CAPÍTULO UM

Dizem que, quando nasci, todos os gansos selvagens desceram do céu e os peixes se afogaram nas ondas, esquecidos de como nadar. Até as flores de lótus nos nossos jardins tremeram e viraram a cabeça para o outro lado, de tão envergonhadas que estavam com a desvalorização do seu encanto na minha presença. Sempre achei essas histórias risivelmente exageradas, mas provam uma única coisa: que, de algum modo, a minha beleza era algo não natural, que transcendia a própria natureza. E que a beleza não é muito diferente da destruição.

Era por essa razão que a minha mãe insistia para que eu cobrisse o rosto antes de sair de casa.

– Não chames atenções indesejadas sobre ti, Xi Shi – avisava, segurando o véu, que ondulava e cintilava à luz do meio-dia, com as bordas a brilharem muito. – É perigoso para uma rapariga como tu.

Uma rapariga como eu.

Havia mil significados escondidos naquelas palavras, e eu tentava não ficar a matutar neles, mesmo quando as velhas recordações fervilhavam em resposta. As rubicundas tias da aldeia, que uma vez vieram visitar-me e cacarejaram maravilhadas quando me viram. É tão bonita, murmurou uma delas. Alguém com uma beleza tão requintada tem o poder de derrubar reinos e cidades. Disse-o como um elogio. Outra tentara apresentar-me ao filho, que tinha o triplo da minha idade, era lenhador, como o meu pai, e tinha um rosto que me fazia lembrar um melão-de-são-caetano.

– Vem cá – disse a mãe.

Dei um passo em frente e deixei que me pusesse o véu à volta da cabeça, sentindo os seus dedos magros e calejados – gastos por esfregar seda crua durante o dia e woks ferrugentos à noite – a mexer nos atilhos. O tecido caía-me suavemente sobre o nariz, os lábios, o queixo, fresco no calor pegajoso do verão. Supunha que devia estar grata pelo desejo dela de me proteger dos olhares das pessoas. A mãe de Zhengdan praticamente arrastava-a para a rua e exibia o seu bom aspeto para toda a gente ver. E resultara. Sete dos homens da nossa aldeia já tinham aparecido à sua porta com pre- sentes caros a pedir a mão dela em casamento. Foi Zhengdan quem me contou isto, já tarde da noite, com a boca franzida de repulsa e a mão fechada em punho por baixo da minha.

– Volto antes de escurecer – prometi à mãe, que eu sabia que ia começar a preocupar-se muito antes disso, apesar de o rio não ser muito longe do nosso canto ocidental da aldeia e de eu já ter feito o mesmo percurso inúmeras vezes.

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Por vezes, no entanto, as raparigas como eu desapareciam. Embora desaparecer fosse uma palavra demasiado suave para descrever o que acontecia. A verdade era mais feia: roubadas, abatidas, vendidas. Negociadas entre homens como porcelanas raras. Era especialmente verdade nos dias que corriam, com as feridas da guerra ainda frescas no nosso reino, os Wu em cima do nosso povo e os nossos soldados restantes demasiado cansados e dispersos para se incomodarem com assuntos triviais como raparigas mortas.

– Volta logo que possas – instou a mãe, e meteu-me nos braços um cesto de bambu grosseiro com rolos de seda empilhados dentro dele.

Atravessei a aldeia sozinha, alerta. O véu comprido fazia-me cócegas nas faces e depressa se colou a elas, húmido de suor, mas ajudava a atenuar os cheiros menos agradáveis a pele de cabra, sujidade e peixe cru. À minha volta, a maior parte das casas ainda se encontrava em ruínas, com buracos nas paredes como feridas abertas, ou pedras partidas espalhadas pelo pátio como caveiras. Havia marcas negras na terra de quando os soldados Wu tinham chegado, a atear fogos, a brandir espadas, o sangue do nosso povo a pingar das suas mãos. A cena estava ainda viva na minha mente, menos uma recordação do que uma assombração. Por vezes, durante a noite, parecia-me ver fantasmas a pairar sobre os caminhos de poeira amarela. De todos os aldeões que não tinham sobrevivido.

