Uma gota, duas gotas, três gotas vermelhas, do tamanho de moedas de dez centavos, caem no chão do balneário das raparigas da escola secundária de Thomas Ewen, em Chamberlain, pequena cidade no estado do Maine. A cavaqueira entre alunas pós-educação física é interrompida quando se apercebem que Carrieta White está a sangrar entre as pernas sem aperceber-se do sucedido. Fruto de uma educação puritana, ela não sabe que está a ter a primeira menstruação aos 16 anos e entra em pânico, julgando estar a esvair-se em sangue espontaneamente. Só que não é junto das colegas que vai obter qualquer forma de ajuda: “as gargalhadas de repulsa, de desprezo e de horror subiram de tom e deram lugar a um ruído irregular e desagradável, e as raparigas bombardearam-na com tampões e pensos higiénicos, uns tirados das bolsas, outros do dispensador automático partido pendurado na parede. Os tampões caíam como flocos de neve e a cantilena mudou: — Enfia-o, enfia-o, enfia-o, enfia-o…”

É com este retrato tão visceral quanto indicativo da maldade humana que Stephen King dá início a “Carrie”, a sua primeira obra a ser publicada, um marco na literatura de terror e o ponto de partida para a carreira de um dos mais celebrados e prolíficos autores do nosso tempo. As celebrações dos 50 anos têm alguns meses, já que este livro foi originalmente lançado a 4 de abril de 1974, mas o recente lançamento de uma reedição especial comemorativa pela Bertrand — com um prefácio de Margaret Atwood — renova os motivos para nos virarmos para esta obra.

A premissa é a que se segue. Carrie White é uma adolescente socialmente marginalizada e sem porto seguro: se na escola é alvo do bullying incessante dos (e, principalmente, das) colegas e da indiferença dos professores, em casa é sujeita aos maus-tratos da mãe, Margaret, uma cristã fanática que acredita poder corrigir a filha através da religião e do amor violento e castrador. Só que Carrie possui o dom da telecinesia, ou seja, é capaz de mover objetos com a mente. À exceção de raros episódios, a jovem tenta manter o seu poder escondido e sob controlo. Uma das raparigas populares da escola, Sue Snell, arrepende-se do seu comportamento e simpatiza com a condição de Carrie, acabando por convencer o namorado, Tommy, a levá-la ao baile de finalistas. No entanto, uma outra colega — Christine Hargensen, líder do liceu, de castigo devido ao episódio do balneário —, planeia humilhá-la, e Carrie sofre o derradeiro ato de crueldade ao levar com um balde de sangue de porco em cima quando estava a ser coroada rainha do baile. No fundo, é a história da Cinderella a quem as irmãs más pregam uma rasteira antes que possa sequer perder o sapatinho de cristal.

O que se segue é uma chocante sequência de vingança e carnificina levada a cabo por alguém que nunca conheceu nada senão sofrimento — ou, como a própria afirma, cuja vida foi “um único e longo golpe baixo” — e atinge o ponto de rutura.  Além de plasmada nas páginas, esta história imortalizou-se nos ecrãs, com Sissy Spacek a encarnar Carrie na adaptação cinematográfica realizada por Brian de Palma de 1976, de olhos claros esbugalhados a contrastar com a figura coberta de sangue, uma face transfigurada em loucura. É, ainda hoje, uma das mais icónicas cenas do cinema de terror.

Se este resumo parece ser demasiado revelador, a verdade é que o próprio livro mostra desde cedo as suas cartas. King nunca nos conduz ao engano de esperar um final feliz, já que vai pressagiando os horrores logo nas primeiras páginas através de uma estrutura polifónica e não-linear, recorrendo não só à perspetiva de várias personagens em momentos diferentes da história, como também a uma panóplia de “fontes” fabricadas pelo autor. Considerados por si dos momentos mais divertidos na conceção de “Carrie”, King inventa takes da Associated Press sobre os incidentes em Chamberlain, citações de um livro de memórias de Sue Snell, uma entrevista dada à revista Esquire por uma vizinha dos White traumatizada por um episódio destrutivo, um artigo académico sobre a vida e os dons de Carrie e até mesmo passagens dos interrogatórios feitos aos sobreviventes por uma comissão governamental criada para investigar o que aconteceu.

