Há temas que ficam para a história do cancioneiro da Eurovisão sem que o rumo das pontuações lhes tenha destinado o triunfo. "Nel Blu Dipinto Di Blu (Volare)”, de Domenico Modugno (1958), "Dancing Lasha Tumbai”, de Verka Serduchka (2007) ou, mais recentemente, “Fuego”, de Eleni Foureira (2017) são exemplos disso.
O que faz de uma canção um hino eurovisivo? Não há uma fórmula, não há 12 pontos para o que nos fica na memória. Será da sua história e do contexto, será de um refrão orelhudo, será do fogo-de-artifício (desculpa, Salvador Sobral)? Não sabemos nem conseguimos antecipar o que acontecerá este ano. Por essa razão, eis dez canções, para além de "Telemóveis", que deve ouvir sem olhar para o que dizem as casas de apostas.
"Hatrið mun sigra" - Hatari (Islândia)
O coletivo Hatari foi fundado em Reykjavík, na Islândia, em 2015, pelos primos Klemens Hannigan e Matthías Tryggvi Haraldsson, com o baterista mascarado Einar Hrafn Stefánsson a juntar-se ao duo pouco depois. O grupo, cujo nome significa "Hater", apresenta em palco uma distopia, de inspiração fascista, de chicotadas salpicadas de sangue. À Eurovisão trazem um espetáculo multimédia e militarista, BDSM — acrónimo para a expressão "Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo", couro preto, látex, política e uma canção intitulada "O ódio prevelacerá" ["Hatrið mun sigra"]. A banda conta ainda com a ajuda dos dançarinos / coreógrafos Sólbjört Sigurðardóttir, Andrean Sigurgeirsson e Ástrós Guðjónsdóttir para a "ajudar a desmantelar o capitalismo".
No seu perfil no site do Festival encontramos uma biografia em estilo de manifesto: "Não podemos mudar o estado de coisas, mas podemos desmascarar a anomia presente na sociedade neoliberal, a inutilidade de cada minuto passado nesta corrida fútil, e o baixo preço pelo qual o homem agora se vende de uma forma mais descarada. Podemos gritar contra a nossa própria impotência, gritar contra o nosso sonambulismo pela rotina, e implorar ao nosso público para que se una, ombro a ombro, e dance. Que dance ou morra, basicamente. Os Hatari representam uma reflexão ponderada em relação à esperança e ao desespero, ao poder e à repressão, à imagem, ao individualismo, ao despotismo, expondo as contradições que surgem quando estão todos envolvidos no mesmo sistema e se esforçam para lutar contra ele. Somos os Hatari. Somos todos Hatari".
Esperem deles a atuação mais política — num espetáculo onde a política, pelo regulamento, fica à porta.
Dois segundos lugares, em 1999 e 2009, são os melhores resultados da Islândia. Com trinta e uma participações, o país teve a sua estreia em 1986 e não consegue alcançar a gala final desde 2014.
"Soldi" - Mahmood (Itália)
Ao vencer o festival de Sanremo, Mahmood — que nasceu Alessandro Mahmoud, em 1992 — tornou-se o representante italiano ao Festival Eurovisão de 2019. Contudo, a sua eleição não foi consensual e a contestação chegou até às mais elevadas esferas do poder político.
Nascido em Milão, com mãe italiana e pai egípcio, Alessandro Mahmoud faz parte de uma geração de italianos multirraciais - outro é Ghali - a fazer ondas na cena musical do país. O tema com que Mahmood irá a Telavive, “Soldi” (“Dinheiro”), é de cariz autobiográfico, relembrando a infância e o pai que abandonou a mãe, e inclui várias palavras em árabe, assim como influências arábicas misturadas com hip-hop na produção instrumental.
Presente na edição inaugural do Festival Eurovisão, Itália conta com um total de 45 participações, tendo vencido em duas ocasiões: 1964 e 1990. No entanto, a história da sua participação fica marcada por um interregno de 14 anos (entre 1997 e 2010).
"Roi" -Bilal Hassani (França)
Bilal Hassani é um cantor, compositor e youtuber francês de 19 anos. Hassani venceu o 'Destination Eurovision' em Paris com 35% dos votos do público e representará os franceses com “Roi', uma balada que cruza a música urbana com a canção francesa, interpretada nesse idioma e inglês, e que pretende passar uma mensagem de auto-aceitação e esperança. O tema, que em português significa "Rei", foi escrito em conjunto com grupo Madame Monsieur, que representou a França no ano passado, em Lisboa.
