É já nos dias 4 e 5 de outubro que Herman José se apresenta no Sagres Campo Pequeno com a sua Big Band para um espetáculo que passa em revista meio século a cantar e fazer rir — segue-se depois uma data no Porto, no Super Bock Arena, a 19 de outubro. Foi a propósito destas atuações que o SAPO24 falou com aquele que é tido por muitos como "o rei da comédia em Portugal" — título que, de resto, afirma não lhe insuflar o ego; diz antes ter uma "maneira muito infantilmente espantada de reagir a essas coisas".
Depois de, na celebração dos 40 anos de carreira, ter subido aos palcos dos Coliseus, a dos 50 será uma vez mais uma súmula de um percurso iniciado ao mesmo tempo em que o país entrava em democracia. Aliás, como conta, os seus primeiros passos foram como músico, a gravar canções revolucionárias sem saber do seu conteúdo, antes de enveredar pela comédia, a televisão e a rádio, marcando indelevelmente a cultura nacional com programas como "O Tal Canal", "Herman Enciclopédia" e tantos outros.
No decurso da conversa, Herman admitirá que suavizou a carga satírica do seu humor por escolha própria, para apelar a um público mais familiar e que prefere hoje apresentar um produto quase que artesanal. Numa era em que o IKEA vende mobília em barda, equipara o seu trabalho a quem faz "cómodas bonitas com embutidos: não são best-sellers, mas estão lá e quem quiser vai comprar".
"Ninguém me pediu esta versão ‘mainstream’. É completamente uma opção minha. Assumo-a e também confesso muitas vezes que já não tenho saúde para grandes polémicas". Ainda assim, deixa escapar algumas farpas mais afiadas ao longo da entrevista, nomeadamente quanto aos "exageros" da cultura "woke".
Em palco, contudo, é diferente. Aí, Herman José diz continuar a ser o mesmo de sempre, dependendo apenas do contexto. Para estes espetáculos, promete "o melhor de 50 anos de estrada". "Há muitas piadas que são as mesmas há 50 anos, só que com roupagens diferentes". Porquê? Comparando o humor à culinária, diz que "evoluir as receitas não é modificá-las nem subvertê-las, é usar os ingredientes cada vez melhor".
Ao fim destes 50 anos de carreira, que balanço é que faz?
Eu não sinto esses 50 anos como 50 anos. Porquê? Porque todas as épocas foram tão trabalhosas que eu verdadeiramente nunca parei para ter aquela sensação de quem está a descansar um bocadinho à sombra da bananeira. Já quando foram os 40 anos achei estranho, mas não liguei muito. Agora aos 50 é incontornável, e quando cheguei a esta data e alguém me disse que temos de comemorar de alguma maneira, eu fiquei completamente dividido: por um lado, acho que é giríssimo comemorar e é uma vitória maravilhosa chegar aos 50 anos de carreira e aos 70 anos de vida na posse de todas as faculdades, com saúde e tudo isso; por outro lado, a coisa dá assim um paladar a semi-despedida que me irrita [risos]. Por isso é que este espetáculo que vamos fazer não tem propriamente esse paladar de despedida, de um princípio de reforma. Antes pelo contrário, ele vai buscar o melhor de 50 anos de estrada, porque o meu material foi evoluindo. Há muitas piadas que são as mesmas há 50 anos, só que com roupagens diferentes. E o objeto que fizemos é sobretudo de pura diversão. Muito mais do que "ai, a responsabilidade de um espetáculo", "ai, testar material novo", "partida para uma nova etapa"... Nada disso. É só "feel good", prazer e gente que gosta de mim. E quero ainda referir uma coisa interessante. Há uns tempos fiz um grande espetáculo no Coliseu, que também foi muito giro, mas estupidamente não deixei que fosse televisionado, porque ia ser uma condicionante para o tipo de piadas e o tipo de coisas que se dizem. Mas hoje em dia, o campo está de tal maneira aberto nesse sentido que eu vou dizer tudo como os malucos e é televisionado na mesma.
No fundo, é uma demonstração de vitalidade?
Sim, e muito mais do que ter estes 50 anos como comemoração, é tê-los com estupefação. Ou seja, pensar que maravilhoso privilégio é estar a comemorar este número tão redondo, como se de repente tivéssemos começado há meia dúzia de dias e ainda está tudo por fazer e por resolver.
