Cena Um
Um assobio ecoa por terras áridas, onde a vegetação é escassa e os répteis diversos. O assobio indicia o western: histórias de homens duros, vívidos e vividos, montando os seus cavalos rumo a cidades abandonadas pela lei. Um enforcado balança suavemente na aragem. O cangalheiro sorri, espertalhão e satisfeito. A moral há muito que voou para longe das madeiras que compõem os saloons, os hotéis, as casas dos xerifes. A cidade rodeia-se de mulas e bandidos e gringos e revólveres e cavalarias e índios e donzelas desesperadas.
Podia ser uma descrição de um qualquer livro de Lucky Luke, o homem que dispara mais rápido que a sua própria sombra. Mas não; é a descrição de um típico western, como os que Sergio Leone criou longe dos Estados Unidos que lhe alimentaram a imaginação. Chamaram-lhes, jocosamente, spaghetti westerns – porque eram filmes feitos por italianos sobre o Velho Oeste Americano (e em terras como a Andaluzia), e todos sabemos como os italianos gostam de esparguete. Mas pouco importa neste caso o estereótipo.
Os filmes de Leone acabaram por ser influência para muitos e bons realizadores, não apenas pelo seu trabalho, pelas suas histórias ou pelos atores dos quais se rodeou (Clint Eastwood à cabeça), mas também pela música ali presente, composta por um só homem: Ennio Morricone. Poucos compositores, no século XXI, obtiveram o mesmo respeito entre os seus pares mais dados à música pop do que ele. Alguns exemplos de nomes: Metallica, Mark Knopfler, Muse, Radiohead, Gnarls Barkley, Jay-Z...
Ainda hoje são temas como 'The Ecstasy of Gold' ou 'Man With a Harmonica', de “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966) e “Era Uma Vez no Oeste” (1968) respetivamente, aqueles que melhor associamos a Ennio Morricone, aqueles que nos saltam à cabeça sempre que o seu nome é pronunciado ou escrito. Foi com os westerns (que Morricone definiu, sonoramente, como ninguém) que o compositor italiano começou a despertar os olhares do grande público, e de todos os que colocavam os seus próprios rostos atrás de uma câmara de filmar. Foi com os westerns que gravou o início do seu próprio filme – o da sua carreira.
À Altice Arena, há quem não esqueça essa faceta do músico, compositor e, hoje, maestro, envergando distintos chapéus de cowboy. O motivo não é menor. Este foi um espetáculo inserido na sua última digressão de sempre, a mesma que celebra seis décadas sempre a musicar filmes. Morricone, 90 anos feitos em novembro passado, pouco disse; a sua interação com o público consistiu somente em vénias muitas e sorrisos. A orquestra, a Roma Sinfonietta, comandou com perícia.
Tanto não a esquecem que foi precisamente 'The Ecstasy of Gold' o tema mais aplaudido ao longo da noite, por um público que compôs bem a Altice Arena e que se ergueu por diversas vezes para saudar Ennio Morricone e as flautas, clarinetes, oboés e outros sopros mais que foram dando forma e cor aos desertos que apenas conhecemos através dos filmes. Em 'Man With a Harmonica', houve também a guitarra elétrica, a conferir textura ao momento. Sem esquecer o Coro Talía, que o acompanha, e as duas cantoras que durante duas horas foram demonstrando os seus dotes: Susanna Rigacci e a muito “nossa” Dulce Pontes.
Cena Dois
Há um rufar indígena, oprimido pelos demais instrumentos – que podem ser, também eles, indígenas, e responderem por nomes estranhos ao homem branco. Os corpos martirizam-se tanto pela rejeição como pela aceitação de Cristo. Jesuítas guiados pela fé viajam rumo a selvas densas, arrastando consigo tons nervosos que tanto podem significar a escravatura como a morte. Nunca a libertação; no meio do ouro e do sangue não há libertação possível.