Uma porta rangeu à minha direita, trazendo-me à força de volta ao presente. Escorreram vozes por entre as brechas. Um homem tossiu um catarro espesso. Estuguei o passo, com o cesto apertado contra o peito.

Como sempre, ouvi o rio antes de o ver. O gotejar constante e canoro da água, acompanhado pelo chamamento dos gansos para lá das árvores, o seu cheiro azul-doce sendo um alívio. Depois, os olmos apartaram-se, oferecendo uma visão clara e deslumbrante da margem do rio, com a relva a erguer-se e a balançar-se ao sabor da brisa e os seixos lisos espalhados ao longo da orla, com um padrão pintalgado de branco e cinzento como ovos de codorniz. Não havia ninguém além de mim – e senti-me contente por isso. Sempre apreciara o som da minha solidão, o silêncio da minha respiração. Muitas vezes, quando havia outras pessoas por perto e sentia os seus olhares em mim, invadia-me a estranha sensação de que o meu rosto e o meu corpo não me pertenciam. Como se tivesse sido concebida apenas para o prazer de as pessoas me verem.

Lentamente, desenrolei o primeiro rolo de seda do cesto e mergulhei-o na água fresca do rio. Uma vez, duas vezes, de novo. Depois, torci a seda para a desencharcar, com a água a escorrer-me pelos pulsos. A tarefa parecia simples, mas era mais difícil do que a maioria das pessoas imaginava. Antes de lavada, a seda era áspera contra a minha pele, deixando bolhas cor-de-rosa no seu rasto; lavada, era tão pesada que me sobrecarregava os braços como uma pele de carneiro. Fazia pequenas pausas entre cada rolo, para recuperar o fôlego e relaxar os músculos. Para massajar com uma mão a pele fina sobre o meu coração. As histórias mais estranhas contam que a minha mãe estava a lavar seda neste mesmo rio quando foi atingida por uma pérola, e que, pouco depois, ficou grávida de mim. Nessas histórias, sou reduzida a alguém que mal chega a ser humana, um ser de mito, mas pelo menos explicariam a minha falta de saúde desde criança, a dor no peito que ocasionalmente diminuía, mas que nunca desaparecia completamente. Por vezes, imaginava que havia uma fissura a trespassar-me o coração, que não conseguiria suturar tentasse o que tentasse.

A dor tornou-se mais aguda. Estremeci, franzindo a testa ao mesmo tempo que pousava a seda com um chapinhado. Tentei respirar fundo. Não havia maneira de lutar contra a dor quando ela vinha; apenas podia ter a esperança de conseguir deixá-la passar. Ainda estava a apertar o peito quando ouvi um grito distante.

Parecia de uma criança.

Susu, foi o meu primeiro pensamento, mas era uma tolice. Endireitei-me e semicerrei os olhos, com o coração a martelar-me o peito, tanto devido à dor como ao medo. Aproximavam-se duas figuras pela margem do rio – uma rapariga desgrenhada, magra como um espeto, perseguida por um homem muito maior. O sangue gelou-me nas veias quando o avistei. O seu cabelo preto era curto, ao estilo tradicional dos Wu.

Monstro.

Um inimigo em carne e osso. Aqui mesmo, em Zhuji, na nossa aldeia. Na margem do nosso rio.

– Por favor, ajude-me – gritou a rapariga, com os olhos arregalados a aterrarem em mim.

Não devia estar viva há mais de um ciclo completo do zodíaco – tinha mais ou menos a idade de Susu, se Susu tivesse tido a oportunidade de crescer. Quando levantou os braços magricelas, vi as equimoses roxas que lhe desfiguravam a pele queimada pelo sol. Pareciam recentes.

A rapariga e o seu perseguidor estavam a apenas alguns metros de distância. Menos.

