Com criação e dramaturgia de Catarina Rôlo Salgueiro e Leonor Buescu, a peça, construída a partir de textos da obra escrita por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, conhecidas como as “três Marias”, estreia-se na sala Estúdio do Teatro D. Maria II, em Lisboa, no mês em que se completam os 50 anos da sua publicação.
O espetáculo, que estará em cena de 21 de abril a 08 de maio, nasceu do desconhecimento geral do livro e do processo de que as autoras foram alvo, levadas a tribunal por “abuso de liberdade de imprensa” e “ofensas à moral pública”, sendo descrito no despacho de pronúncia que as autoras escreveram um livro contendo “passagens imorais, pornográficas e atentatórias da moral pública”.
Assim se passou, e assim é apresentado o início do julgamento em palco, interpretado pelas atrizes Ana Baptista, Rita Cabaço e Teresa Coutinho, que dão corpo às três Marias, nunca discriminando quem é quem, mantendo em cena o mesmo anonimato que as autoras sempre cumpriram em relação à autoria de cada um dos textos que compõem “Novas Cartas Portuguesas”.
A ideia deste espetáculo surgiu muito antes das comemorações do aniversário da publicação da obra, antes até mesmo da pandemia. O facto de finalmente estar concretizado, quando se celebram 50 anos desde que foi lançado, é “uma feliz coincidência”, contou Catarina Rôlo Salgueiro, no final de um ensaio para a imprensa.
“Tive conhecimento do livro quando vi o filme de Leonor Noivo ‘Outras cartas ou o amor inventado'”, que aborda a obra e toda a repercussão que teve, “e fiquei admirada por nunca o ter lido. Percebi que é praticamente desconhecido, pelo menos na minha geração”.
Esse foi um dos motores da criação do espetáculo, “além da voz política, é dar a conhecer a parte literária e despertar a curiosidade nas pessoas que não o conhecem”, acrescentou.
As encenadoras confessam mesmo que gostavam que o espetáculo fosse a escolas e que tem classificação etária — maiores de 14 anos — na esperança de receberem contactos de estabelecimentos de ensino secundário.
A divulgação da obra é, portanto, um dos objetivos da peça: “Esperamos que as pessoas fiquem ao menos com curiosidade. Nunca nos é apresentado o livro, nem contada a história destas mulheres, que se arriscaram, mulheres com família, com marido e filhos. Nunca é mostrada. Fala-se tanto em artistas censurados e nunca das três Marias. É muito estranho que não seja mencionado, ainda para mais, tratando-se de um documento histórico, sociológico, mas também sobre a guerra colonial”.
A peça está estruturada em três partes: Antes, durante e após a escrita do livro.
O espetáculo começa com a encenação do encontro das três Marias no restaurante Treze, em que decidiram escrever um livro a seis mãos, após Maria Teresa Horta ter sido espancada na rua, por ter escrito o livro “Minha senhora de mim”.
Há então um brinde ao acordo de escrever o livro e à jura de nunca revelar quem escrevera que textos, e a decisão de uma noite por semana se encontrarem e levarem os textos que tivessem escrito.
O espetáculo vai decorrendo com leituras de cartas ou encenações do teor de alguns desses textos, que partiram das cartas de amor dirigidas a um oficial francês por Mariana Alcoforado.
A certa altura uma das atrizes transfigura-se em juiz e decreta que “está aberta a audiência”, dando início ao que terá sido o julgamento da três Marias, iniciado a 25 de outubro de 1973 e a que só a Revolução de 25 de Abril de 1974 pôs termo.
No julgamento montado em palco são evocados os depoimentos favoráveis e elogiosos da obra, de figuras como Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Fernanda Botelho ou Palma Carlos.
Após a absolvição das autoras, é posta em cena a forma como a imprensa portuguesa praticamente ignorou o assunto e como foi a imprensa internacional que deu cobertura ao caso, tal como foi graças a várias personalidades estrangeiras que o assunto teve impacto internacional.
Leonor Buescu explicou que, para criarem o espetáculo, fizeram uma pesquisa conjunta para perceber o livro no contexto histórico, consultaram o processo judicial no campus da justiça, falaram com Maria Teresa Horta, a única autora ainda viva, com quem assumiram o compromisso de “usar apenas o que está no livro e a documentação da época”, e consultaram algumas entrevistas das autoras.
O resultado é uma “amálgama com tudo”, acrescentou.
O principal desafio foi então descobrir “como construir a dramaturgia, como transformar material factual e literário em teatral”, disse Catarina Rôlo Salgueiro, explicando que a parte da encenação foi mais fácil, porque contaram com as atrizes para resolver cenas em palco, num trabalho que descreve como “bastante coletivo”.
Outro dilema era a escolha das cartas que iriam levar para o palco, o que foi igualmente posto à discussão com a equipa.
Decidiram que escolheriam por “temas importantes a abordar”, desde logo, a condição da mulher, disse Leonor Buescu, mas também “sobre o que ainda está por fazer”, recorrendo a cartas que “fazem a ponte com a atualidade”, completou Catarina Rôlo Salgueiro.
“Ao ler as ‘novas cartas’, percebemos que 50 anos depois há muitos textos que podiam ser escritos este mês. O livro ainda ressoa”, acrescentou, confessando uma certa “angústia” por não poder abarcar tudo.
Já na parte final do espetáculo, as protagonistas abordam o confronto da realidade feminina na época do Estado Novo com a “era da libertação da mulher”, em que esta, apesar da liberdade de fazer e dizer o que não lhe era permitido, ainda continua a ser “manipulada e condicionada” por uma “sociedade que a prende e conduz”.
“Há uma estreita faixa que nos separa ainda da Mariana”, diz uma das Marias em palco.
Na encenação da entrevista dada pelas escritoras, estas explicam — em resposta ao entrevistador — que “Novas Cartas Portuguesas” é um “livro de combate e de libertação da mulher”, e que é uma “obra de conjunto” que a principio começou por ser experimental, mas que se desenvolveu com o sabor do risco e da satisfação.
A uma pergunta sobre a utilização de uma linguagem “densa e rebuscada”, as Marias respondem considerar “paternalista” a ideia de que o escritor tem de escrever para o povo, e argumentam que “não interessa levar a cultura ao povo, mas sim, levar o povo à cultura”.
O espetáculo encerra com uma frase retirada da penúltima carta das “Novas Cartas Portuguesas”, que diz “continuamos sós, mas menos desamparadas”.
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