"Os materiais que lá estão não foram usados e deitados fora, foram repescados das coisas que melhor funcionam e melhor testadas são"
Disse numa entrevista há relativamente pouco tempo que quem não se reinventa, morre. Visto que este espetáculo vai passar a sua carreira em revista e que isso implicará que muitas coisas vão ser atualizadas de certa maneira para os tempos atuais, pode explorar um pouco esse tema?
Eu acho que em todos os aspetos da nossa vida... [pausa] Em termos culinários, por exemplo, evoluir as receitas não é modificá-las nem subvertê-las, é usar os ingredientes cada vez melhor, de maneira que, quanto à receita que tu fazes bem, a faças cada vez melhor e ela te vá surpreendendo a ti como cozinheiro enquanto a fazes. E aí é que está a grande diferença. Às vezes, a reinvenção é entendida como usar, deitar fora e fazer diferente. Ou "esse ritmo já não se usa, esquece e faz outra coisa". Não, não. O bolero é um bolero, o tango é um tango, o hip-hop é o hip-hop, cada coisa tem a sua importância. Agora, é interessante como artista ir pegando numa certa lógica e fazer com que ela vá evoluindo e ficando cada vez melhor. E, no fundo, o meu espetáculo é isso mesmo. Os materiais que lá estão não foram usados e deitados fora, foram repescados das coisas que melhor funcionam e melhor testadas são. O que é que foi melhorando? Os tempos, a própria automatização das piadas. Porque quando tu estás no meio de um espetáculo com 10 ou 20 mil pessoas, ou mesmo neste caso no Super Bock Arena, perante perto de 4000 e tal pessoas, muita da energia está adjudicada à capacidade de mantê-las interessadas. Portanto, há zonas de ti que têm de estar automatizadas para a coisa sair muito bem porque tu não te podes dar ao luxo de te enganar.
"Ultimamente não me tem calhado, mas já me aconteceu fazer um espetáculo com metade da plateia à porrada, por exemplo. E tu tens de manter o mesmo sorriso, o mesmo alinhamento, o mesmo timing, como se estivesse tudo bem"
Visto que faz isto há tanto tempo, com tanto afinco e com essa precisão, como é que se gere entre arriscar entrar em piloto automático, porque já se sabe o que é que resulta, e manter essa energia ao vivo?
O grande truque é que os alinhamentos nunca são iguais. Este, por acaso, vai ter de ser [planeado] ao milímetro, porque implica audiovisuais e as coisas não podem ser mais ou menos. Mas, tirando este caso, o alinhamento é feito ao sabor do tempo, do vento, das pessoas, das gerações, dos horários, e é isso que faz com que eu fique sempre interessado naquilo que estou a fazer. O que nunca pode acontecer é eu sentir que estou a trabalhar, porque aí é sinal que está alguma coisa a correr mal. E às vezes corre, quer dizer, basta haver de repente um problema com o som... E ultimamente não me tem calhado, mas já me aconteceu fazer um espetáculo com metade da plateia à porrada, por exemplo. E tu tens de manter o mesmo sorriso, o mesmo alinhamento, o mesmo timing, como se estivesse tudo bem. Não podes parar o espetáculo e dizer "então, não me estão a respeitar? Está tudo à estalada?" Portanto, aí conta realmente a experiência. Mas são muito poucas as vezes em que tenho de fazer o espetáculo sem tirar prazer dele.
Quanto a este tema da vitalidade de que estamos a falar, existe esta ideia — que até foi por si manifestada em algumas entrevistas — de que, face a outros períodos da sua carreira, foi ficando um pouco menos ácido e cortante, mais até no trabalho televisivo. E que essas vertentes hoje manifestam-se principalmente nos espetáculos ao vivo. De que forma?