Uma filha não-desejada, um nascimento atribulado

Tanto o livro quanto o filme foram um enorme sucesso, ajudando a puxar o terror enquanto género das margens para o centro da cultura popular. Foi com “Carrie” que Stephen King pôde finalmente dedicar-se a tempo inteiro à escrita, seguindo-se 50 anos de criação com o ritmo de mais do que uma publicação por ano, entre romances, novelas, contos, ensaios e livros de não-ficção. Dada a importância cimeira desta obra, é imperioso então constatar que a sua existência esteve muito perto de não acontecer. Como o próprio conta em “Escrever” — misto de livro de memórias com manual de escrita —, o primeiro esboço, de três páginas, foi parar ao lixo, tendo sido salvo pela mulher, Tabitha.

A ideia para o romance partiu de ter ido ajudar o irmão, Dave, no seu trabalho de contínuo numa escola e observar que, ao contrário dos balneários masculinos, os femininos tinham cortinas, para atender à intimidade das alunas. King juntou a reflexão de como seria uma jovem ter o período num balneário sem privacidade e ser alvo de bullying das colegas à leitura que tinha feito de um artigo na revista Life sobre fenómenos psíquicos. “PU! Dois factos sem qualquer relação, crueldade adolescente e telecinesia, uniram-se e eu tive uma ideia”, revela nesse livro.

Corria o ano de 1973 e King vivia numa caravana com Tabitha e os dois filhos do casal, Naomi e Owen (o terceiro, Joe, nasceria em 1977). Além de lecionar inglês num colégio privado, fazia turnos numa lavandaria e vendia contos a várias revistas masculinas. Mesmo assim, mal dava para sustentar a família, tendo deixado de ter telefone fixo porque não havia dinheiro para tal, e o seu carro enferrujado estava à beira de uma morte misericordiosa. Por esta altura, o escritor já tinha três livros concluídos mas nenhum lhe parecia comercializável e “Carrie” estava para seguir pelo mesmo caminho.

A ideia era fazer de “Carrie” um conto, mas King não só não simpatizou com a personagem — ”obtusa e passiva, uma vítima pronta” —, como achava que uma história assim precisava de mais espaço para se desenvolver — espaço esse em falta nas revistas às quais vendia os seus trabalhos. Pior ainda, sendo um homem de 26 anos, sentiu-se desconfortável com a ideia de escrever sobre um universo que desconhecia, as provações e os ritos de passagem da adolescência feminina. Não obstante, Tabitha resgatou as páginas amassadas e sujas de cinza de tabaco e convenceu-o a continuar a história, ajudando-o a navegar nessas águas desconhecidas.

Para criar aquela que viria a ser Carrie, inspirou-se em duas ex-colegas ostracizadas, uma cujos pais eram altamente religiosos, deixando-a pouco preparada para o mundo secular, e outra cuja pobreza da família era denunciada pela mesma roupa que vestia todos os dias para a escola. De resto, estes são apenas dois curtos exemplos retirados da experiência de King entre muitos outros que serviriam de inspiração para “Carrie”. “Para mim, a escrita é sempre melhor quando é íntima, sexy, como sentir a pele na pele”, assume em “Escrever”. É por isso que, comparando o relato que faz da sua infância com a vida de Carrie, encontramos inúmeros pontos de contacto: desde crescer sem pai — que o abandonou a si e à família — a ter uma mãe remediada que coleciona selos para reclamar produtos gratuitos, passando por pormenores mais granulares.

“Quanto mais da nossa vida colocarmos nos nossos livros, mais as pessoas respondem. É preciso ir ao fundo das coisas que nos tocam profundamente, que nos magoam, que nos dão alegria, e encontrar uma forma de transmitir esses sentimentos ao leitor, mesmo que seja difícil reviver essas experiências, que nos envergonhem ou que nos deixem envergonhados. Se querem que os leitores se liguem aos vossos livros, têm de estar dispostos a pôr algum sangue nas páginas”, conta Grady Hendrix ao SAPO24.