Faz alguma coisa. As palavras pressionavam-me a mente, mas pareciam desligadas, como se outra pessoa as tivesse pensado. Ainda tinha as mãos molhadas do rio, com o lodo frio preso debaixo das unhas. Comecei a bater os dentes. Procurei com os olhos alguma coisa – alguém –, mas só vi a luz amarela do sol a brilhar na água e os gansos a voarem no horizonte e a seda amarrotada dentro da cesta.

A rapariga tropeçou. Caiu para a frente e bateu com os joelhos nos seixos. O som que fez abalou-me até aos ossos, e senti uma dor secundária que não era minha. Escapou-lhe um grito dos lábios, mas aos meus ouvidos transformou-se num grito de uma outra criança. Um grito familiar, estridente de pânico e confusão. Alguém que precisava de mim mais do que tudo.

Susu. Não, não vás para aí, temos de continuar escondidas.

Ouve-me.

Volta para aqui.

Por um momento, o tempo pareceu dividir-se, e vi a minha irmã mais nova, os seus olhos arregalados, o seu rosto suave, feito de tudo o que há de bom no mundo. Vi a espada trespassar-lhe o lado. Vi-a cair...

– Socorro!

A rapariga tentava levantar-se de novo, mas o homem avantajava-se sobre ela, tão gigante como o Pangu dos mitos primevos, com a sua sombra a alastrar sob o sol. Aproximou-se, com uma bota calcou com força o canto da túnica esfarrapada da menina. Ela ficou presa ao chão, uma ave com uma flecha a trespassar-lhe a asa.

– Sua ladrazinha – rosnou ele, com o sotaque Wu óbvio nas suas palavras, na maneira como esmagava as sílabas entre os dentes. – Achavas mesmo que podias tirar a pera, debaixo do meu nariz, e escapar impune?

Livro: "O Lamento dos Rios"

Autor: Ann Liang

Editora: ASA

Data de Lançamento: 14 de janeiro de 2025

Preço: € 18,95

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O rosto da rapariga estava branco e rígido como um osso, mas os seus olhos, quando os virou para o atacante, pareciam arder por dentro. – Foi só uma pera.

– É minha. Tudo aqui – disse o homem, apontando para a nossa aldeia e mais além, para as montanhas azuis, para a capital, para todo o Reino de Yue – nos pertence agora. Não te esqueças.

A rapariga respondeu com uma série de palavrões tão indelicados que eu só conseguia perguntar-me onde os teria aprendido...

– Basta – rosnou o homem, e desembainhou a espada.

O silvo agudo e metálico sobrepôs-se a todos os sons. Ouvira dizer que os Wu eram mestres da metalurgia, como nós; que as suas espadas eram de tal excelência que podiam cortar rochas e permanecer afiadas mesmo depois de séculos. Com grande desespero, vi com os meus próprios olhos que era verdade. A lâmina brilhava no ar, o sol rasgou-se na sua ponta letal. Um golpe rápido e cortaria osso.

Sacudi-me para me livrar do meu atordoamento horrorizado. O pensamento apareceu de novo, mais alto: Faz alguma coisa. Salva-a.

Não voltes a falhar.

Os meus dedos tatearam o chão, desatinados, e fecharam-se à volta de uma pedra solta. Não maior do que um ovo, mas sólida e pesada, com um rebordo irregular. O homem não estava a olhar para mim; o seu olhar fixava-se apenas na rapariga encolhida. Na fração de segundo que antecedeu o golpe da espada, arremessei-lhe a pedra. O que esperava conseguir nessa altura, não sei. Gostaria de pensar que o homicídio não me estava na mente, que apenas queria desviar-lhe a atenção, não fazer-lhe mal. Porém, quando a pedra atingiu o nariz do homem com um forte estalido, e ele cambaleou para trás, gritando, com as mãos a voar para a cara...

Admito que senti uma pequena e viva onda de satisfação.

Mas a vaga de medo rapidamente tomou o seu lugar. O homem tinha voltado toda a sua atenção para mim, e, mesmo que o homi- cídio não tivesse sido a minha intenção, via bem que era a dele. O seu queixo estava manchado com sangue espesso, e, quando deu um passo na minha direção, escorreu-lhe mais sangue do nariz para a boca. Virou-se e cuspiu. Esfregou o rosto com a manga esquerda. Na mão direita, a espada brilhava, apontada diretamente para mim.

