Se na primeira semifinal pedimos um lugar no sofá da família Guilherme, nesta segunda, que apurou mais dez finalistas, batemos à porta da discoteca Trumps, casa também de uma outra família que há já várias décadas abraça a Eurovisão, a comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgénero e Intersexuais).
As festas eurovisivas do Trumps acontecem desde março, e parece que ninguém faltou. Nem Netta, de Israel. Nem Eleni Foureira, do Chipre. Nem a “nossa” Suzy, representante nacional que, em 2015, foi à Eurovisão dizer “Quero ser tua”. Esta quinta-feira, nem nós.
À semelhança do que tinha acontecido na primeira semifinal, o espaço abriu portas mais cedo para a projeção em direto da emissão da RTP. Ao balcão ou nos sofás, com uma cerveja na mão ou com um gin, cerca de uma centena de eurofãs escolheram a discoteca para assistir à eliminatória. A grande maioria — para não dizer a totalidade — estrangeiros. EUA, Israel, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Suécia, para mencionar algumas nacionalidades. Como se de um jogo de futebol se tratasse, só que aqui não há duas equipas. Há 18 intérpretes a lutar por 10 lugares na final do evento. E cada adepto pode ter mais de que um favorito.
Antes de começar ouvem-se alguns dos temas mais orelhudos da edição desde ano. “Fuego” e “Toy”, claro, mas também “That's How You Write A Song” (Noruega) ou “Mercy” (França).
Aos poucos a sala vai-se compondo. Há bandeiras, da Noruega e Suécia, mas também alguns pins de Saara Aalto (Finlândia, finalista da primeira semifinal). Não há glitter, nem plumas ou adereços de outro tipo. Há casais e grupos de amigos, a maioria dos presentes são homens.
Miss Filha da Mãe, a anfitriã da sala, dá as boas-vindas aos presentes. Roliça, de barba verde e corpete. Corre a sala a perguntar os temas preferidos de cada um. E há quem tenha coragem de dizer que não ouviu nenhum, sem castigo. Não intervém durante a emissão, ai dela.
Não se ouvem comentários, o volume não deixa. A experiência quer-se como se o número 104 da Rua da Imprensa Nacional fosse uma mini Altice Arena. Há urros, gritos, braços no ar, palmas, expressões que espelham as dos cantores.
Noruega, Roménia, Sérvia, São Marino, Dinamarca, Rússia, Moldávia, Holanda, Austrália, Geórgia, Polónia, Malta, Hungria, Letónia, Suécia, Montenegro, Eslovénia e Ucrânia. Por esta ordem os temas são apresentados.
O favoritismo mede-se pelo entusiasmo da sala. Se este fosse transformado em pontos, 12 seriam para a Dinamarca, 10 para a Suécia e 8 para a Noruega. A pista de dança demorou a inaugurar, só a Moldávia conseguiu um momento a pares. O que não quer dizer que as coreografias não estivessem na ponta dos dedos. Os moves dos vikings já estavam decorados. Como quase todas as letras e todos os ‘oooohhhh’.
Aqui música é fogo-de-artifício, é sentimento, é vida, é paixão — com exceção para as escolhas da Rússia, Arménia e Montenegro, que valeram uma ida ao bar ou à casa de banho. Ou da Holanda, que parece nem convencer os próprios holandeses.
Já os robots de San Marino quase roubavam o protagonismo às duas intérpretes, prova que “o tamanho não importa” — cartaz que roubou uma gargalhada à plateia. E por falar em tamanho, temos miss hot legs. Não sabendo a altura da cantora da Austrália, os presentes decidiram: Diva. Temos também diversidade. A Hungria arriscou com um tema que fugiu ao épico ou ao popvision, o que foi bem recebido pelos presentes (serão saudades dos Lordi?).
A ter em atenção, a julgar pela reação da maioria, está o tema da França. “Merci”, do duo Madame Monsieur, um relato do drama dos refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo. Os franceses, que não atuaram, à semelhança da Alemanha e Itália, porque integram os “big-5”, surpreenderam ao fazer uma versão em francês de “Amar pelos Dois”. Independentemente da língua, um ano depois, a resposta ao tema de Salvador e Luísa Sobral continua a ser arrepiante. A sala parou, quem estava ao bar virou costas, silêncio, peito apertado, é físico e espiritual ao mesmo tempo. Nenhuma canção conseguiu esta noite o que aquele minuto conseguiu. E em cada minuto destes, os irmãos Sobral voltam a ganhar o festival.
A um passo da vitória, apuradas para a grande final de sábado, ficaram a Suécia, a Austrália, a Noruega, a Dinamarca, sem surpresa, e a Hungria, a Ucrânia, a Eslovénia, a Moldávia, a Sérvia e a Holanda. Houve abraços, beijos e até lágrimas.
Mas the show must go on e a noite ainda é uma criança. Arredam-se os sofás, aumenta-se o palco, e a festa segue ao som de “Dancing Lasha Tumbai” tema com o qual, em 2007, a drag queen Vera Serduchka alcançou um segundo lugar em Helsínquia. Nós, infelizmente, viemos para casa. Havia este artigo para escrever.