Referência do terror contemporâneo — não só pelo sua obra enquanto escritor, como também pela sua atividade jornalística e de investigação quanto à história da literatura deste género — Hendrix  abraçou em 2012 o projeto de (re)ler e avaliar toda a obra de Stephen King. Denominado “The Great Stephen King Reread”, esta colossal empresa levou-lhe cinco anos a concluir e invariavelmente fez de si um especialista na obra do autor. Foi nessa condição que respondeu amavelmente a algumas perguntas enviadas por email.

Após colocar o tal “sangue nas páginas” de que fala Hendrix, King deu-se por satisfeito e enviou o manuscrito finalizado às editoras. Muitas rejeições depois, a Doubleday aceitou. Sem grande esperança no seu sucesso, continuou com a sua vida até ao dia em que recebeu um telegrama na escola onde lecionava — recorde-se, não tinha telefone na caravana — a anunciar a aprovação. A muito custo, nascia assim uma lenda.

Stephen King
Stephen King Stephen King em 1985 créditos: Wiki Commons

Porque é que Carrie foi importante há 50 anos — e porque é que é hoje?

Quando chegou às livrarias em 1974, “Carrie” encontrou um panorama literário no qual não se enquadrava totalmente. O género de terror, a recuperar de um refluxo depois de um pico protagonizado por nomes como Shirley Jackson e Ray Bradbury nos anos 50, começara a ter alguns sucessos junto do grande público no final dos anos 60, com “O Exorcista”, de William Peter Blatty, e “A Semente do Diabo” (conhecido por muitos pelo nome original, "Rosemary's Baby") — ambos resultando também em míticas adaptações para o cinema.

No entanto, estes livros tratavam o terror com a grandiloquência de uma luta do bem contra o mal, Deus contra Satanás. “Carrie”, pelo contrário, optou por focar-se nos dramas comezinhos de uma jovem maltratada pela sua comunidade, colocando o seu foco no mundo adolescente. “Penso que o seu maior impacto na altura foi popularizar os romances passados em liceus que levavam a sério as suas personagens e o seu mundo. John Farris fez isto antes de King com os seus livros ‘Harrison High’, mas o sucesso de ‘Carrie’ permitiu aos romancistas saberem que podiam escrever um livro sobre adolescentes que os tratasse como pessoas sobre as quais valia a pena escrever. Não creio que King tenha sido inteiramente responsável por esta mudança, mas a vida interior dos adolescentes não era considerada um assunto sério para um romancista no final dos anos 60/início dos anos 70”, afirma Hendrix.

Na sua crítica ao livro de King, o escritor vai mais longe na sua análise: se “aqueles livros tinham pretensões de respeitabilidade, não havia nada de respeitável em ‘Carrie’, nada de nobreza de espírito. Não se tratava de nova-iorquinos da classe média alta com boa educação e roupas bonitas. Era cru, atrevido e ambientado numa comunidade de classe trabalhadora. Cheio de tampões, fervor religioso, pinturas florescentes de Jesus, macacos do nariz, mamas de adolescentes e muita, muita morte, ninguém tinha lido nada assim. Tão áspero e atrevido como o 'moonshine', veio da parte errada da cidade, atirou os leitores contra a casa de banho e baixou-lhes as calças, oferecendo uma mistura de emoções obscenas e uma escrita firme e centrada nas personagens”.

O desrespeito por regras ou convenções de King refletiu-se também numa série de temas que raramente tinham eco na literatura popular e de terror da época: bullying, fanatismo religioso, conformismo, estratificação social. O escritor oferece em “Escrever” um exemplo pungente do tipo de observações em que se baseou a sua escrita. De volta às colegas marginalizadas que inspiraram Carrie, King conta que a aquela que tinha pouca roupa atreveu-se a chegar um dia à escola com o vestuário renovado. Este foi o resultado:

“Não importa, porque meras roupas não conseguiram mudar a situação. Naquele dia, a zombaria foi pior que nunca. As colegas de Dodie não tinham a mínima intenção de a deixar sair da caixa onde a tinham colocado, foi castigada pela ousadia de tentar escapar. Eu tinha várias aulas com ela e pude observar em primeira mão a sua descida aos infernos. Vi o sorriso dela desvanecer-se, vi a luz dos seus olhos apagar-se até desaparecer. No fim do dia, ela já tinha voltado a ser a rapariga que era antes das férias: um espectro sardento e sem expressão, deslizando furtivamente pelos corredores de olhos postos no chão e os livros colados ao peito”.