– No Reino Wu – disse –, temos um ditado sobre pessoas que se metem onde não são chamadas: muitas vezes têm mortes desa- gradáveis.

Senti um aperto na garganta.

Soube então, com uma certeza que me percorreu os ossos, que ia morrer ali mesmo, na margem do rio, onde a água se encontrava com o céu, com a minha mãe à espera, a menos de uma milha de distância, que eu voltasse para casa. Os passos do homem esmagavam os seixos, cada vez mais perto. Em pânico, a mente saltava-me para lugares absurdos, sacava de protestos esfarrapados e incompletos. Que eu era demasiado jovem, que não tinha feito nada de tão mau que merecesse isto, mesmo que nem sempre acabasse de comer o arroz ou dobrasse os lençóis; que ainda não me apaixonara, nunca vira o mar nem pusera o pé fora da minha aldeia...

Mas o vasto universo não dava ouvidos a todos os meus protestos. Atirei outra pedra ao homem, em desespero, mas ele estava preparado agora. Esquivou-se facilmente dela, e da seguinte, arreganhando os lábios a revelar dentes enegrecidos. Mais uma vez, levantou a espada. Senti a frieza do metal como se já tivesse recolhido a minha alma, beijado a minha carne.

Não, pensei incoerentemente. Ainda não, ainda não, ainda não...

Um clarão brilhante atravessou o meu campo visual.

O tinido de metal contra metal. Pestanejei. Um vento sobrenatural agitou-me o véu, e demorei um momento a perceber o que tinha acontecido. Outra espada entrara em cena e desviara a arma do homem da sua trajetória antes que pudesse atingir-me. Mas de onde viera a outra espada?

Rodei nos calcanhares, procurando, e a resposta não tardou a revelar-se. Uma figura alta e esguia avançava pelas margens com toda a graciosidade sinistra de um lince, com o sol a brilhar atrás dela, as suas feições esbatidas pela luz. Perguntei-me vagamente se seria alguém enviado pelos céus, um guerreiro das lendas – ou se eu já estaria morta e estaria a sonhar a cena.

Mas não, tudo isto era real. Nunca nada na minha vida parecera tão real. Sentia o gosto forte do sal do rio misturado com o do sangue por ter mordido a língua com demasiada força. Depois, a figura virou-se alguns graus e a luz mudou, iluminando os planos do seu rosto. Fiquei surpreendida ao descobrir que era o rosto de um jovem, um rosto belamente refinado, ainda por cima. Todos os ângulos eram limpos, nítidos, harmoniosos, a curva natural dos seus lábios quase arrogante; juntos, eram demasiado intimidantes para serem examinados durante muito tempo.

– Quem és tu? – gritou o homem Wu, embora a sua pergunta tenha saído num gorgolejo áspero, engrossado com sangue. – De onde é que vocês estão sempre a aparecer?

– Não tens o direito de falar comigo – respondeu o estranho calmamente. A voz dele era como a sua aparência: fria e calma, mas apenas do modo como uma bainha romba esconde uma lâmina mortífera.

O rosto do homem Wu contorceu-se. Arremessou-se para a sua espada, que tinha sido atirada para a erva, e depois fez um movi- mento violento, a querer apunhalar o estranho.

– Cuidado! – gritei.

Não precisava de ter falado. O estranho cruzou as mãos atrás das costas e desviou-se facilmente do caminho da espada. A sua expressão nem sequer se alterou. Manteve a mesma expressão fria, os olhos escuros e inteligentes, o canto da boca levantado com des- prezo, como se tudo aquilo fosse um incómodo irritante.