Bilal nasceu em Paris numa família muçulmana marroquina de Casablanca. No seu perfil do site da Eurovisão lê-se que foi criado ao som de Freddie Mercury, David Bowie e Michael Jackson; e que as suas influências também incluem divas dos anos 90, como Mariah Carey e Whitney Houston. Mais, o jovem que participou na edição francesa do The Voice Kids de 2015 com o tema com que Conchita Wurst venceu a Eurovisão, diz ser o “símbolo daqueles milhões de jovens em todo o mundo que querem ser livres e sem vergonha de estar fora da caixa”.
Desde que o seu nome foi escolhido para representar a França em Telavive, o jovem ativista LGBTQ foi alvo de ameaças e comentários homofóbicos nas redes sociais. Os ataques motivaram inclusive uma queixa à Justiça francesa por incitação ao ódio.
Participante desde a primeira edição da competição, a França competiu por 61 ocasiões no Festival, tendo apenas falhado as edições de 1974 e 1982. Pertence também aos "Big Five".
"Replay" - Tamta (Chipre)
Dizem as más língua que "Replay" é uma reciclagem do tema com o qual o Chipre quase venceu a edição do ano passado do Festival da Eurovisão. E, tal como "Fuego", promete incendiar as pistas de dança e ficar para o verão. É o que se chama de em equipa vencedora não se mexe, já que o staff por detrás da participação deste ano é o mesma responsável pelo tema de Eleni Foureira.
Tamta, que dá voz a "Replay", não leva a mal as comparações a Eleni Foureira — até as considera algo elogioso. A artista que nasceu e cresceu na Geórgia, antes de se mudar para a Grécia, aos 21 anos, é considerada uma das artistas mais bem-sucedidas e influentes da indústria pop grega. Tamta conta no seu currículo vários concursos de música televisivos e quatro álbuns de estúdio."Replay" alude à Roland TR-808, uma caixa de ritmos eletrónica fabricada pela primeira vez nos anos 80.
Estreante em 1981, o Chipre participou em 34 edições do Festival, apenas falhando o apuramento para a grande final em seis edições. Com a vitória de Salvador Sobral por Portugal, o Chipre tornou-se no país com maior número de participações sem nenhuma vitória — Eleni Foureira, com "Fuego", quase que quebrava este recorde em Lisboa.
"Chameleon" - Michela Pace (Malta)
Falta mais reggaeton à Eurovisão — disse ninguém, nunca. "Chameleon" estava a um J Balvin dos ritmos latinos dominarem o festival (e estranho é, num momento em que esses mesmos ritmos explodem nas tabelas de streaming, que não influenciem por esta altura a Eurovisão).
Michela Pace, de 18 anos, chegou a Telavive com "Chameleon" depois de vencer a primeira edição maltesa do The X Factor. Já com um contrato assinado com a Sony Music, a jovem pode, nesta edição, deixar de ser uma "jóia escondida no Mediterrâneo", termo que surge na sua biografia no site da Eurovisão.
Estreante em 1971, Malta participou em 31 edições do Festival Eurovisão, tendo alcançado a grande final em 21 ocasiões. Ira Losco e Chiara, em 2002 e 2005, respetivamente, conquistaram as melhores colocações de sempre do país, com um 2.º lugar.
"Truth" - Chingiz (Azerbeijão)
Chingiz Mustafayev nasceu em Moscovo e mudou-se para Qazax, no Azerbaijão, uma cidade de apenas 20 mil habitantes, quando tinha apenas seis anos. Foi, porém, em Baku, capital do país, que foi descoberto e convidado a participar no concurso de talentos nacional Pop Idol, onde ganhou popularidade. O seu perfil no site da Eurovisão diz que o cantor, guitarrista e compositor, de 28 anos, adora a companhia do seu cão, kung-fu e yoga.
"Truth" fala sobre uma relação tóxica. Ouvimo-la na Eurovisão como a podemos ouvir no futuro numa qualquer rádio de abrangência nacional. Tem o número certo de "Oooooo's" no refrão para um casamento fácil com os nossos ouvidos.