O que acontece é o seguinte: em termos televisivos, chegou uma altura que assim entendi, porque sei precisamente quais são os públicos que me estão a ver e quando. Por exemplo, o caso de um espetáculo numa comunidade imigrante às oito da noite, com a família a jantar e a ver-me na RTP Internacional. Isso deu-me a perceção de que, apesar de eu ir para o ar às onze da noite cá e ter liberdade total, estou a fazer produtos televisivos que vão ser vistos à hora do jantar por famílias inteiras. E, portanto, ninguém me encomendou nada, nem ninguém me pediu esta versão "mainstream". É completamente uma opção minha. Assumo-a e também confesso muitas vezes que já não tenho saúde para grandes polémicas. Nos espetáculos é eventualmente diferente, porque eu albardo o espetáculo ao sabor do momento. Como deves imaginar, se for fazer um espetáculo para uma queima das fitas às três ou quatro da manhã, o tipo de coisas que vou dizer e fazer não têm nada a ver com o espetáculo da empresa de Natal às quatro da tarde com 30 crianças sentadas ao pé de mim e com os paizinhos atrás. E, portanto, aí sim, tenho de pôr em prática estes anos todos de experiência para que em qualquer das situações a coisa corra bem. Ou seja, se fores ver um espetáculo meu a uma queima das fitas, chegas a casa a dizer "bem, este gajo está pior que nunca, disse coisas terríveis". Se fores ver o da empresa às quatro da tarde, vais dizer "bem, este tipo está insuportável, não corre riscos, só faltou fazer de Branca de Neve e os Sete Anões".
"Os primeiros tempos do 25 de Abril não tiveram nada a ver com aquilo que faço hoje, porque eu era músico"
A propósito dessa questão da liberdade, a sua carreira floresce e desenvolve-se ao mesmo tempo que nasce o Portugal democrático…
Precisamente no mesmo ano, sim.
Elas estão embrenhadas. Como é que recorda esses primeiros tempos de liberdade, especialmente face à sua pulsão criativa?
Foram geniais. Os primeiros tempos do 25 de Abril não tiveram nada a ver com aquilo que faço hoje, porque eu era músico. É muito giro, porque quando se deu o 25 de Abril, a esquerda tomou conta e muitos grupos comunistas passaram a liderar a parte cultural da vanguarda do momento e eu tinha a felicidade absoluta de ser amigo de todos, apesar de não perceber nada de política. Eu era a pessoa mais burra que se pode imaginar em termos políticos, mas era felicíssimo com aquela gente: tocava com Pedro Osório, gravei com José Jorge Letria músicas absolutamente extraordinárias e revolucionárias. Gravei o hino da Intersindical, gravei o hino do Avante com a Luísa Bastos, que tinha estado na União Soviética a estudar, era uma militante comunista recém chegada. Eu era de tal maneira inculto que, a meio do hino do Avante, virei-me para ela e, do alto dos meus 19 anos e das minhas socas de 13 centímetros, pergunto-lhe "isto tem alguma coisa a ver com o Partido Comunista?" E diz-me ela, "menino, há coisas com as quais não se brinca!" Não lhe passou pela cabeça que eu não estava a fazer uma piada! Foi tudo uma felicidade absoluta. Eu não tinha nada a perder, porque o meu pai estava reformado e, portanto, não sofremos com as nacionalizações. Pude entregar-me livremente à felicidade que foram aqueles tempos.
Quando começo a fazer teatro, é numa altura em que a sociedade está toda já a assentar, a compartimentar e a legalizar-se. Eu lembro-me que, nos primeiros espetáculos que fiz com o Nicolau [Breyner], em 75 ou 76, não havia Finanças. A pessoa recebia dinheiro dentro de um saco de plástico e vinha-se embora, era como se o Estado não existisse. Depois, lentamente, começou tudo a ir ao sítio. Recordo-me que, em 77, Portugal começa a ter os primeiros sintomas dessa organização e eu tive a felicidade de ter um sucesso musical gigantesco que era o Saca-Rolhas, que me transformou na altura num best-seller das festas, como jovem humorista-cantor. Só depois sinto que apanho fio à meada, nos anos 80, quando começo a escrever e faço uma rábula num programa do Júlio Isidro chamado "Passeio dos Alegres", em que era um cantor romântico chamado Tony Silva que dizia coisas politicamente incorretas. Na altura, ninguém praticava aquele tipo de humor e aí começa verdadeiramente a minha vida artística.
Quanto a essa liberdade para criar, quando se deram as celebrações dos 40 anos de "O Tal Canal", referiu que esse programa foi escrito de si para si. Estava a falar há pouco da sua produção televisiva mais recente ser um produto diferente, mas escolhido por si também. Diria que essa ideia de liberdade tem sido a sua filosofia de trabalho desde o início?
