Em entrevista à agência Lusa, Filipe Raposo descreve esta trilogia como um "ensaio sonoro", uma interpretação antropológica e artística sobre a cor, cruzando várias fontes de informação, na música, na pintura, na literatura.
O pianista tomou como referência aquelas três cores, consideradas simbólicas na antiguidade clássica, a partir das quais construiu "um edifício programático" para a pesquisa de repertório e para a escrita de novas composições.
"Ocre" (que é uma variação do vermelho) entrelaça temas inéditos do pianista com reinterpretações de outras obras, como "Blombos cave", baseada no coral BWV 245 de Bach, "Ó meu bem", sobre uma melodia tradicional açoreana, e "Oblivion Soave", de uma ópera de Monteverdi ("A Coroação de Popeia"), com interpretação da cantora Rita Maria.
O álbum tem uma ligação maior à tradição popular, porque emana uma "ligação forte à terra". Ocre "é o pigmento mais presente à face da Terra, está presente desde o nascimento da arte, as pinturas rupestres eram cunhadas com o ocre", sustentou o músico.
Na reflexão traçada por Filipe Raposo, foram surgindo múltiplos significados associados à cor vermelha, relacionados com o poder, o amor, a morte.
E deu exemplos com três composições inéditas do álbum: "A um deus desconhecido", que remete para o deus Endovélico, adorado na península Ibérica no período pré-romano, "No princípio era o fogo", com o ocre associado à "capacidade de dominar essa técnica que nos primórdios da humanidade", e "Isaac", sobre o vermelho da morte.
"A música é isto, uma ligação sinestésica da harmonia com cor. Eu vejo muito harmonia relacionada com cor. (...) Há um lado que eu acho mais interessante nisto é que cada investigação que fazemos abre portas para novos caminhos", disse Filipe Raposo.
"Ocre" é editado no final deste mês e na versão física é acompanhado de um trabalho gráfico com a participação do pintor Sérgio Fernandes, com enquadramento de excertos literários, notas do autor e textos de apresentação de António Jorge Gonçalves e Sérgio Godinho.
O segundo volume desta trilogia será dedicado ao preto, sairá em 2021 com o título "Obsidiana", a pedra vulcânica usada para a construção das primeiras ferramentas na Idade da Pedra.
A trilogia encerrará em 2023 com variações sobre o branco, fazendo a ponte, geograficamente, entre o sul (ocre) e o norte (branco) da Europa.
"Esta dramaturgia ajuda-me a organizar as composições, a encontrar uma ordem e sentido para elas. E ajuda-me a estimular a criação", referiu.
"Ocre" será apresentado em concerto no dia 29 no Teatro Municipal são Luiz, no âmbito do Festival de Jazz de Lisboa, e a 12 de junho em Estocolmo, cidade com a qual mantém uma ligação e onde fez um mestrado em Piano Jazz Performance.
Nascido em Lisboa em 1979, Filipe Raposo tem repartido trabalho entre composição, produção e orquestração. Tem colaborado com vários artistas portugueses e formações distintas, como Amélia Muge, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Camané, Orquestra Sinfónica Portuguesa, Orquestra Clássica da Madeira e Orquestra do Sul.
Desde 2004, colabora com a Cinemateca Portuguesa como pianista residente no acompanhamento de filmes mudos, e tem trabalhado em teatro, na criação de bandas sonoras, nomeadamente para "Quem tem medo de Virginia Woolf", encenado por Ana Luísa Guimarães, e "Banda Sonora", encenado por Ricardo Neves-Neves.
Acaba de produzir o novo álbum do músico Pedro Moutinho, assim como o álbum para a infância "Canções de roda", com Vitorino, Jorge Benvinda, Ana Bacalhau e Sérgio Godinho, e tem em mãos uma banda sonora para o filme "Metropolis", de Fritz Lang, no âmbito dos 125 anos do Teatro Municipal São Luiz.
Está ainda no processo de investigação de um projeto com o artista gráfico António Jorge Gonçalves sobre arte rupestre, o nascimento da arte e o pensamento abstrato. Será um objeto artístico em várias dimensões e com referência à arte rupestre em Portugal, Espanha e França.
"Ocre" junta-se aos álbuns "First Falls" (2011), "A Hundred Silent Ways" (2013), "Inquiétude" (2015) e "Rita Maria & Filipe Raposo Live in Oslo" (2018).
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