O movimento rápido fez desequilibrar o seu atacante. Os braços do homem agitaram-se descontroladamente enquanto o peso do seu corpo oscilava, na sequência do arremesso falhado. Ofegante, firmou-se e tentou de novo, desta vez alvejando diretamente o pescoço exposto do estranho. Porém, mal mudou de posição, o estranho fez o mesmo; uma mudança muito subtil, que poderia passar despercebida num piscar de olhos. E assim continuou, para a frente e para trás. O homem Wu atacava, dando um salto e arremetendo como um touro enfurecido até ficar com a cara vermelha, e o estranho esquivava-se graciosamente, afastando-se para o lado, baixando a cabeça, sem sequer levantar uma mão.

– Quem és tu? – repetiu o homem Wu, mas havia uma nota de medo real no seu tom de voz.

O estranho não respondeu. Em vez disso, levantou ligeira- mente a perna no momento em que o homem Wu atacou de novo. Com um estrondo ruidoso, o Wu caiu de gatas e a espada soltou-se-lhe da mão. Antes que pudesse tentar recuperá-la, o estranho aproximou-se, apanhou a espada entre dois dedos esguios e atirou-a casualmente para as profundezas do rio. Formaram-se ondas concêntricas na água.

No silêncio, apenas se ouviam os grunhidos ásperos de frustração do derrotado.

– Vai-te embora – disse o estranho com frieza, afastando-se com um roçagar das suas vestes. – Ou será o teu corpo a ser atirado à água a seguir.

O homem empalideceu, e de seguida – praguejando entre dentes, com o nariz torto ainda a pingar vermelho – pôs-se de pé e fugiu, desaparecendo para lá do bosque de olmos sem um olhar para trás. Quando os seus passos se desvaneceram na distância, o estranho finalmente encarou-me. De perto, era ainda mais impressionante do que me apercebera, a sua beleza tão nítida que chegava a ser perturbadora, o seu olhar de uma intensidade de olhos negros tão límpida que não consegui desviar os meus.

– Está magoada? – perguntou. A sua voz era mais delicada agora do que quando falara com o homem Wu, mas não mais calorosa.

Empertiguei-me o mais possível – apesar de, mesmo assim, a minha cabeça só lhe dar pelos ombros – e examinei o meu corpo à procura de quaisquer sinais de dor. Não havia nenhum, além da leve picada nas palmas das mãos por ter agarrado a pedra com força. Até a dor no meu peito desaparecera, como se nunca tivesse estado lá.

– Não – respondi lentamente, alisando o véu. De seguida, lembrei-me da sua espada. Enterrara-se na terra, mas grande parte da lâmina continuava a parecer prata brilhante e polida, com um padrão de diamantes a repetir-se na frente e atrás, e pequenos fragmentos de jade incrustados no punho. Também havia palavras gravadas na lâmina. Li-as enquanto puxava a espada para a soltar: A mente destrói; o coração devora. Agitaram alguma coisa dentro de mim, como o lento dedilhar de uma corda de guqin, mas não saberia dizer porquê.

– Obrigada por... tudo – disse, passando-lhe a espada de forma um pouco desajeitada nas duas mãos estendidas. Não sabia se esta era a forma correta de o fazer. Ele era claramente de algum tipo de origem nobre, com vestes que por si só valiam mais do que uma dúzia dos nossos melhores búfalos-de-água.

Embainhou a espada num só movimento, prateado e fluido. – Não foi nada. – Não parecia estar a ser educado, apenas a declarar a verdade.

– Eu devia recompensá-lo – insisti, endireitando-me. – Devo-lhe a vida.

Os seus lábios torceram-se, como se estivesse a perguntar-se o que eu poderia dar-lhe que ele não tivesse já. – Não é necessário – disse. – É suficientemente satisfatório humilhar um homem de Wu. – Fez uma pausa, inclinando a cabeça. – Foi a menina que lhe partiu o nariz?

Por um breve momento, pensei em mentir, em fazer o papel de donzela inocente de olhos arregalados, como a maioria das pessoas esperava de mim. Mas algo me fez acenar que sim com a cabeça.

Os seus lábios curvaram-se mais para cima, numa espécie de sorriso. – Impressionante. – Depois, o seu olhar deslizou para a menina pequena, que ainda estava deitada onde caíra, com a boca aberta em choque. – É sua parente?