Sabes o que é? O país mudou muito. A maior parte das pessoas que agora existem não existiam nessa altura. O que é que existia? Uma população média, normal, e muita gente mal disposta que ainda não estava conformada com as mudanças. Havia uns velhos péssimos que me odiavam todos — e também já morreram todos. Os velhos de agora tinham 40 anos quando me estreei, portanto são benignos e são fãs. Quando eu era novo, eram pessoas odiosas que iam para os espetáculos de trombas, faziam parte das comissões que censuravam, que vetavam. Esse Portugal era diferente. Quando eu digo que "O Tal Canal" é feito para mim, é porque eu tinha a certeza absoluta que havia uma parte das pessoas que ia odiar aquela modernidade. Eu não estava era à espera que tanta gente gostasse, isso é que é diferente. Hoje em dia, os públicos estão completamente definidos, sedimentados. A internet veio mudar a lógica toda, porque cada um pega numa coisa e faz o que lhe apetece. Portanto, a minha preocupação é fazer algo artisticamente válido. Prefiro que a coisa seja artística e muito bem feita do que ter muitos soundbites para que as pessoas falem no dia seguinte. Dá-me imenso prazer que se vá buscar à net uma rábula com quatro, cinco ou seis anos e esteja sem falhas, muito bem escrita e muito bem representada pelos meus queridos atores, que são um grupo maravilhoso.
"O que é que te interessa ser um talento maravilhoso a viver algures na Faixa de Gaza? Ou, vá, numa aldeia transmontana sem internet sequer para promoveres as tuas coisas?"
No fundo, diria que hoje é quase um artesão nesse sentido?
Sim, é isso mesmo. Numa altura onde o IKEA vende o que vende e merecidamente, continua a haver uns tipos que fazem umas cómodas bonitas com embutidos: não são best-sellers, mas estão lá e quem quiser vai comprar.
Ainda relativamente aos seus inícios, já mencionou por diversas ocasiões como houve algumas pessoas com importância capital para a sua carreira, como Nicolau Breyner ou Artur Agostinho. Mas se nunca as tivesse conhecido, o Herman nunca deixaria de ser o Herman. O talento arranja sempre maneira de se manifestar ou a oportunidade e o timing são fulcrais?
Diria que a oportunidade e o timing são fulcrais, mas a geografia também. O que é que te interessa ser um talento maravilhoso a viver algures na Faixa de Gaza? Ou, vá, numa aldeia transmontana sem internet sequer para promoveres as tuas coisas? Foi essencial, nas alturas próprias, eu conhecer as pessoas certas e estar no epicentro geográfico da criação. É a mesma coisa com as carreiras internacionais: quem consegue impor-se no estrangeiro, é porque foi para lá. Há carreiras brilhantes a partir de Lisboa, tens de ter a coragem de emigrar, de desaparecer, de recomeçar no sítio e ver se consegues conquistar mercados e isso implica sempre deslocação geográfica — para além da sorte, do talento e disso tudo.
"O humor tem de ter limites em função dos sítios onde estamos"
Retomando a ideia de liberdade para fazer humor de que falava há pouco, essa acabou por esbarrar em dois episódios muito importantes da sua carreira, no "Humor de Perdição" e depois no "Parabéns": no primeiro foi mesmo alvo de censura, no segundo ficou-se pela pressão pública. Aquando da sua condecoração no ano passado, disse que o humor funciona também como "um barómetro da saúde democrática" — que diagnóstico faz hoje face a esses tempos?
