“Na Marinha Grande, quem não sopra, já soprou”. A frase pode ser nova para quem não é de lá, mas é bastante batida para os locais. Batida, porque muito vivida. É-nos dita por Carmem Cruz, da Câmara Municipal da Marinha Grande, filha de vidreiros, como tantos na terra, uma das guias na visita guiada que nos levou a conhecer a Ribermold, o Museu do Vidro, o atelier de artesãos do vidro e a fábrica e museu Santos Barosa.
Poucas visitas nos ensinam tanto sobre a terra, as pessoas, a História e a ciência como estas que se enquadram num novo turismo e que se designam como roteiros de património industrial. Que mais não é do que visitas a locais que mudaram a face de um lugar e, em muitos casos, de um país. Como é o caso da indústria vidreira na Marinha Grande.
Recuemos no tempo. O vidro é usado na Península Ibérica desde os tempos da romanização e da ocupação árabe, mas não há indícios que tenha sido produzido localmente até finais do século XV. A partir dessa altura há referências a pequenos fornos com maior concentração na região de Lisboa, mas continuamos a não marcar presença no mapa mundo desta indústria. A partir de finais do século XV, destaca-se o centro de produção do Côvo, uma oficina familiar na região de Oliveira de Azeméis que durante cerca de 400 anos produziu vidro utilitário e vidraça até meados do século XIX. Nunca chegou a mecanizar-se e acabaria por fechar portas em 1924.
Em 1719 foi instalada na vila de Coina, concelho do Barreiro, a Real Fábrica de Vidros de Coina, mas faltavam combustíveis para viabilizar a produção, o que acaba por ditar a sua transferência para a Marinha Grande em 1747. Porquê a Marinha Grande? Por causa da madeira, ou, para sermos mais precisos, pela proximidade do Pinhal de Leiria, também conhecido como Pinhal do Rei onde abundavam recursos naturais.
Antes do grande sopro naquela que se viria a tornar uma indústria de referência, e desculpem-se os trocadilhos com a técnica de fazer o vidro [a técnica do vidro soprado consiste em dar forma ao vidro insuflando uma pequena porção de vidro fundido na ponta de um tubo de metal designado por cana do vidreiro], há uma história antes da grande viragem que começa com um industrial irlandês, John Beare, É ele que protagoniza, em 1748, a transferência da fábrica de vidros de Coina para a Marinha Grande, devido à tal abundância de matéria-prima, não apenas a madeira, também as sílicas e as boas argilas. Ainda assim, fábrica de vidros já tinha madeira para alimentar os fornos, mas continuava a não ser rentável. Entre 1747 e 1767 enfrentou várias dificuldades que acabaram por conduzir ao seu fecho.
Vai ser preciso esperar mais dois anos para, em 1769, ter uma nova liderança, desta vez liderada pelo inglês Guilherme Stephens que a recuperou e transformou numa das mais importantes manufaturas portuguesas passando então a chamar-se Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Após a morte de Guilherme Stephens em 1803, a fábrica passou a ser administrada pelo seu irmão João Diogo Stephens que a legou ao reino após a sua morte em 1826. Durante quase um século, 92 anos para sermos exatos, a fábrica teve vários arrendatários até voltar à administração pelo Estado com que permaneceu até 1992, ano em que é decretado o seu encerramento definitivo.
Estes são os factos, mas a história tem mais para nos dar.
O homem que proibiu as tabernas e abriu o palco aos operários
Quem era Guilherme Stephens e como vai parar à Marinha Grande, depois de ter chegado a Lisboa, em 1746, com apenas 15 anos após ficar órfão de pai e mãe? Guilherme Stephens era o mais velho de cinco irmãos ingleses, fruto de uma relação extra conjugal entre um professor primário e uma criada (com quem acaba por casar após ficar viúvo do primeiro casamento). Vem para Lisboa porque tinha na capital portuguesa um tio que lhe oferece trabalho como contabilista e é essa a sua vida durante quase 10 anos até que, em 1755, a cidade é destruída pelo terramoto.
