O facto de o pai não estar presente em Lisboa a partir de 1550 explicaria o progressivo desnorte de Camões nesses anos cruciais. Numa passagem algo sibilina, Pedro de Mariz insinuava que a morte de Simão Vaz, «em tempo que esperava ficar rico», teria acentuado o «desamparo» do filho, tornando necessária a partida de Luís de Camões para a Índia.
Não só Camões não partiu para a Índia em 1550, como o seu lado de duriano prevaleceu. Poucas partes da existência do Poeta estão tão bem documentadas quanto esta, para a qual dispomos quer das informações autobiográficas contidas nas cartas em prosa situáveis neste período, quer de um documento jurídico. Camões reincidiu na vida de boémia desregrada e de libertinagem; pertenceu a um bando; envolveu‐se em desacatos, pelos quais ele e o seu grupo foram procurados pela justiça; acabou por ser preso. Que nada disto nos espante. No século XVI, o crime percorria todo o tecido social, da nobreza aos indigentes. Faria e Sousa, de ouvir contar, narrou um episódio que, a ser verdadeiro, não destoa da vida que o seu biografado levava por esta altura. Uma ocasião, um fidalgo tê‐lo‐ia contratado para dar cabo de um sujeito que o ofendera, e que vinha a ser cego de um olho. Diga‐se que o hábito de contratar mão alheia para executar uma vingança era corrente, mesmo entre membros da nobreza, como atestam os historiadores e o próprio Faria e Sousa. Passado algum tempo, como a comissão não tivesse sido cumprida, o fidalgo interpelou Camões, que se justificou assim perante o mandante:
logo lhe vi mui mau jeito
quando volo dei por morto:
porque torto matar torto
não me pareceu direito
Ou seja, Camões, recusava‐se a atacar um homem torto ou zarolho como ele próprio.
Uma carta de Camões enviada de Lisboa e datável do ano de 1552 juntava ao tema da libertinagem e das meretrizes o da violência:
Sabereis que eu não ando de paz, mas de guerra, laus Deo; e porque o ladrar sem morder, nesta terra, é como bucha de papel, que dá grande estouro e não leva pelouro; grandes mãos de ferro, capuzes de lâminas, maças de Hércules e golpes de Amadis, tudo contra o pobre do Camões.
Camões descrevia ao seu interlocutor um conjunto de incidentes. Pela boca da noite, os do seu bando tinham agredido no Rossio, à entrada do largo de São Domingos, um tal de Denis Boto («por amores de Lia», entenda‐se, por uma questão de saias). Dali a dias, fora a vez de um gabarola chamado Gaspar Borges Corte‐Real ser açoitado. Há quem defenda que este Gaspar era o mesmo homem por causa de quem Camões viria a ser preso, designado como Gonçalo Borges na carta de perdão. Não seria impossível, podendo a discrepância explicar‐se por alguma gralha (mais provável na cópia da carta de Camões do que no documento jurídico) ou pela oscilação de nomes, que, já vimos, era comum na época. Sucede que eram pessoas distintas. Este Gaspar Borges veio a ser genro do tal Pero Vaz, cuja casa também ficava no Rossio e junto à qual muitos destes incidentes tinham lugar. Talvez algum do bando do Poeta também cortejasse a filha de Pero Vaz, que viria a casar‐se com Gaspar.
Mas os do grupo inimigo tinham ripostado, tendo à cabeça um tal de Simão Rodrigues, também habituado a encomendar crimes, pois «paga soldos aos maiores matadores desta terra, os quais já de in illo tempore lhe tinham cozinhado a morte». Seria este Simão Rodrigues o então provincial dos jesuítas no Reino e futuro denunciante de Damião de Góis no Santo Ofício, que assim se via imiscuído em rixas de matadores? Não se pode saber. Fosse como fosse, era todo um torvelinho de violência, de ataques e ripostas, do meio do qual emergia uma ocorrência mais grave: «Dizem que é passado nesta terra um mandado pera prenderem a uns dezoito de nós». A ameaça impendia sobre o bando, mas o primeiro nome no mandado de captura era o do destinatário da carta, donde o aviso urgente de Camões.
Mesmo quando os factos narrados são graves, o tom usado é sempre ligeiro e pitoresco. Era um mouro «da estrebaria do Carneiro», que tinha levado «umas contrabaixas». Era o tal de Gaspar Borges, a quem «com um pau sacudiram como oliveira». Era Simão Rodrigues, que pagava aos matadores contratados com favores sexuais concedidos pela irmã («em talhadas de marmelada e uns púcaros de água fria, com uns debruns da vista da senhora sua irmã»). No entanto, sob a nota de humor jocoso e o disfarce da valentia, mesmo desvalorizando a seriedade dos perigos que pendiam sobre ele, percebemos que tudo estava a evoluir para algo grave. Camões não o declarava, mas sugeria nas entrelinhas que ele próprio estaria envolvido em algumas daquelas agressões. Os incidentes evocados podem, ou não, estar diretamente relacionados com os que o levariam à prisão, mas essa incerteza não afeta o essencial: nos anos que rodeiam a sua partida para a Índia, Camões, segundo o seu próprio depoimento fidedigno, é um desordeiro e pertence a um bando que pratica toda a espécie de distúrbios. Desculpando o Poeta (como quem se desculpasse a si mesmo), Camilo Castelo Branco advertiu: «Se Luís de Camões, em pureza de costumes, condissesse com a sobre‐excelência do engenho, seria exemplar único de talento irmanado com o juízo.» Ele sabia do que falava.
Enfim, não precisaríamos de uma confissão jurídica para caracterizar o modo de vida de Luís de Camões perto de completar 30 anos. Mas havemos de tê‐la.
O trauma da perda do olho, a ausência (ou já a morte) do pai na Índia, o afundamento numa vida de delinquência que se tornava cada vez mais perigosa: tudo concorria para a perdição de Camões.
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