Em Portugal é bom, sem dúvida nenhuma. Há partes do mundo onde infelizmente já não é. Chegou a haver bom stand-up na Rússia, bons comedy clubs onde jovens humoristas russos diziam aquilo que lhes passava pela cabeça. A maior parte deles já desistiram ou fugiram do país, porque essas liberdades foram à vida. Isso faz-nos sempre lembrar de que a democracia e a liberdade não são dados adquiridos nunca. É como a felicidade: não se é feliz, está-se feliz. "Ah, fulano tal é muito feliz". Não, porque basta que lhe telefonem cinco minutos depois a dizer que a filha foi atropelada e acabou-se a felicidade. A democracia é igual, é uma luta, é manter dia a dia um certo equilíbrio. Digo-te uma coisa, se fosse dirigente, era feroz em milhares de coisas — até algumas delas porventura com devastadores resultados políticos. Há uma coisa, por exemplo, que me fere, que são paredes grafitadas. Acho muito bem que haja zonas dedicadas ao graffiti, há graffiters que são verdadeiros artistas e merecem tudo, mas não me venham com o spray preto destruir as lindas paredes de pedra dos bonitos edifícios da cidade. Isto é um mini exemplo — há muitos exemplos deste género na sociedade completamente impunes, mas aos quais a democracia às vezes fecha os olhos, e às vezes com maus resultados. A falta de controlo das populações, por exemplo, que invadem sítios sem limitações, são depois responsáveis pela surpresa de vermos imensas zonas de repente votarem na extrema-direita, porque entraram em desespero com os exageros. Portanto, sou muito a favor da democracia musculada, e também no humor. É muito livre e muito giro, portanto agora vai-se fazer piadas sobre crianças com cancro? Não, não vai, porque na plateia devem estar alguns pais que têm os miúdos no IPO, portanto eu não lhes vou estragar a noite com uma piada dessas. Dizem-me "estás a ser censor", pois estou. Não quero. O humor tem de ter limites em função dos sítios onde estamos.
Existe esta ideia também que hoje vivemos tempos de maior policiamento de linguagem e de comportamento, se calhar face há algumas décadas. Isso manifesta-se em menor liberdade ou numa maior responsabilização dos humoristas?
O problema é encontrar o equilíbrio certo. Por exemplo, na lógica woke, vão tão longe e são tão exagerados que perdem a razão. Aí a natureza ensina-nos uma coisa muito simples, na medida dos medicamentos: a dose certa cura-te, com a dose maior ficas doente e com uma dose grande morres. Na defesa daquilo que achamos decente, se não houver esse equilíbrio, estás a matar o próprio objeto. O que eu sinto nos últimos tempos é que, em nome de ser tudo possível, têm-se feito disparates enormes. Do ponto de vista humano, ok, tens a obrigação de defender minorias que têm sido maltratadas por causa das suas inclinações sexuais, por exemplo. Epá, mas de repente isso não quer dizer que há alguém que te apareça a dizer que é um gato, exige os seus direitos, e portanto tens a obrigação de nos restaurantes pôr caixinhas de serradura porque há umas pessoas que acham que são gatos e a lei obriga a ter caixas para essas pessoas. Tem de haver limites, e esses estão no bom senso.
"Há coisas que já são de tal maneira extraordinárias, que não vale a pena satirizar, isso já lá está"
Quanto ao atual estado do humor, hoje há mais produção do que nunca, mas também a atenção está mais dispersa e é difícil criar fenómenos de popularidade…
...e há pessoas que já vêm com o humor feito. Estive a ver o debate da Kamala [Harris] e do [Donald] Trump e o Trump já traz a caricatura feita. Os disparates que ele diz, mesmo para um ator, já são exagerados. Quando ele fala nas comunidades imigrantes do Haiti que andam a comer gatos e cães e gansos, é difícil imaginar um texto mais divertido.
Existe a ideia de que a sátira hoje está em crise porque é difícil satirizar o que já é parece sátira em si mesmo.
É verdade, há coisas que já são de tal maneira extraordinárias, que não vale a pena satirizar, isso já lá está.
Algum do seu material mais memorável envolve várias personagens caricaturais inspiradas na sociedade portuguesa. No entanto, mais do que apontar o dedo, se calhar há aqui uma certa vontade de se colocar no papel do outro, ou não? O humor também é um exercício de empatia?
É de empatia e, por muito contraditório que pareça, também da ausência dela. Nós caricaturamos alguém de que gostamos muito e que admiramos, mas depois a seguir fazemos o mesmo a alguém que não suportamos e conseguimos vingar-nos desse sentimento através da própria caricatura. No meu caso específico, a grande maioria é de pessoas que eu admiro. Faço de Júlia Pinheiro e gosto imenso dela, faço de Milhazes e adoro-o, fazia de Carlos Pinto Coelho e de Filipa Vacondeus... No meu caso foi sempre assim... Mas claro, quando faço de Hitler — e fiz muitas vezes — é precisamente pelas razões contrárias. Estou a evocar alguém de tal maneira desprezível que é interessante evocar e gozar com ele para dar como exemplo de coisas disfuncionais e que, em princípio, era interessante não serem repetidas.
