Em tempos, foi a capital de Portugal. Hoje em dia, é uma das cidades mais importantes do país e um dos ex-libris da zona Centro. Estamos em terra de estudantes e de estudiosos, não fosse Coimbra uma das universidades mais antigas da Europa, fundada no século XIII por D. Dinis. Um passado de luz que contrasta com tempos negros, séculos mais tarde quando albergou uma das casas de tormento mais severas do país.
Uma versão da história durante muito tempo na sombra foi a dos tempos da Inquisição na cidade e é agora trazida para a linha da frente numa exposição que não podia ser feita noutro sítio, senão entre as paredes que assistiram a tantas mortes e punições.
Um espaço que foi de intelectuais e intolerantes
Subimos uma das muitas ruas que caracterizam a cidade e vamos parar ao Largo da Inquisição. O nome revela parte da história que guarda. Tal como noutras cidades portuguesas, ali era o sítio onde, a partir do século XVI, se estabeleceu o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição e onde era feita a justiça, em tempos mais cruéis. Mas a história começa muito antes.
Há mais de 470 anos, foi aqui que D. João III criou o Real Colégio das Artes, que acolheu aqueles que estudavam temas ligados às humanidades. Um antecedente que em nada fazia prever aquilo que se tornaria. O colégio foi transformado numa casa de tormento. O refeitório converteu-se numa cela para aqueles que eram acusados de cometer crimes, os estudiosos foram substituídos pelo Tribunal da Inquisição de Coimbra, e assim se manteve até à sua extinção, em 1821.
Para alguns, o Tribunal da Inquisição de Coimbra foi um dos mais cruéis em todo o país. Ao longo do tempo em que esteve em atividade, estima-se que tenha julgado mais de 11 mil casos. Confisco de bens, torturas, exposição ao pelourinho, esquartejamentos, condenações de morte nas fogueiras dos Autos de Fé, na forca e prisão até à morte. Estas foram apenas algumas das sentenças declaradas ali, na mesma praça onde, em tempos, a liberdade de pensamento parecia dominar.
Por fora, nada hoje para além do nome na tabuleta da esquina denuncia o passado. Para o descobrirmos, temos de explorar um pouco mais. Encontramos o Edifício da Inquisição de portas abertas que nos conduzem para a exposição “Judeus de Coimbra: Da tolerância à perseguição - Memórias e Materialidades”. Lá dentro, a história é diferente.
A herança judaica escondida nas paredes
O edifício degradado, as manchas e as marcas misteriosas ajudam quem entra a perceber a força daquilo a que está prestes a assistir. Numa parede negra à entrada, pode ler-se “Sarar as cicatrizes do passado, que ainda são visíveis, será uma tarefa contínua na preservação e valorização deste património”. E foi este o motivo que levou a Câmara Municipal de Coimbra a meter mãos à obra e a montar a exposição.
Ágata Antunes, uma das funcionárias do Museu Municipal de Coimbra, é também uma das responsáveis pelas visitas guiadas ao espaço. A experiência está organizada para ser, acima de tudo, sensorial e acessível, começa por explicar. “Esta exposição está a ser trabalhada há muitos anos pela Câmara, e havia grande vontade de que fosse apresentada ao público. E era fundamental que fosse aqui. Porque são estas as paredes que contam essa história. Este espaço tem memórias muito felizes em tempos, enquanto foi Universidade. Mas até esse conceito é muito estranho. Como é que um espaço dedicado às humanidades vira casa de tormento e se transforma num baluarte de intolerância?”.
Precisamos de chegar até ao final para perceber verdadeiramente o impacto desta exposição. Até lá, deparamo-nos com um breve contexto histórico e religioso, onde textos e passagens de documentos se intercalam com alguns dos vestígios físicos deixado pelas comunidades judaicas, resultado de uma fusão de entidades, que uniram esforços para não deixar que o passado fosse esquecido.