Carrie
Carrie Edição portuguesa comemorativa dos 50 anos de Carrie créditos: Bertrand

Lendo as páginas de “Carrie”, torna-se óbvia a inspiração para uma personagem como Chris Hargensen, que quer castigar a protagonista na noite do baile pelo mero facto de tentar fugir à condição que lhe tinha sido imposta. “Sangue de porca para uma porca”, repetirá com regozijo Billy Nolan, o parceiro abusivo e delinquente de Chris. “Naquela comunidade todos eram um desfavorecido na cuidadosamente calibrada estrutura de classes da América — para eles não havia colégios privados caros, nem educação universitária, a não ser que tivessem muita, muita sorte —, mas nem um desfavorecido tão em baixo rejeita outro que está ainda pior no esquema social para o usar como uma tela em branco onde podem ser projetadas todas as coisas que detesta em relação à sua própria posição social”, aponta Margaret Atwood no seu prefácio da edição celebrativa.

A afamada escritora canadiana, contudo, identifica ainda outro aspecto fulcral de “Carrie” nesse texto, o facto de este romance aparecer numa fase de convulsão no que toca a políticas de género. “‘Carrie’ foi escrito no início dos anos 1970, quando a segunda vaga do movimento das mulheres carburava em pleno. Há no livro várias anuências a esta nova forma de feminismo e o próprio King disse que estava nervosamente consciente das suas implicações para os homens da sua geração”, aponta.

Mafalda Santos é da mesma opinião. Atriz, guionista e escritora (entre outras atividades), a autora partilha com o SAPO24 aquilo que acredita ser uma leitura bastante sofisticada da condição feminina — particularmente vinda de um homem nos anos 70 — e que encontra muitos ecos meio século depois. “Nesta obra tudo são mensagens e metáforas.  Basta ver a forma interessantíssima com que King lida com o corpo feminino. A primeira menstruação de Carrie é tratada com horror e vergonha, tanto por ela como pelas pessoas à sua volta. Isto reflete uma sociedade que, mesmo hoje, encara a sexualidade e o corpo feminino como algo a ser controlado e reprimido. A mãe de Carrie, com o seu fanatismo religioso, representa um extremismo que ainda vemos em discussões sobre os direitos das mulheres, especialmente no que toca à saúde reprodutiva. Ela usa a religião para justificar a violência que inflige à filha, privando-a totalmente de liberdade e de amor próprio e isso é algo que, vergonhosamente, continua a ser a realidade para muitas mulheres que têm o acesso à saúde e ao controlo sobre os seus próprios corpos limitado por crenças religiosas ou políticas”, defende.

“King consegue captar com muita autenticidade o que é ser uma mulher que se sente isolada e sem poder, e faz isso através da lente infalível do terror que, claro, amplifica esses sentimentos. E depois o autor tem a coragem, inédita para um homem, de fechar a obra com uma exortação, num estilo quase wagneriano, diria eu, acerca do que pode acontecer quando uma mulher, oprimida por tanto tempo, finalmente encontra uma maneira de libertar a sua raiva. É uma vingança trágica, mas também compreensível”, acrescenta.