Já falou anteriormente sobre a questão do peso da fama e de como às vezes é difícil ter privacidade enquanto figura pública, mas eu gostava de lhe perguntar sobre o peso da deferência e da influência, de haver tanta gente que o cita como inspiração, de ser sempre encarado como uma figura magna, como o rei do humor em Portugal. É daquelas situações em que a coroa às vezes pesa na cabeça ou vive bem com isso?
Eu tenho sempre uma maneira muito infantilmente espantada de reagir a essas coisas. Acho maravilhoso, fico grato e não me sinto nada pomposo. Portanto, é sempre para mim uma alegria constatar que há tanta gente tão querida e que me tem como referência. Quanto às privacidades, tenho também a felicidade de viajar muito e desde muito cedo percebi que bastava ir tomar café em Badajoz para se acabarem as angústias! [risos]
Há de ter fãs lá também.
Sim, dois ou três portugueses que foram lá comprar caramelos.
Por outro lado, há também a questão da expectativa, de que tudo o que faz ter de estar a par com tudo o que já fez em termos de qualidade. Como é que foi gerindo isso, especialmente a partir dos primeiros grandes sucessos?
Lembro-me da altura mais complicada de todas, que foi quando eu comecei a escrever para a rádio, para a TSF. Faz-me lembrar agora um bocado o que acontece com a Joana Marques. Na altura, tudo o que eu dissesse ou fizesse na TSF — era o seu início, nos anos 90 —, o trânsito estava parado a ouvir as minhas crónicas. Eu, no primeiro ano, fiz aquilo com uma perna às costas e sempre com imaginação, sempre com ideias. No segundo ano, foi absolutamente penoso, era um trabalho solitário. E no terceiro, a pressão de ter de ser genial, de ter de produzir, fizeram com que eu queimasse. Estive muito tempo sem escrever — é aí que nascem as "Produções Fictícias", porque eu não era capaz de escrever uma carta sequer! Ou seja, senti na pele essa imensa responsabilidade de manter níveis de qualidade e de expectativas. Por isso é que eu respeito tanto trabalhos como o da Joana, porque ninguém sonha o sofrimento que é ter de ser genial e fantástico e fresco todos os dias.
"Para mim, escrever é um sacrifício absoluto, é pior do que fazer uma punção lombar ou uma apalpação à próstata"
No fundo, teve uma espécie de burnout com a escrita, antes de isso ser um termo popular.
Um burnout com "b" grande, que só acabou graças a uma coisa chamada ICQ, que apareceu antes do Messenger, em que as pessoas mandavam mensagens no computador. As primeiras frases que eu voltei a escrever eram desse género — "olá, estás bom?" ou "então esta noite sempre vão jantar?" — porque nem essas mini frases eu escrevia, de tão cansado que estava.
Criou uma relação de amor-ódio com a escrita — como é que é essa relação hoje em dia?
Mantém-se. Odeio escrever.
Mas já referiu que foi também através da escrita que encontrou o cerne do seu humor.
Ah, mas é essencial! E continua a ser! Mesmo quando escrevem para mim, eu tenho de rever e reescrever, porque não quero fazer "mais ou menos" nem "assim assim" nem pegar em textos que não respeito. Agora, para mim, escrever é um sacrifício absoluto, é pior do que fazer uma punção lombar ou uma apalpação à próstata.
É interessante até, porque algumas das suas personagens memoráveis que reconhecemos na televisão nasceram na rádio. Portanto, também foi um bom canal para exercitar a sua criatividade?
Foi muito bom, começaram pela escrita e pela voz. O meu melhor programa de todos, chamado "Crime na Pensão Estrelinha", é feito precisamente com um concentrado das rábulas que eu escrevia para a TSF, desse meu primeiro ano que foi brilhante. Foi precisamente o ano de 90, que dá depois origem ao programa que faz a passagem do ano de 90 para 91.