Senti uma dor dentro de mim. Como desejava que fosse. Como desejava ainda poder apontar para alguém e chamar-lhe irmã.

– Não sei quem é – admiti, aproximando-me dela, com o estranho a seguir-me. – Só parecia precisar de ajuda.

– No entanto, salvou-a – disse ele com alguma surpresa. Algo me dizia que raramente ficava surpreendido, e um estranho orgulho floresceu dentro do meu peito por saber que fizera o inesperado.

– O senhor salvou-me – lembrei-lhe. – E nós não nos conhecemos.

– Sim, mas eu tinha a certeza de não correr perigo. Proteger os seus interesses não iria prejudicar os meus. – Olhou-me de soslaio, embora eu fingisse não me dar conta. – É uma coisa muito diferente de ajudar alguém quando isso nos põe em risco.

Abri a boca para responder, mas a menina pequena falou primeiro.

– O... o homem mau foi-se mesmo embora?

– Foi. Mas não te levantes já – acrescentei apressadamente, vendo-a esforçar-se por se erguer sobre os cotovelos. Acocorei-me e inspecionei as feridas dela. As nódoas negras tinham um tom azul-púrpura terrível, como uma ameixa demasiado madura, e esfolara a pele em vários sítios quando tropeçou. Era difícil dizer quantas das manchas escuras na sua túnica eram de sangue e quantas eram de lama. Depois, virei a atenção para as suas mãozinhas e estremeci. Todas as unhas lhe tinham sido arrancadas, deixando apenas pequenos semicírculos irregulares de carne viva. Estes ferimentos eram mais antigos. E não pareciam ser acidentais. – O que... te aconteceu? – Respirei, engolindo a bílis da boca. – Onde estão os teus pais?

– Morreram. – Disse-o de um modo apático, como se estivesse a recitar um poema que há muito perdera o seu sentido.

– Morreram?

– Foram mortos – emendou ela, olhando para o rio cintilante. – Por quem?

– Por quem mais? Pelos monstros de Wu. Consegui fugir enquanto eles estavam distraídos com os gritos da minha mãe. Não queria – disse ela, quase na defensiva, como se pensasse que poderíamos julgá-la por ter sobrevivido. – Mas não ia ficar à espera de que me cortassem o pescoço também. Era o que a minha mãe teria desejado.

Ainda bem, queria dizer-lhe, com a dor a tornar-se mais forte. Devias ter fugido. Devias ter feito o que fosse preciso para te afastares deles. Porque se a tua mãe tivesse sobrevivido e tu tivesses morrido, ela passaria o resto dos seus dias numa dor inimaginável, a chorar até ficar com a voz rouca. Arrastar-se-ia pela casa como se alguém lhe tivesse arrancado do corpo metade da alma. É o destino mais cruel para quem tem cabelo grisalho enterrar quem tem cabelo escuro.

Eu sabia.

– Fizeste o que devias – disse o estranho. As suas feições tinham-se contraído, e pareceu-me ter visto um lampejo de ressentimento por baixo da sua tez gélida. – Como te chamas?

– Wuyuan – sussurrou ela.

– Wuyuan. Estou a ver. – Não lhe disse o nome dele nem se baixou até ao chão como eu, mas tirou um cantil de água e um lenço limpo das suas vestes e depois virou-se para mim. – É provável que os ferimentos dela infetem se não forem tratados. Tem alguma experiência em limpar feridas?

– Alguma – disse eu, aceitando o cantil e o lenço. Este último tinha bordada uma imagem de dois peixes à volta um do outro num lago de lótus, e a seda era da melhor qualidade, maravilhosa- mente suave ao toque. Parecia errado manchá-lo com sangue, mas ele não parecia importar-se. – Isto pode arder – disse eu a Wuyuan enquanto alisava o lenço.

Ela limitou-se a acenar com a cabeça, com o olhar ainda fixo no rio. Não era a reação que uma criança normal teria à dor. Por outro lado, talvez não pudesse haver crianças normais criadas numa era de guerra. Enquanto lhe limpava as palmas das mãos ensanguentadas, senti uma pontada de ódio contra os Wu. O tumulto no nosso reino não tinha fim desde que os exércitos de Wu tinham capturado Kuaiji, e agora havia uma geração de crianças sem pais que estavam mais familiarizadas com a dor do que com a paz.