Ao longo de todo o livro, a cada nova indignidade a que Carrie é sujeita, uma palavra rebate na sua cabeça: “ceder”. Progressivamente ciente dos seus poderes e mais capaz de manobrá-los, sabe que não pode ceder à tentação. A cena do baile, porém, arrasa essa capacidade. Quando sai para a rua, e olha para o céu, encontra-se perante a encruzilhada entre ir para casa chorar as mágoas ou voltar para o ginásio e confrontar a multidão. Carrie escolhe o segundo caminho, tornando-se assim “uma mulher que sente os seus poderes pela primeira vez e, como Sansão, manda o templo abaixo com toda a gente lá dentro no final do livro”, escreve King no livro de ensaios “Dance Macabre”, servindo-se de uma apropriada parábola bíblica. Apesar da monstruosidade das suas ações, da vingança cega e amoral com que pune santos e ímpios em Chamberlain, não conseguimos deixar de simpatizar — Carrie constitui, no fundo, a concretização das fantasias de vingança que nos passam pela cabeça e que deixamos tombar para o fundo do nosso subconsciente.

“Carrie é uma personagem com a qual todos nos conseguimos, de uma forma ou de outra, identificar e isso eleva a obra bem para lá do simplismo, tantas vezes colado ao género do terror, porque muito além de cumprir o seu papel de assustar, é uma história que fala de humanidade. Além disso, sempre interpretei o uso dos poderes telecinéticos da protagonista como uma metáfora para o trauma e a repressão, o que faz com que a obra tenha uma enorme complexidade e camadas, bem como uma carga feminista que, acredito, só hoje se começa a explorar a fundo neste género literário”, aponta Mafalda Santos.

Carrie
Carrie Capa da primeira edição de "Carrie", de 1974 créditos: Wiki Commons

O terror não está em Carrie, está em nós

A forma como nos revemos no martírio de Carrie constitui ainda outra razão para uma obra como esta ser intemporal. Tal como os pesadelos tentaculares e cósmicos de H. P. Lovecraft são testemunho que o medo do desconhecido é eterno e imutável, a violência deste romance de King mostra-nos que o terror está perigosamente perto de cada um de nós — na porta ao lado ou mesmo no nosso reflexo, debaixo da pátina de normalidade. Essa mesma metáfora é empregue pelo autor numa entrevista à Paris Review, afirmando que aquilo que faz é “como uma racha no espelho”, demonstrando o que está por baixo.

O contraste que “Carrie” demonstrou perante outras obras passadas e contemporâneas é que o nosso quotidiano pode ser uma fonte generosa de horrores. “A obra de Stephen King ensinou-me que o terror não precisa de ser só sobre sustos e situações macabras e rocambolescas, mas pode também ser uma forma de falar sobre os nossos maiores medos sociais e psicológicos. Ele consegue transformar o quotidiano em algo absolutamente assustador e mostrar que o verdadeiro terror está nas pessoas e nas relações”, afirma Mafalda Santos

“Um dos trunfos do Stephen King é pegar em temas do dia a dia e fazer deles um livro de terror. Ele tem vários livros com temas aparentemente banais, sem ser necessários grandes voos de imaginação — como o ‘Misery’, quando um escritor é torturado por uma fã. É uma coisa horrorosa, mas é uma ideia tão simples, nem tem toques fantástico ou de sobrenatural, é uma história que podia acontecer. Isso faz parte do génio do King, ele conseguir com premissas muito simples depois escrever grandes livros”, diz, por sua vez, Luís Corte Real.

O escritor e editor do grupo Saída de Emergência — que começou, e ainda se mantém, com um foco acentuado na literatura fantástica e de género — explica que “o terror não tem de ser sempre um monstro, o sobrenatural, um demónio, uma criatura pré-histórica, um espírito”. Pelo contrário, “o terror são as pessoas, é a sua maldade. E ali ela está rodeada de maldade — é isso que a transforma. “Acho que o terror ali nem vem tanto da Carrie com os poderes que tem, é mais daquela sociedade que a trata mal”, indica.

Para exemplificá-lo, o editor sugere que, face aos abusos de que é sujeita, Carrie, se não tivesse poderes, “podia simplesmente levar uma arma automática — como acontece tantas vezes nas escolas americanas — e metralhar toda a gente”. O desejo de vingança seria igualmente satisfeito, ainda que sem a componente do fantástico. “O bullying é o material e a telecinesia dela é um pormenor, porque o Stephen King escreve literatura fantástica e o fantástico pode ter estas liberdades”, justifica.