"Acho que, quanto mais opções de escolha houver para a pessoa poder dedicar-se ao seu verdadeiro talento, melhor. Porque aqui o problema é que somos todos diferentes"
Desde novo foi incentivado à expressão artística pelos seus pais e isso reflete-se também, por exemplo, nas peças de teatro em que ia participando na escola ou nos filmes que protagonizava enquanto criança. O que é que lhe apraz dizer neste tempo do ensino especializado e do foco nas ciências exatas como forma de ganhar a vida?
Acho que, quanto mais opções de escolha houver para a pessoa poder dedicar-se ao seu verdadeiro talento, melhor. Porque aqui o problema é que somos todos diferentes. Se me tivessem posto na melhor escola de futebolistas do mundo, eu continuava a ser um péssimo futebolista. No entanto, se estivesse numa escola hoteleira a tirar um curso de culinária, se calhar agora era um chef Três Estrelas Michelin, porque essa é uma das minhas vocações. Isso eu acho muito importante, os miúdos a tempo poderem-se encaixar numa atividade em que sintam que possam dar o seu melhor — e ser felizes, sobretudo. Ontem estava com um cabeleireiro na SIC que tirou um curso de uma coisa complicadíssima, chegou a dada altura e percebeu que era infeliz e foi a ser cabeleireiro que ficou feliz. Pronto, lá está todo radiante da vida e é isso que deve ser. O meu pai, por exemplo, foi um gestor infeliz a vida inteira e só ficou feliz no dia em que se reformou. Isso eu não aconselho a um ser humano.
Interessante falar de vocações, porque a sua carreira humorística e no entretenimento não teria acontecido sem a música. Tudo começou quando começou a compor.
Foi através da música que eu fui conhecendo as pessoas todas certas.
"Eu gosto muito de um comediante que tenha um bocadinho de humoristite aguda, é sempre muito mais divertido que um ser normal que vai lá pela técnica"
Alguma vez pensou na ideia de ter-se dedicado exclusivamente à música em vez da comédia?
Sim, mas depois percebi à medida que o tempo foi passando que havia uma coisa que me estava a faltar chamada dinheiro [risos]. E eu pensei, "não quero, como músico, que a minha vida seja toda a fazer contas para ver se o dinheiro me chega para pagar a renda de casa ou se posso trocar de jeans", porque na altura ganhava-se mal — agora os músicos ganham mais decentemente. Eu disse "não, quero manter-me na coisa artística, mas ter uma vida minimamente decente" e então percebi que, através da representação, e mais tarde através da televisão e da comédia, conseguia esse pleno que era fazer o que gosto e ter uma vida decente.
No fundo também aqui contribui a doença que às vezes menciona, a "humoristite".
Sem dúvida, isso tem de estar lá, tens de ter essa doença desde o princípio, desde puto, porque senão ficas um comediante forçado. Também os há e alguns com sucesso, mas não são os meus favoritos. Eu gosto muito de um comediante que tenha um bocadinho de humoristite aguda, é sempre muito mais divertido que um ser normal que vai lá pela técnica.
Portanto, uma pessoa que é um bocadinho "palhaça" em qualquer que seja a situação e que fez disso talento.
É pegar no "palhacismo", empacotá-lo, desinfetá-lo e vendê-lo às doses.
Ao longo da sua vida, assumiu diversos riscos, desde os criativos aos empresariais. Tem algum arrependimento?
Tenho, todos os negócios em que me meti. Não os teria feito, menos os do imobiliário, que correram todos bem. Agora, restaurantes, produções e etc... não nasci para isso. Se voltasse atrás, jamais me atreveria, porque é um talento específico. É a tal coisa que te disse, há tipos que nasceram com esse talento e há outros que não o têm.
"As minhas festas de aniversário eram completamente míticas, juntava ali 150 pessoas. Desde primeiros-ministros e presidentes ao Ricardo Salgado, Vales e Azevedos, todas as pessoas que estavam em altas, ia tudo"
Na altura do "Café Café", por exemplo, chegou a ter muitas personalidades de renome a ir a esse espaço.
Esse lado foi giríssimo, porque socialmente foi um êxito. Mas o que cada visita VIP me custou per capita, nem quero imaginar.
Também houve uma certa inebriação com esse sucesso social de que fala?