Esperava que o forasteiro se fosse embora, mas apenas se afastou para o lado e ficou a ver-me tratar a criança. Era uma sensação estranha. Poucos me prestavam atenção quando tinha a cara tapada, e menos ainda olhavam para mim como se me pudessem ver – não a superfície lisa e bonita das coisas, mas os espinhos que cresciam por baixo.

– Não é destas bandas, pois não? – perguntei-lhe sem olhar para cima.

– Como sabe? – Pelo tom de voz ameno, era difícil avaliar se estava a perguntar genuinamente.

Pelo sim pelo não, respondi na mesma. – Pelo seu... ar. Os seus modos. Não é como os homens daqui.

– Não? E que tipo de ar é que eu tenho?

Olhei-o de relance, para a espada na sua bainha esculpida e para as vestes de cores ricas bem cingidas na cintura, para o elegante carrapito do seu cabelo preto asa-de-corvo, para as borlas e o jade que lhe pendiam do cinto. – Um ar digno – disse por fim. – O ar de alguém importante. Talvez seja um nobre. Ou um estudioso em viagem. Ou um líder militar... Luta tão bem. – Queria que ele me corrigisse, que confirmasse as minhas suposições, mas apenas sorriu ligeiramente e não disse mais nada.

Quando os ferimentos de Wuyuan ficaram tratados da melhor forma que me era possível, ele meteu uma bolsa nas mãos dela. Bastou-me ouvir o seu tilintar para saber que estava cheia de moedas.

Wuyuan fitou-o, de olhos arregalados, num estado de choque que espelhava o meu. – O que...?

– Compra alguma comida e roupa nova – disse ele. – Mas certifica-te de que não gastas tudo. Deixa metade das moedas para comprar ameixas verdes ao preço mais baixo que conseguires; sugiro o mercado que fica duas milhas a sul daqui, lá em baixo seguindo pelo rio. Guarda-as num lugar seguro, longe do sol. Verás que o preço das ameixas aumentará drasticamente três dias mais tarde. Quando chegar essa altura, vende as ameixas ao triplo do preço. Percebeste?

Wuyuan acenou com a cabeça, apesar de estar agora boquiaberta, como se não tivesse a certeza se o jovem que tinha diante de si era um ser mortal ou um deus. Eu própria já não tinha a certeza. – Sim.

– Ótimo.

Como sabe?, queria perguntar-lhe. Como podia prever quais seriam os preços dali a três dias? E parecia tão seguro disso. Mas ele já tinha alisado as vestes e começado a descer a margem do rio, a afastar-se de nós.

Sem pensar, corri atrás dele.

– Espere, antes de se ir embora... – Procurei o melhor pedaço de seda que pude encontrar no cesto, o que tinha acabado de lavar, e estendi-lho. – Por favor, aceite isto.

Abrandou o passo e inclinou a cabeça. – Para quê?

Apontei para baixo, para a orla das suas vestes. Havia um rasgão minúsculo onde devia ter ficado preso em alguma pedra durante a luta com o homem Wu. – Para a remendar. Ou fazer novas vestes. Ou então – disse mais alto, quando ele parecia preparar-se para protestar – aceite-o como sinal do meu agradecimento. Sei que não é a mais justa das trocas: um pedaço de seda em troca de uma vida. Mas talvez assim se lembre melhor de mim.

– Não preciso da seda para me lembrar de si – disse ele, tão baixo que mal o ouvi, mas aceitou a minha oferta com uma ligeira inclinação da cabeça. – Se o destino quiser, que nos encontremos de novo.

Fiquei a vê-lo afastar-se, com o sol a bater na linha dos seus ombros definida como o gume de uma faca, até a sua silhueta não passar de uma mancha no horizonte distante. No entanto, mal desapareceu de vista, o meu peito contraiu-se, e arquejei, com os dedos a agarrar inutilmente a gola da veste. Sem mais nem menos, a dor tinha voltado.