Coimbra chegou a ter uma grande comunidade judaica, inicialmente circunscrita a uma zona onde viviam de forma independente do resto da cidade, ainda hoje conhecida como Judiaria Velha. Mais tarde, foram obrigados a mudar-se para a zona da Baixa de Coimbra, apelidada de Judiaria Nova. Aqui, a arquitetura denuncia a sua presença com aquelas que ficaram conhecidas como “as casas dos judeus”, com um formato mais vertical do que o habitual, em lotes estreitos, normalmente com 3 ou 4 pisos, com duas portas na fachada (sendo que a maior correspondia ao espaço de oficina e a menor ao espaço de habitação, designado nos pisos superiores).
As construções são a principal marca do passado da comunidade judaica na cidade, e ainda que o documento mais antigo que comprova a presença de judeus em território português pertença a Coimbra, a falta de vestígios parece ter sido um dos maiores obstáculos na hora de montar esta exposição.
“Há mais testemunhos arquitetónicos do que vestígios de acervo que nos levem a definir melhor o contorno desta história. E o facto de não termos espólio dificulta um conhecimento mais aprofundado. E por isso é que trabalhámos com a Comunidade Israelita de Lisboa e com uma série de instituições que nos permitiram formar uma equipa maior e que nos ajudaram a montar uma exposição de caráter documental”, afirma Ágata.
Os últimos espaços da mostra são os mais simples e, em simultâneo, os mais complexos. A pouca luminosidade alia-se ao silêncio requisitado pela guia para criar uma tensão no ar. Estamos dentro daquela que foi uma das celas do Tribunal da Inquisição.
A crueldade dos tempos é recordada quando atentamos nos buracos no teto, os mesmos usados pelos Inquisidores para olhar para aqueles que prendiam dentro das salas de tormento. Depois, e em jeito de fecho da exposição, segue-se o juízo final. Na última sala da exposição, nomes de judeus mortos no Tribunal da Inquisição de Coimbra e ilustrações dos castigos cruzam-se. A vermelho, com uma espécie de grafismo de carimbo, conseguimos ler as acusações pelas quais foram julgados. Feitiçaria. Judaísmo. Homossexualidade. Bigamia. Bruxaria.
“Tudo está montado de forma estratégica. Nada é por acaso. O espaço escolhido, a ordem pela qual tudo é apresentado, o impacto das salas finais. Foi pensado milimetricamente. Estes episódios fazem parte da nossa história. São memórias dolorosas mas necessárias para que sejamos capazes de perceber o que é que foi aqui feito”, remata Ágata Antunes no final da visita.
Para complementar o trabalho feito até à data, a Câmara Municipal de Coimbra tem também planos para criar um conjunto de percursos que aproveitem os espaços físicos. Recentemente, foi descoberto aquilo que se crê ser um mikveh, um tanque de purificação judaico, uma das peças mais fundamentais da comunidade, que está agora em fase de estudos arqueológicos e que pode vir a ser adicionado ao programa cultural do município.
A exposição “Judeus de Coimbra: Da tolerância à perseguição - Memórias e Materialidades” desenvolve-se ao longo de 13 painéis onde os textos, em formato bilingue (português/inglês) alternam com as imagens. Ao visitante será, ainda, facultada uma experiência sensorial.
A exibição, com entrada gratuita, está patente ao público no Pátio da Inquisição, junto à Rua da Sofia, e poderá ser visitada de terça a sábado, das 13h00 às 18h00, mediante inscrição prévia (T. 239 840 754 | T. 239 857 525 | museu.municipal@cm-coimbra.pt).
Já que estamos por Coimbra…
E para respirar fundo depois de uma experiência intensa, há outro sítio onde as paredes também contam história. Desta vez, é uma aventura que vai do prato à comida: O restaurante “Refeitro da Baixa”.
Para além da experiência gastronómica, o restaurante divide-se ainda noutro espaço dedicado à cerâmica e à olaria. Utilizando muitos dos materiais recuperados da antiga Fábrica de Cerâmica de Coimbra, os moldes clássicos misturam-se com as técnicas de pintura rústica para criar aquela que é a loiça onde é servida a comida do restaurante.
Nos planos está a abertura da loja de produtos de cerâmica, mas até lá a proposta de desfrutar de um bom prato enquanto assistimos à arte da cerâmica e olaria aconchega o estômago e agrada aos olhos.
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*O SAPO24 viajou a convite do Turismo do Centro de Portugal
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