leilão da “MacDonald” Strad serve de indício para a dificuldade que é valorizar um Stradivarius. Particularmente quando existem fatores externos à sua tecnicalidade e uma reputação que atingiu a cultura pop ocidental desde o século XVI.
Pavel considera que não existe nenhum "mito" por detrás da marca e atribui o sucesso desta à “genialidade” de um luthier (um artesão de instrumentos musicais) de Cremona, cujas medidas de construção são imitadas ainda nos dias de hoje. Ainda vivo, terão sido as suas colocações em concursos que contribuíram para a boa reputação, juntamente com nomes como Bergonzi, Guarneri e Ruggeri, tal como o preço muito exclusivo de cada peça.
“Mesmo na sua vida foram instrumentos muito caros. Na altura, quando ainda eram considerados violinos modernos, custavam tanto como uma casa em Itália. Quem podia comprar estes instrumentos eram famílias reais, duques. Apenas alguns caíam nas mãos dos músicos”, garante Pavel. “Hoje em dia, muitos deles pertencem a fundações privadas ou bancos.”
Em Portugal, o único instrumento Stradivarius é um violoncelo pertencente à mesma época de ouro que a viola de arco “MacDonald”, adquirido pelo Rei D. Luís, mais conhecido como "Stradivarius Chevillard - Rei de Portugal", e que atualmente se encontra conservado no Museu Nacional da Música, em Lisboa, e que todos os anos emerge do seu casulo para ser tocado em espetáculos que trazem enchentes de curiosos que desejam experienciar o som de um instrumento Stradivarius num auditório. Naturalmente, a popularidade da marca tornou o violoncelo numa joia do museu.
À pergunta se o Stradivarius é a Mona Lisa do museu, Helena Miranda, responsável pela coleção de instrumentos do museu, responde: “Pode ser visto como uma espécie de ‘Mona Lisa’, embora o Cravo Taskin e o Cravo Antunes, por exemplo, sejam também instrumentos conhecidos em todo o mundo. Mas em termos de popularidade, pode-se dizer que, atualmente, o Stradivarius é a ‘Mona Lisa-mor’”.
O valor monetário do instrumento, considerado património nacional, nunca é revelado. Mas mesmo que caia na casa dos milhões, garante que não seria tanto como o valor sugerido para a viola de arco “MacDonald”, e justifica a discrepância de estimativas de preços relativamente à marca. “Foi sempre uma marca muito reputada. Sendo que, no século XX, foi completamente especulada.”
As provas cegas
Essa especulação em torno da marca tornou-se num ponto de partida para estudos que tinham como objetivo comprovar até que ponto é que se pode avaliar um violino Stradivarius apenas pelo som.
Em 2010, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos publicou um artigo sobre um desafio colocado a vários violinistas que foram colocados numa sala de hotel com violinos modernos e antigos, entre os quais se encontravam dois Stradivarius. A iluminação da sala foi reduzida e a queixeira perfumada para que pudessem utilizar apenas o sentido de audição quando pegassem no instrumento.
Os resultados mostraram que todos os artistas preferiram os instrumentos modernos. Os menos populares? Os Stradivarius. Uma extrapolação de resultados que alimentou a comunicação social mas que deixou a comunidade artística com sérias dúvidas. Um desses membros foi Pavel Gomziakov.
“Quando me estreei nos Estados Unidos, em Chicago, convidado pela Stradivarius Society of Chicago, o violoncelo que me apresentaram, que creio ser de 1705, não projetava quase som nenhum quando foi testado. Mas quando trouxe para a sala de espetáculo, conseguiu preencher o espaço todo da sala. Ou seja, nunca julguem um instrumento num espaço pequeno.”
Já Joaquim Capela, terceira geração de luthiers com maior reputação em Portugal, discorda da opinião do violoncelista. “Dá para avaliar [um instrumento] numa sala de hotel. Numa prova cega é muito difícil avaliar o violino”, diz ao SAPO24. “Os nossos olhos ouvem muito. É muito fácil enganar os nossos ouvidos.”
Mas dadas as observações sobre a logística do teste e o questionamento sobre as qualificações dos violinistas convidados, o estudo foi repetido quatro anos depois no auditório Couer de Ville, em Paris. Desta vez com doze violinos em vez de seis, e com convidados mais restritos. Os resultados foram os mesmos.
“A maneira como eles [violinos modernos e antigos] são feitos é relativamente igual. Com a diferença que os Stradivarius têm madeiras mais velhas. Mas numa prova cega é capaz que os modernos ganhem”, elucida Joaquim Capela.
Experiência na primeira pessoa
Nas suas investigações sobre os instrumentos Stradivarius, David Kestenbaum, membro da equipa do podcast Planet Money presente no leilão da viola de arco “MacDonald”, entrevistou o aclamado Joshua Bell, um dos poucos músicos com o seu próprio violino Strad, para perceber a experiência na perspetiva de um músico. “É um instrumento muito fácil de tocar. Nós imaginamos um som e o violino reproduz esse som”.
Apesar de ser pouco técnico, o relato de Josh Bell condiz com o de Pavel Gomziakov. “Nada naquele som é falso. Basta querermos e ele reproduz. É como se fosse magia.” Quando questionado sobre se escolheria um violoncelo Strad acima de um violoncelo moderno para tocar no seu dia-a-dia, o violoncelista respondeu: “Obviamente que sim.”
Ainda este ano, Pavel pegou no “Stradivarius Chevillard - Rei de Portugal” e juntou-se à Orquestra Gulbenkian para um espetáculo com interpretações de concertos de Haydn. As gravações resultaram na edição de um álbum, editado pela editora internacional Onyx e que já valeu grande elogios por parte da BBC Music Magazine e da Gramophone. De acordo com o próprio, o álbum marca a primeira vez que o violoncelo é editado de forma comercial, e adianta que já se prepara para gravar mais álbum com o mesmo instrumento.
Mesmo que não se qualifique com os instrumentos de arco modernos, a marca Stradivarius, um protótipo para os instrumentos de arco de hoje, move pessoas e propaga uma ideia conservadora que faz com que acreditem que apesar dos novos avanços tecnológicos, nenhuma marca consegue superá-la, apenas tentar imitá-la e satisfazer-se pela tentativa falhada, independentemente dos estudos que comprovam o contrário.
Vende álbuns, enche salas de espetáculo e inspira falsificações. Tanto José Capela como Helena Miranda recebem pessoas que se autoproclamam portadoras de instrumentos Stradivarius e que acabam devastadas com a realidade da situação. Basta ir a uma base online, como a do OLX, para ver o número de portugueses que tentam vender por milhares de euros um instrumento que vale milhões. Não há nenhuma marca de instrumentos musicais com a mesma influência.
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