Guilherme Stephens perde o emprego e reergue-se da má fortuna propondo ao rei e ao Marquês de Pombal uma fábrica de cal em Alcântara, matéria necessária à reconstrução da capital. O projeto industrial avança mas a reconstrução da cidade atrasa e a fábrica acaba também por falir, sendo reaberta em 1764 já com as obras de Lisboa a bom ritmo.
Pelo meio, Stephens cai nas graças do Marquês de Pombal, grato pela ajuda na reconstrução da cidade e que lhe propõe que assuma a fábrica de vidro na Marinha Grande, oferecendo-lhe condições privilegiadas: as instalações, o usufruto da madeira do pinhal necessária para colocar os fornos a produzir, um empréstimo da Coroa e a isenção de impostos sobre as vendas.
Começa efetivamente aqui a história que tornaria o vidro da Marinha Grande uma referência mundial.
Stephens não se limita a repensar a produção, tendo modernizado os processos de produção e elevando a Marinha Grande a “Capital do Vidro”. É dele a frase que dá título a este artigo – “faça-se vidro que se parta” – porque até aí a robustez do vidro que saía da fábrica era tal que impedia que as encomendas ganhassem volume. Se o vidro não se parte, há menos razão para comprar mais vidro. Na Marinha Grande, o empresário viu algo que não existia – um lugar onde à volta da fábrica pudesse ser criado um bairro onde os operários viviam e tinham acesso à educação e à cultura. Proibiu as tabernas ao mesmo tempo que construiu uma escola, fez um posto de primeiros socorros e promoveu o teatro e a música como artes com acesso livre a todos.
É dele o Teatro Stephens que ainda hoje constitui um dos principais polos culturais da cidade. A primeira peça que leva ao palco era da autoria de Voltaire intitulada 'Olympia' e contava a história de uma rapariga humilde que conduzia um mendigo cego entre as ruínas do terramoto de 1755, em Lisboa. Foi representada pelos operários da fábrica - em francês.
Uma “cidade” das garrafas
A fábrica-escola Irmãos Stephens, o Museu do Vidro e o Teatro Stephens constituem hoje um triângulo obrigatório não apenas na vista à Marinha Grande, mas nos roteiros de património industrial em Portugal, designadamente os que estão a ser dinamizados pelo Turismo do Centro. É neste âmbito que várias empresas abrem as suas instalações de forma a poderem ser visitadas por pessoas interessadas em saber mais sobre os produtos que ali são feitos – mas não só. À boleia da produção industrial propriamente dita, há todo um percurso pela história da empresa e consequentemente das pessoas que a fizeram ao longo do tempo.
Uma das maiores vidreiras portuguesas, a Santos Barosa, é um dos pontos do roteiro de turismo industrial na Marinha Grande que permite uma vista guiada ao museu da empresa e à fábrica onde é difícil não ser surpreendido por uma espécie de cidade industrial onde do vidro saem milhares de garrafas por dia em processos automatizados que as levarão depois à vários destinos de exportação com rótulos de marcas de bebidas que circulam no mundo inteiro.
Atualmente com 132 anos, a Santos Barosa é uma uma das grandes vidreiras da Marinha Grande e ao longo da sua história produziu quase todo o tipo de artigos de vidro, desde o vidro plano à cristalaria, passando pelos artigos prensados, o tubo de vidro, os artigos para iluminação e, naturalmente, o vidro para embalagem, produção a que hoje se dedica em exclusivo.
Da indústria à arte do vidro, a distância não é grande e vale a visita. Instalado no Palácio Stephens, o Museu do Vidro leva-nos numa viagem através de obras artísticas e registos históricos num espaço que é, por si mesmo, uma peça-chave no percurso por mais de dois séculos de arte vidreira. O edifício do museu é em si mesmo um cartão de visita da indústria cuja história retrata: são três pisos erigidos em metal e vidro a partir das estruturas da antiga Fábrica de Resinagem, junto ao Património Stephens.