***

Não falei do meu encontro com a morte nem do meu estranho encontro com o jovem quando regressei a casa. Sabia que os meus pais ficariam muito preocupados com a primeira parte e ainda mais com a segunda. Além disso, à luz antiga e familiar do meu quarto, no lar que era menos uma casa do que uma cabana, com as suas paredes de taipa e o seu telhado baixo de colmo, tudo o que se passara adquiria agora um ar de sonho. Acreditariam sequer em mim se eu falasse de um belo e misterioso forasteiro, capaz de vencer um duelo contra um homem armado sem mexer um dedo, capaz de prever a subida e a descida dos preços no mercado, com o porte e a maneira de falar de alguém criado num palácio? Mal acreditava eu própria, e estivera lá. Vira-o.

Portanto, recolhi a seda lavada, limpei as mesas e preparei o jantar. A nossa reserva de feijão era escassa e a de arroz ainda mais escassa; quando tirei a quantidade necessária para um pote cheio de papas, a concha raspou o fundo do frasco. Ignorei a pontada de preocupação no estômago. No dia seguinte, lavaria o dobro da quantidade de seda que lavara hoje, para podermos vender mais no mercado. Seria suficiente. Tinha de ser. E quando acabasse...

Cortei o pensamento antes que ele pudesse crescer. Aprendera a pensar no tempo em dias, o período entre duas refeições, do nascer ao pôr do sol. Por vezes, parecia-me que a minha vida era só isso, tudo o que alguma vez poderia ser: a repetição de tarefas necessárias à sobrevivência até eu envelhecer e o meu tempo expirar. Contudo, por mais estranho que fosse, sempre que tentava imaginar-me como uma mulher velha, não conseguia. Era como tentar ver o fim de um rio; a imagem tornava-se turva e desvanecia-se num negrume.

– Precisas de ajuda com isso?

O rosto do meu pai à porta, curtido pelo sol. Não me parecia que fosse um homem velho, mas já estava a ficar com o cabelo grisalho e andava curvado devido ao peso dos troncos grossos de árvores e dos machados gigantes.

– Não, pai – disse eu.

Oferecia-se sempre para ajudar, e fazia-o sempre com toda a sinceridade, mas, de alguma forma, acabava por nunca ajudar. Talvez porque desse mais trabalho ensiná-lo do que simplesmente fazer eu própria a tarefa; duvidava que soubesse sequer ferver água. Ainda assim, era melhor do que alguns dos outros pais, que batiam nas filhas por elas não cozinharem suficientemente depressa, ou apenas para descarregarem a sua raiva em alguém que não podia ripostar.

– Muito bem, então.

Ouvi os seus passos arrastados a atravessar a divisão, um suspiro baixo quando se instalou na cadeira, e, pouco depois, roncos suaves e ressonantes. E depois havia a água a ferver, o feijão-verde a flutuar à superfície, com o interior a abrir-se. Mexi-o como me ensinara a minha mãe, e a mãe dela a ensinara a ela.

Depois do jantar, sentei-me ao lado da janela, com os joelhos abraçados ao peito, e pus-me a olhar lá para fora. Embora as cabanas em si não fossem grande coisa, pouco mais do que uma recordação feia da violência que afetara a nossa parte do reino, todas as árvores, flores silvestres e montanhas estavam pintadas em tons saturados de azul e verde. A relva luxuriante crescia sobre os locais onde os cadáveres tinham sido deixados a apodrecer, naqueles tempos em que já não restavam aldeões suficientes para ajudar a enterrar os corpos. Esvoaçavam borboletas de um ramo para o outro, onde em tempos o sangue manchara as folhas.

A natureza tinha sarado mais depressa do que nós.

Uma brisa quente entrou e suspirou contra a minha pele. Em momentos como este, havia no ar do crepúsculo uma ânsia ofegante, como se estivesse à espera de que a escuridão tombasse. Eu também estava à espera – mas, do quê, ainda não sabia.