Estreante em 2008, depois de a emissora İTV ingressar na União Europeia de Radiodifusão (UER), o Azerbaijão participou em todas as edições desde então, tendo vencido em 2011 com "Running Scared", interpretado por Ell & Nikki.
"Better Love" - Katerine Duska (Grécia)
A sua biografia no site da Eurovisão rouba-nos as palavras. Há mesmo algo em Katerine Duska que nos faz lembrar Lykke Li ou Jessie Ware. Mais acrescenta a apresentação que a grega que nasceu em Montreal, no Canadá, alcançou um "estatuto de estrela indie" com o seu hit "One in a Million" e a sua versão de "Do I Wanna Know", dos britânicos Arctic Monkeys, em 2013 — os números no YouTube confirmam, a cover já conta com mais de um milhão de visualizações. No seu currículo somam-se também algumas colaborações com nomes como Tom Baxter, Yasmine Hamdan ou Oddisee.
"Better Love" teve ajuda na produção do cantautor escocês David Sneddon (que já trabalhou com Lana Del Rey) e foge um pouco ao padrão eurovisivo, mas encaixa na perfeição num horário ao final da tarde de qualquer festival de verão nacional.
A Grécia participou na Eurovisão 39 vezes desde a sua estreia, em 1974. O país venceu em 2005 com o tema “My Number One” de Helena Paparizou.
"Too Late for Love" - John Lundvik (Suécia)
Não desistam à primeira estrofe, coragem, cá está: Is it too late for love?, pergunta John Lundvik — que não envergonha a tradição sueca de nos deixar a bater o pezinho — ainda a música embala para o refrão orelhudo. Festivo, eurovisivo, televisivo — e o que mais se lembrarem a acabar em -ivo. O tema alcançou a posição número 1 no top50 da Suécia e é atualmente uma das músicas mais tocadas nas rádios nacionais. John Lundvik, um dos três compositores do tema, também escreveu a canção que representará este ano o Reino Unido, “Bigger Than Us”.
Lundvik nasceu em Londres, mas foi adotado por expatriados suecos no Reino Unido quando tinha apenas uma semana de vida. O agora cantor e compositor tem um passado desportista, tendo sido atleta de alta competição na modalidade de sprint.
Depois da Irlanda, a Suécia é o país com mais vitórias na Eurovisão (7 e 6 vitórias, respetivamente). Quem não se recorda dos ABBA, em 1974, com "Waterloo"?
"Arcade" - Duncan Laurence (Holanda)
Da Holanda, uma balada a la Sam Smith com todos os ingredientes para se tornar num hit — Oh, oh oh oh. Oh oh oh oh oh. All I know, all I know. Loving you is a losing game.
"'Arcade' foi inspirada na história de alguém que amava profundamente e que morreu numa idade jovem (...) é uma canção sobre saudade (...). 'Arcade' é um conselho para mim e quem sabe talvez ajude alguém, em algum lugar", apresenta Duncan Laurence no seu perfil do site da Eurovisão.
Duncan de Moor, nome de batismo, começou a sua carreira musical na Rock Academy em Tilburg e foi semifinalista no The Voice of Holland em 2014.
A Holanda teve a sua estreia na primeira edição do Festival, em 1956. Desde então, chegou ao primeiro lugar do pódio por quatro vezes — a última vez em 1975. O país terminou por duas vezes em último lugar com zero pontos — em 1962 com De Spelbrekers e em 1963 com Annie Palmen.
"Scream" - Sergey Lazarev (Rússia)
Sergey Lazarev regressa à Eurovisão da Canção para representar a Rússia pela segunda vez (a primeira foi em 2016 com o tema "You're the only one", que alcançou o terceiro lugar na final). Cantor e ator, Lazarev tem um vasto currículo na pop russa, quer a solo quer dueto masculino Smash!!.
A superestrela moscovita, de 35 anos, traz consigo uma balada dramática com um refrão hino e um objetivo claro: voltar a colocar a Rússia nos ouvidos eurovisivos.
A Rússia tem um bom histórico na sua participação no Festival, onde se estreou em em 1994. De fora da competição ficou em 1998, 1999 e 2017 — quando as autoridades ucranianas proibiram a entrada da cantora Julia Samoylova em território nacional, depois de a mesma ter atuado na Crimeia, violando a lei da Ucrânia. Quem não se recorda das representantes do país em 2003: t.A.T.u. com "Ne Ver', Ne Boysia"?
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