“Não arrancámos este mês com os ensaios de ‘Um tiro na cabeça’, de Pau Miró, a peça que pensávamos estrear em maio. Como adiámos a exposição [do pintor] João Vieira, que tanto queríamos fazer nos dez anos da sua morte”, afirma Jorge Silva Melo, que fala ainda em peças de Arne Lygre e Arthur Miller, que contava estrear e mantém em espera.
Em causa estão as decisões da DGArtes, que financia grande parte da atividade artística em todo o país, em relação aos concursos abertos em outubro, nas modalidades bienal e quadrienal, para o período de 2018 a 2021, com um valor global anunciado de 64,5 milhões de euros.
“Não temos dinheiro, não sabemos quando haverá, nem quanto será, receamos surpresas feias, não queremos acumular dívidas, não temos orçamento para este ano de 2018″, quando o primeiro trimestre está a acabar, prossegue o encenador, num depoimento escrito enviado à agência Lusa.
Silva Melo adianta que “uma temporada prepara-se pelo menos com dois anos de antecedência, foi essa a vantagem dos apoios ‘sustentados quadrienais’, que foram bruscamente interrompidos em 2016″, recordando a suspensão destes concursos, no ano passado, para a definição do novo modelo de apoio às artes, agora em aplicação.
“Em março ainda não sabemos com que orçamento contar, muitos dos nossos parceiros ainda não conseguem responder”, garante.
Os resultados dos concursos começaram a ser anunciados este mês, nas áreas do circo contemporâneo e das artes de rua, seguindo-se a dança e as artes visuais, decorrendo ainda uma fase em que os candidatos podem recorrer da decisão inicial.
O calendário publicado pela DGArtes aponta as decisões finais para um período que vai da segunda semana de março, nas áreas com menos de dez candidaturas – como circo contemporâneo e artes de rua, que tiveram sete -, até à primeira semana de maio, em áreas com mais de 61 candidaturas, o que abrange o teatro, com um total de 90.
Os prazos previstos para pagamento, neste calendário, vão do final de março (circo e artes de rua), até à terceira semana de junho (teatro), cumpridos todos os passos do processo de formalização do apoio, já depois da candidatura aprovada.
Para as áreas da dança e das artes visuais (cada uma com 24 candidaturas), cruzamentos disciplinares (com 49) e música (com 56), estão previstos prazos de pagamento entre a última semana de março e a primeira de junho.
O ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, ouvido na passada terça-feira, no parlamento, sobre a situação dos concursos, anunciou a criação de uma linha de crédito, na Caixa Geral de Depósitos, com condições especiais para as estruturas com candidaturas aprovadas, de modo a “atender e suprir problemas de financiamento”, no tempo que vai “entre o resultado de um concurso e a sua disponibilidade financeira”.
O secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, garantiu por seu lado que “não há atrasos legais” nos concursos abertos em outubro, estando mesmo “aquém do ciclo anterior, em 35 dias”. As comissões de avaliação têm de agir “com o maior rigor e isenção”, o que “leva tempo”, afirmou.
Por seu lado, Jorge de Silva Melo, na resposta à Lusa, diz que não entende “o palavrório dos concursos”: “Não entendo os objetivos dos ‘apoios’, não sei quem são os júris de seleção. (…) Sei apenas que os primeiros resultados (do concurso ‘Cruzamentos disciplinares’) revelam claramente aquilo que mais receava: são escolhidas preferencialmente instituições ‘municipais’ em detrimento das companhias ‘de iniciativa não estatal’. O tempo dos artistas chegou ao fim?”, questiona-se.
A associação Circular, que organiza o Festival de Artes Performativas em Vila do Conde desde 2005, foi a primeira a tornar público o “projeto de decisão” da DGArtes, que a deixa sem qualquer financiamento nos próximos anos.
Em comunicado divulgado na quarta-feira, a Circular recorda o trabalho desenvolvido desde 2004, na formação de públicos, na divulgação e no apoio à criação artística contemporânea, reconhecido pela própria DGArtes, e que passa pela dança contemporânea, o teatro, a música, as artes plásticas.
A Circular prometeu igualmente acionar “todos os mecanismos e instrumentos ao dispor, para contestar a avaliação e os resultados”, “que considera injustos e desadequados”.
Também a Saco Azul Associação Cultural, que se define como “o motor” para projetos de criação do espaço Maus Hábitos, no Porto, lamentou “que a nova reestruturação das candidaturas” os “[atire] para fora das entidades a poderem esperar pelas parcas verbas da DGartes”.
“A nossa programação foi desenhada para manter o projeto vivo, residências cruzadas, exposições e instalações, dentro e fora de portas, nacional e internacional, um festival de new media, publicações, edições, curadores de nível internacional, comunicação profissional, nunca tivemos uma nota tão baixa”, lamenta aquela estrutura, em comunicado.
Jorge Silva Melo resume: “Estamos aflitos, perturbados, tristes. E perante um muro inoperante de incompreensão”.
Os Artistas Unidos têm em cena “O Teatro da Amante Inglesa”, de Marguerite Duras, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 14 de abril. Fazem “pequenas digressões com espetáculos de pequenas dimensões como ‘Frágil’, de David Greig, ou leituras de poesia portuguesa”, em localidades como Coimbra, Cascais, Setúbal. E filmam, para a RTP, algumas das suas peças.
No entanto, não sabem se vão conseguir fazer o previsto, “essa bela peça” de Pau Miró, estrear em junho “Nada de mim”, do norueguês Arne Lygre, ou “Do Alto da Ponte”, de Arthur Miller, em setembro, “uma produção grande” que Silva Melo gostava levar a todo o país. “Teremos dinheiro? Não sabemos nem quando nem quanto… Viver assim é mesmo mau”.
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