Das exposições temporárias à exibição de peças e do trabalho de artistas que convergiram na atividade vidreira portuguesa, dos métodos de fabrico do vidro, às técnicas de decoração ou ao papel que teve nas várias épocas históricas, as peças expostas contam as suas próprias histórias.
Cá fora, junto ao museu, a história entra pelos nossos dias através do trabalho de dois artesãos que moldam peças decorativas à vista de cada visitante. Como é o caso do mestre Mário, impressionante nos 92 anos que ninguém lhe dá, atrás da sua banca de onde saem flores de vidro, crucifixos ou colares. Ou do mestre José que passa para as mãos de quem visita jarros e garrafas - como o frasco do vidreiro que, no passado, cada operário fabricava para si próprio ou para colegas com menos aptidões técnicas.
O que tem de especial? Era elaborado manualmente, sem dimensões exatas, mas pensado para uma determinada quantidade de líquido. feito em vidro simples e liso, era achatado nos lados opostos para não rolar e para melhor se acomodar aos bolsos do casaco. O gargalo era propositadamente apertado para que, quando levado à boca, pudessse iludir na sensação de muito beber e permitia ao operário segurar o frasco entre o dedo médio e o indicador, ao mesmo tempo que segurava o farnel.
Da capital do vidro à capital dos moldes
Entrar pela história das empresas é uma das formas mais simples de perceber não só a história, mas a economia – não apenas de tempos que já passaram, mas a que hoje vivemos. É por isso que depois de fazer o roteiro do vidro na Marinha Grande, os moldes, indústria em que Portugal dá cartas ao nível mundial, surgem como um passo lógico, mesmo para quem nunca se deteve a pensar no assunto.
Na verdade, está tudo ligado de uma forma bastante simples e intuitiva.
É "por causa" do Pinhal de Leiria que nasce uma indústria de vidro na Marinha Grande e é "por causa" dos moldes para o vidro que se lançam os alicerces de uma indústria de moldes contemporânea.
Voltando de novo atrás no tempo. No século XVIII, os moldes usados na moldagem por sopro eram fabricados maioritariamente em madeira, mas também em barro refractário. E assim foi até que, no século XIX, o desenvolvimento da fundição de ferro levará a novos moldes.
Será preciso esperar mais umas décadas até aos primeiros passos da indústria de moldes - que acontecem onde tudo sempre aconteceu na Marinha Grande, na Fábrica Nacional de Vidros. Há cerca de 100 anos, trabalhava nessa mesma fábrica um serralheiro chamado Aires Roque que iniciou as primeiras experiências em moldes em ferro fundido até então importados da Alemanha e da Áustria. Aires Roque associa-se ao irmão Aníbal H. Abrantes e criam a sua própria empresa de moldes para vidro, a Aires Roque & Irmão, Lda que se instalou numa antiga fábrica de vidros, a Gomes & Cª.
Os primeiros anos da Aires Roque & Irmão, Lda são mais parecidos do que diferentes no contexto da indústria do vidro, mas com a 2ª guerra mundial, a indústria de plásticos assiste a um crescimento acelerado e os moldes desempenham um papel determinante nesse setor emergente que vai mudar a face do tecido industrial da região da Marinha Grande.
Recorrendo de novo à história e também à ciência que nos ajuda a percorrer esta visita por uma das indústrias em que Portugal é reconhecido no mundo inteiro. Plástico é o termo que designa os materiais que têm a propriedade da plasticidade, ou seja, que permitem ser moldados e que são produzidos a partir de polímeros. Os polímeros naturais estão presentes nas carapaças das tartarugas, nos chifres dos animais, em certas resinas produzidas pelas árvores e são aproveitados há milhares de anos para fazer objetos como pentes ou botões.