Um dia, houve um crítico que escreveu uma coisa muito gira que me deixou semi-furioso, mas que não deixa de ter alguma razão. Eu estava no auge absoluto e ele escreveu "o que motiva um tipo com tanto sucesso e que tem o mundo na mão a abrir um restaurante? Só me ocorre uma palavra, 'vaidade'". Eu fiquei furiosíssimo. "Que disparate, vaidade?". Hoje não diria vaidade, mas há realmente o encantamento de estar num espaço e receber pessoas. A facilidade de juntar socialmente toda a gente à mesa tem um encantamento próprio. Não será bem vaidade, mas há ali uma componente de amor-próprio que conta — para mais, para quem gosta de estar à mesa. Portanto, houve ali fases muito interessantes, as minhas festas de aniversário eram completamente míticas, juntava ali 150 pessoas. Desde primeiros-ministros e presidentes ao Ricardo Salgado, Vales e Azevedos, todas as pessoas que estavam em altas, ia tudo.
Quanto à questão desse crítico ter apontado vaidade, todos os artistas são de certa maneira um pouco vaidosos, ou não? É preciso uma certa vaidade para estar em palco.
Acho que sim. Se não houver um bocadinho desse amor-próprio é mau sinal. Mesmo aqueles que fingem que não, que fingem que são Bobs Dylans e que é tudo indiferente. Não é tudo indiferente, essa componente tem de existir.
Quando foi condecorado com o grau de grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique, disse bem humoradamente estar "à espera das surpresas que os próximos cinquenta anos me trarão". Não é impossível que viva até aos 120 anos, mas como é que perspetiva o futuro?
Há uma coisa muito importante que quem me estiver a ler, quando chegar à minha idade, vai perceber. Com a passagem do tempo, se estiveres com saúde e feliz, um dia não tem 24 horas. Tal como com os cães, em que um ano são sete anos humanos, acho que, a partir de uma certa idade, uma semana é muito mais que uma semana, uma hora são 20 e um ano são 10. Eu fiz 70 anos há pouco tempo, mas neste momento já vivi 10. Eu tecnicamente já tenho 80 anos e se calhar para a semana chego aos 100 em termos de qualidade de vida. Nesse aspeto, quando eu digo que cá estarei daqui a 50 anos, se calhar os 50 anos são dois. Eu ainda tenho na parede da minha sala espaço para mais umas condecorações valentes.
Disse que a sua morte ideal seria aos 104 anos a despenhar-se num avião privado a caminho de Palm Beach...
Já não é o que eu penso, porque os desastres de avião são sempre muito violentos. Portanto, mantenho Palm Beach, mantenho o avião — intacto. Ou seja, chego na mesma a Palm Beach, deito-me na cama a ver televisão, adormeço e já não acordo. O avião e a casa ficam lá, não há acidentes, nem bombeiros, nem sofrimento.
"Quero ganhar o Euromilhões, para ter a experiência do luxo sem ter de trabalhar"
Depois de beber o tempero inteiro de uma salada, vai dormir e já não acorda?
Isso era uma piada da minha avó. A minha avó espanhola bebia os fundos das saladas e nós achamos que ela morreu com uma congestão por causa disso. Mas não, eu acho que aos 104 anos, o mais certo é ter bebido a bordo um grande copo de sumo de laranja, que é uma das bebidas que mais gosto. Possivelmente com uma sandwich club, feita pela hospedeira. Tenho uma amiga que é hospedeira de aviação privada que eu também já contactei, é uma mulher de 50 anos que na altura terá, portanto, 100. Ou seja, vai ser ideal para o fim que eu quero [risos]. Eu digo isto muitas vezes a brincar, mas acho um privilégio aquela ideia de desaparecer, o fade out. Devia ser sempre assim. Fico muito triste quando vejo os processos de sofrimento dos últimos anos de vida das pessoas, é sempre muito cruel e muito injusto.
No meio disto tudo, o que é que sente que ainda lhe falta fazer?
Tento ser original nas entrevistas e tento dizer coisas diferentes, mas esta eu não posso evitar, tem de ser sempre a mesma. Quero ganhar o Euromilhões, para ter a experiência do luxo sem ter de trabalhar. Porque o luxo com o trabalho dá muito trabalho! [risos] Quando chegas ao luxo, já estás exausto. O Euromilhões é diferente, a pessoa chega lá e já está.
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