“Eurovisão é sinónimo de inclusão”
Fãs desde sempre ou convertidos ao carisma do evento. Pela primeira vez na Eurovisão ou repetentes. Sem bilhete para a Altice Arena ou porque alguém lhes disse que o bar era o melhor sítio na cidade para ver as semifinais (ou o mais quente, já que o Terreiro do Paço pode obrigar a mais um casaco). Dececionados com a atuação de Netta ou cada vez mais derretidos – “ayeayeaey” – com Eleni Foureira. Todos crêem que a Eurovisão é um espetáculo LGBTI friendly — “talvez o maior” — mas complicado é explicar porquê. Uns recorrem a participantes do passado, que fizeram história e se tornaram símbolos; outros falam da identificação com o tipo de música, do “glamour”, do “show”, das “divas”. Aproveitámos os intervalos para falar com alguns dos presentes.
Kim confessa que nem sempre foi um fã da Eurovisão, tinha de a ver todos os anos porque era dono de um bar. Não passar a emissão do espetáculo significava perder clientes. Para o belga tudo mudou em 2012, ano em que, na sua opinião, o seu país começou a dar mais atenção ao evento. Para ele, a ligação da comunidade LGBTI com a Eurovisão é algo que não "dá para explicar, sente-se". "Se és gay tu percebes, se não o fores também", brinca. Diz que a Eurovisão é como se fosse uma "grande festa Pride" — já antes um casal lésbico finlandês nos tinha dito o mesmo. A “diferença está no número de pessoas que a assistem, milhões”. Fã da música de Israel, confessa-se dececionado com a atuação de Netta. Razão pela qual atribui, agora, favoritismo ao Chipre. A música portuguesa é-lhe indiferente e dá a entender que ficámos presos à vitória do ano passado. Mas sublinha, "adorava a música [do Salvador]. Kim elogia ainda a apresentação das duas semifinais, "percebe-se que estão a divertir-se, é tudo muito natural e engraçado". "Um pouco como os portugueses, isto representa muito o que são", termina por dizer.
“Não sei se dá para reparar, mas somos gay”, diz-nos Tim, em jeito de provocação, quando abordámos o seu grupo e os elogiámos por saberem a letra de todos os temas — e até algumas coreografias. “Claro, isto é o melhor da pop, como não?”. Vêm de Chicago, nos EUA, para acompanhar o evento. “Somos grandes grandes fãs da Eurovisão”. Elogiam o “saber receber português” e o “respeito pela diversidade”. Não de tão longe são “os vizinhos”, assim se apresentaram, Marco e Tom. Um holandês, o outro belga. Explicam que a comunidade LGBTI se sente representada na Eurovisão. “Isto é uma grande família”. Apesar de serem proibidas mensagens políticas ou que promovam causas ou organizações, durante a atuação, outras acabam por ser, dizem, indiretamente veiculadas pela “atitude em palco, roupa ou adereços”. “Toda a gente vê e percebe o que querem dizer, até a minha mãe”, brinca. “Isto é uma coisa que já tem mais de vinte anos de história, recorde-se a cantora israelita Dana Internacional ou, mais recentemente, Conchita Wurst”, contam. “Tornaram-se símbolos”.
“Eurovisão é sinónimo de inclusão. Não excluímos ninguém”, diz-nos Matz. Para reforçar a ideia, o sueco vai mais longe: “este é um evento europeu onde até a Austrália participa. A música é o que nos une”. E não foi a primeira vez que ouvimos esta última frase, nesta noite. O mesmo nos disse outro fã eurovisivo presente no bar. "A Eurovisão não discrimina ninguém, é para todos. Independentemente da religião, status ou orientação sexual”. Quem o diz é Patrick, um fã alemão que já viajou por vários países para assistir ao evento. Nesta edição o seu apoio vai para Alexander Rybak, denuncia-o a bandeira que enverga. É preciso recuar até à edição de 2009 para perceber o porquê. Rybak, o seu gato, nasceu no dia em que o cantor norueguês venceu o festival e por isso recebeu esse nome, "Para mim é especial, por isso gostava que ganhasse novamente", conta-nos. "Se não for ele, gostava que fosse a Saara Aalto", diz-nos indicando o pin, com a imagem da cantora, que usa na camisa. “Diva”.
No próximo sábado, 12 de maio, o Trumps volta a transmitir, em direto, a grande final do Festival da Eurovisão. Para essa noite estão a ser preparadas algumas surpresas que Marco Mercier, sócio e diretor geral da discoteca, prefere não revelar. Adianta apenas que a anfitriã será Catarina Pereira, que participou no Festival RTP da Canção em 2010 e 2014. Uma coisa é certa, Netta, a representante de Israel garantiu, aquando da sua passagem pelo espaço, que se ganhasse faria a festa ali.
O responsável deixa ainda algumas críticas à organização e à Câmara Municipal de Lisboa. Marco Mercier considera que houve algum "conservadorismo" e "falta de perceção" que colocaram de lado a comunidade LGBTI. Nomeadamente na programação e na divulgação de eventos paralelos.
Comentários