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Filipe Homem Fonseca concorda. Para o escritor, argumentista e músico, a escrita de King — particularmente neste livro — resulta porque “aquilo é um drama levado ao extremo, é o bom terror para mim. É o drama que se torna tragédia e depois dá um passo em frente e já está noutro domínio, para lá da tragédia. É algo sufocante a um nível absolutamente doido, quase absurdo” Ao ler “Carrie”, “já estás completamente embrenhado no quotidiano, tens os pés na terra e encontras-te numa situação com a qual te consegues imediatamente relacionar, tenhas tido ou não experiências daquelas. A empatia não funciona só tu tendo experiências semelhantes, é também reconhecer ali um lado humano de te pôres naquela situação. É uma coisa muito humana e a partir daí consegues escalar para os lados mais fantásticos”.

Dito de outra forma, um dos aspetos mais aterradores de “Carrie” não é apenas o facto do leitor poder ver-se no papel do anjo vingativo que a protagonista assume no final do livro; é verificar que podia facilmente ceder à pressão do grupo e ser apenas mais uma das pessoas envolvidas no bullying coletivo a Carrie. Assim, sente-se um incómodo “porque te vias a fazer o mesmo quando eras miúdo. Essa maneira como ele consegue pôr-nos no lugar da vítima e do agressor e depois brincar com isso é uma lição do caraças”, afirma, acrescentando: “Ele é um excelente cientista da condição humana. Acho que é uma das coisas que mais lhe admiro”.

Não há melhor exemplo dessa pressão de grupo do que o testemunho de uma das sobreviventes após o desastre, descrevendo o momento em que Carrie fica coberta de sangue: “Não conseguimos conter-nos. Foi uma daquelas situações em que ou nos rimos ou enlouquecemos. Carrie tinha sido o alvo da chacota durante muito tempo, e todos sentimos que participávamos em algo especial naquela noite. Foi como se víssemos uma pessoa a juntar-se de novo à raça humana, e pelo menos eu agradeci a Deus por isso. E aconteceu aquilo. Aquele horror”. Poderá o leitor pôr as mãos no fogo e afirmar que jamais rir-se-ia de Carrie White? É duvidoso — e King sabe disso.

Stephen King
Stephen King Stephen King assiste à estreia de “The Life of Chuck” durante o Festival Internacional de Cinema de Toronto 2024 no Princess of Wales Theatre a 6 de setembro de 2024 em Toronto, Ontário, no Canadá créditos: Mathew Tsang / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Um rei nunca destronado

Como uma nódoa de sangue, “Carrie” — tanto o livro como o respetivo filme — deixaram uma marca inegável e difícil de esfregar da nossa cultura. Se “Tubarão” ensinou-nos a temer o mar e “Psycho” que nenhuma cortina de duche é à prova de facas, “Carrie” lançou uma sombra sobre qualquer outra cena de um baile de finalistas, que pode ir do céu ao inferno à velocidade de um balde cheio. Desde então, foi fruto de inúmeras piscadelas de olho e homenagens. “Devíamos analisar quantos livros e filmes com bailes de finalistas é que havia antes de Carrie — hoje em dia é ad nauseum, acho que não há filme de terror a envolver adolescentes que não inclua isso de alguma maneira”, defende Luís Corte Real. Esse é apenas um dos tropos criados por “Carrie”. Outro, poder-se-á alegar, é o da criação da “Mean Girl” da escola na figura de Chris Hargensen, seguida de exemplos como Regina George em “Giras e Terríveis” ou Kathryn Merteuil em “Estranhas Ligações”. 

Como já foi referido, “Carrie” seria o primeiro passo de uma maratona em que King entrou de há 50 anos para cá no mundo editorial e são tantas as obras publicadas que enumerá-las torna-se um exercício tão exaustivo como inútil. Cite-se apenas exemplos como “The Shining”, “A Coisa”, “A Zona Morta”, “Cujo”, “Samitério de Animais”, “Cell”, “Salem’s Lot”, “Misery” e “Os Olhos do Dragão”, entre muitos outros — grande parte deles alvo de adaptações ao cinema ou à televisão. Prova da sua vitalidade, lançou em 2024 a coleção de contos “Mais Sombrio”, antes de chegar aos 77 anos.