No caso concreto fala-se de “A Missão”, filme de 1986. Mas também poderíamos falar do vasto leque musical que foi cooptado pelo próprio Morricone, que nunca seguiu apenas uma linha reta no que à sua arte diz respeito. Começou pela música clássica, como um qualquer aluno num conservatório tradicional, desde cedo mostrando uma aptidão natural para a música em geral: aos seis anos, já compunha. O seu talento nunca seria colocado em causa pela família, mesmo em tempos de Grande Guerra – a II, nomeadamente.
Nos anos 50, “atirou-se” ao jazz e à pop, trabalhando mais tarde com nomes como Rita Pavone, Françoise Hardy ou Demis Roussos, para quem compôs. O seu primeiro trabalho para filmes data de 1961, quando compôs a banda-sonora de “Il Federale”, filme de Luciano Salce. Três anos mais tarde, registaria para sempre o seu nome no mundo da música de expressão avant-garde, ao fazer parte do histórico Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza, um dos mais importantes conjuntos europeus de improvisação livre, lado a lado com os britânicos AMM.
Terá sido essa ideia, de que tudo na música é possível, aquilo que guiou a carreira de Morricone nas décadas subsequentes. É por isso que as suas composições para os supracitados spaghetti westerns contêm assobios, sons de chicotes, de disparos. É por isso que a banda-sonora para “Diabolik” de 1968, contém influências de girl groups e do psicadelismo norte-americano. E é por isso que “A Missão” mistura música orquestral com percussão tribal e guitarras mediterrânicas, valendo-lhe à altura a sua segunda nomeação para um Óscar da Academia para Melhor Banda Sonora – prémio que só venceu em 2016, com “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino. O ecletismo foi e é a chave.
Esse mesmo ecletismo atingiria o seu ponto máximo nas duas interpretações de 'Abolição' (uma no concerto propriamente dito, outra no encore), tema escrito para “Queimada” (1968) e que começa com um órgão litúrgico antes de desaguar num batuque quase samba, com os violinos, o Coro e Dulce Pontes a acompanhar. Dir-se-ia estarmos na presença de algo maior, algo que mostra que as culturas não precisam de ser objetos estanques: podem cruzar-se, interagir, criar um frenesi novo e estimulante. Tão estimulante quanto a prestação da portuguesa, que em 'La Luz Prodigiosa' (do filme com o mesmo nome, de 2003) fez lembrar os delírios panteístas dos Dead Can Dance. Não foi por acaso que no final alguém se ergue da sua cadeira e lhe entrega, em mãos, um ramo de flores.
Cena Três
Um violino anuncia a Bella Italia, romance e românticos criados a partir de gentes simples. Há uma certa inocência infantil que povoa toda a cena, indicando descobertas, aprendizagens, amizades e memórias eternas. Depois, o rapazinho cresce, a secção de sopros acompanha o regresso do Filho Pródigo à terra que o viu nascer, e no meio das lágrimas o tema-título encerra o círculo final – a redenção de alguém que, muito provavelmente, continuou a sentir-se culpado ao longo de toda a vida por ter abandonado os seus.
“Cinema Paradiso” (1988) não é apenas um filme sobre o amor pelo cinema. É também o filme onde percebemos que Ennio Morricone ama desbragadamente esse mesmo cinema, ama aliar sons e melodias a cenas de maior ou menor complexidade emocional. Mas mais que o cinema, Morricone ama a música – e a música, aliada a imagens, pode ser um instrumento poderoso, mas é-o mais se for consumida em casa ou em contexto de espetáculo ao vivo, onde cada qual lhe pode dar as imagens que bem entender.
Assim o foi na Altice Arena. Sem que os ecrãs laterais mostrassem um trecho que fosse dos filmes em que cada tema foi inserido, foi o público quem os fez rodar na sua própria mente, graças ao fabuloso poder da memória. Nesta noite, ela não nos atraiçoou; fez-nos recordar películas como “Os Intocáveis” (1987), “Novecento” (1976), “Ata-me!” (1989), “Sacco & Vanzetti” (1971) ou “Afirma Pereira” (1996). Acima de tudo, fez-nos recordar que não é só na música de Ennio Morricone que tudo se encontra interligado. No mundo das artes também o está. E nos nossos pensamentos estará sempre.
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