Mas só a partir do século XIX, com o desenvolvimento da indústria química é que surgirão os polímeros quimicamente alterados dando origem aos plásticos semissintéticos. Em 1907 surgiu o primeiro plástico totalmente sintético desenvolvido pelo americano Leo Baekeland e comercializado com o nome de baquelite.
A 2ª guerra mundial irá transformar este produto numa verdadeira indústria a partir do momento em que se assiste à escassez de produtos naturais como o latex ou lã e a seda em função do conflito – passa-se a usar o nylon, o acrílico, o neoprene, o polietileno e outros polímeros que ocupam o lugar das matérias primas que escasseavam. O que significava também que os dois irmãos empreendedores estavam numa posição privilegiada para fazer crescer a empresa que tinham fundado duas décadas antes.
Mas, nem sempre o que parece óbvio é o que acontece e, na verdade, o desenvolvimento do mercado do plástico trouxe divergências aos dois sócios: Aníbal H. Abrantes estava entusiasmado com as possibilidades dos novos moldes e Aires Roque continuava fascinado com o vidro. A divergência pôs fim à sociedade conjunta e nasceu assim uma nova empresa, a Aníbal H. Abrantes cujo fundador que é considerado o pai da indústria de moldes em Portugal. Foi na sua empresa que se formaram as primeiras gerações de técnicos do setor, muitos dos quais fariam as suas próprias empresas – é por isso considerada a universidade dos moldes.
O passado mas também o futuro desta indústria que exporta 90% do que faz tem as portas abertas aos visitantes em várias empresas da região, como é o caso da Ribermold, de onde saem desde moldes de alta precisão para a indústria automóvel, aeronáutica, elétrica e eletrónica e também ela fundada por um técnico especializado que fez do seu know-how a base de uma nova empresa.
“Quando vim para os moldes não conhecia nada e é bom que nos possam mostrar por dentro o sítio onde podemos vir a trabalhar”. A frase é de Vítor, engenheiro há mais de duas décadas ao serviço da Ribermold e o guia que nos leva a percorrer todo o circuito de produção que permite perceber o quão complexo é o processo.
A Ribermold foi fundada em 1987 e hoje ocupa um espaço de 8000 metros quadrados e emprega quase 100 pessoas. Exportam para os Estados Unidos, Índia e Europa e fazem desde o desenvolvimento de produto até “saírem as peças montadas”. Cada molde é exemplar único e aqui podem fazer-se moldes até 15 toneladas.
O dia da visita é um sábado, mas a empresa não para. É o “preço” de servir uma indústria global e de ter prazos de entrega permanentemente a correr. Mais tarde, no futuro Museu dos Moldes, Cristina Simões, técnica da Câmara Municipal da Marinha Grande, há-de falar-nos do modelo de produção 24 horas da empresa fundadora dos moldes, a Aníbal H. Abrantes, hoje integrada no grupo Iberomoldes. Com fábricas na China, na Europa e nos Estados Unidos, cada turno de 8 horas segue o ponteiro do relógio – ou o horário do continente que está acordado e a trabalhar – de forma a não parar nunca de produzir.
O que sai destas fábricas está à nossa volta a cada passo, seja nos utensílios domésticos, nos brinquedos das crianças, na tomada onde ligamos as fichas elétricas ou no computador em que trabalhamos ou carro que conduzimos. Tem uma história que se confunde aqui com as histórias de quem cá vive, mas tem também uma ideia de futuro – a ciência desafia agora os moldes para os novos materiais, como é o caso da raquete de padel em resina desenvolvida no Instituto Superior D. Dinis, de Leiria. O turismo pela história torna-se assim também uma visita guiada pelo o que o futuro trará.
Roteiros do Património Industrial:
As visitas no âmbito dos roteiros de património industrial têm dias e horários agendados e podem ser marcadas diretamente nas empresas ou através da Câmara Municipal da Marinha Grande.
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