Tal como Edgar Allan Poe no final do século XIX e H.P. Lovecraft no início do século XX, não é imprudente afirmar que Stephen King influenciou toda uma geração de escritores que lhe sucedeu — de terror e não só. “Não há outro escritor como Stephen King, em qualquer género. Escreve há 50 anos, produzindo um ou dois livros por ano, e embora as pessoas que não lêem King pensem que ele só escreve terror, os seus interesses levam-no a todo o tipo de lugares estranhos. Só nos últimos 11 anos escreveu uma sequela de um livro que publicou pela primeira vez em 1977, uma meditação séria sobre a morte, um romance de fantasia, quatro romances policiais, seis romances de terror, três colecções de contos e um ensaio sobre a violência das armas. Não me lembro de mais ninguém que escreva de forma tão vital, consistente e em tantos géneros durante tanto tempo”, afirma Grady Hendrix.

Essa influência, afirma Filipe Homem Fonseca, estende-se à forma como diz ter sido ensinado pelo escritor a depurar o texto. “Ele não tem ali gorduras, não entra em ‘entretantos’ que não sirvam o propósito da narrativa, do incómodo que ele quer trazer, da história que ele quer cortar. O King é muito económico e muito eficaz, tem uma abordagem muito desapaixonada, num bom sentido. Não se enamora por momentos — essa é a sensação que eu tenho —, enamora-se pelo todo, e os momentos acabam por ganhar com isso”, defende.

Já para Mafalda Santos, dedicando a sua obra literária sobretudo à escrita de terror e do thriller, a inspiração é mais notória. “Estamos a falar de uma escrita muito fluída, com a capacidade incrível de nos agarrar desde o primeiro capítulo. Acho que foi com ele que aprendi que não é preciso sacrificar a densidade psicológica em prol da tensão ou do ritmo, e isso foi fundamental para moldar o meu estilo, onde procuro sempre equilibrar a vertigem do suspense com a exploração emocional das personagens”. Além disso, para si, o escritor não só ajudou a entender que “ o terror mais eficaz vem do que é intrinsecamente humano”, como tem “o dom de criar personagens complexas e cheias de falhas, que enfrentam horrores externos e internos”. “Isso é, sem dúvida, algo que procuro desenvolver no meu trabalho”, partilha.

Mais do que influenciar escritores, realizadores e outros criativos, King continua a ser lido — o fator, dir-se-ia, mais importante para a vida de um autor. Tal dever-se-á à produção incessante e ao facto de que o terror voltou a ter um boom, dado o estado de ansiedade em que vivemos. Todavia, uma das principais razões pelas quais King continua a ser lido, defende Luís Corte Real, é que encabeçou um género popular que “não ambiciona nada mais que não seja divertir e entreter, que acho que é a principal função da literatura”. “Penso que às vezes os autores mais realistas e dos prémios literários esquecem-se disso. Muitos dos autores que ganharam o Prémio Nobel, nós hoje em dia não os lemos. Desapareceram, não são sequer publicados, não estão disponíveis a não ser em bibliotecas ou alfarrabistas. Entretanto, autores de literatura fantástica seus contemporâneos continuam a ser lidos”, afirma.

No seu entender, “o King, daqui a 100 anos, vai ser lido, mas os autores que ganharam o prémio Nobel nos últimos 10 anos, muitos deles não vão sequer ser publicados. E lá está, a função do escritor é contar as grandes histórias que entretenham, que nos façam sonhar, que nos façam pensar, que nos façam querer recomendar o livro a todas as pessoas que conhecemos — e o King é um mestre em contar uma história”.

“Ele ajudou a transformar o terror num género literário respeitado, capaz de explorar o lado mais íntimo e humano do medo, que é a meu ver, a mais intemporal de todas as emoções”, atira Mafalda Santos, para terminar desta forma: “Abriu a porta a todos os que se seguiram. Que ninguém a feche”.