Cheirava, juro, a couves-de-bruxelas.
E por muito de Bruxelas que sejam as couves, já se sabe que têm um cheiro idêntico ao do repolho. Comentarei este pormenor com o Luis quando sairmos daqui. Com o que ele me massacra para que a casa nunca cheire a comida: que é um horror, que causa muito má impressão, que… A partir de agora já tenho a minha resposta perfeita. Que o saiba o mundo inteiro e em especial todas as donas de casa abnegadas que lutam com afinco contra este velho problema: o Palácio de Buckingham cheira a repolho.
A seguir, entrámos na sala retangular e, tal como me tinha avisado o embaixador da Bolívia, fomo-nos distribuindo em volta de todo o perímetro. Em frente a nós, e a uma determinada altura, ficava o palco reservado aos lordes. Não vi lá Michael Caine nem o quarto Beatle, apenas duas pessoas: Lorde e Lady Spencer. Ela, majestática, com o seu amplo vestido cor de beringela, e Lorde Spencer, ligeiramente encurvado, vencido, como se as condecorações e medalhas que trazia ao peito fossem demasiado pesadas. Senti pena daquele homem, parecia muito arroxeado (será verdade que bebe muito?), encolhido e como se estivesse a fazer um grande esforço. De vez em quando, retirava um lenço do bolso e limpava a testa. Mas Lady Spencer não devia apreciar nada o gesto, porque o olhava com uns olhos (quase) tão cáusticos com os de Mrs. Thatcher, e ele guardava o seu lenço como uma criança a quem apanharam em falta. Às vinte horas em ponto, com todos os relógios do palácio a darem as badaladas em distintos tons de carrilhão, abriu-se a porta e a família real entrou. À frente, vinha a rainha e, entre ela e o duque de Edimburgo, duas senhoras parecidas com a soberana.
– Quem são? – perguntei discretamente ao embaixador da Bolívia.
– Cada membro da família real – explicou-me ele – vem seguido de duas pessoas da sua total confiança. Nunca os vi a fazer ou a dizer alguma coisa, mas estão sempre lá.
A fila real continuava com o príncipe Filipe e os seus acólitos, que eram o mais parecidos com ele que a natureza permite, ou seja, não muito. Digo-o porque o duque de Edimburgo é dos homens mais bonitos que já vi e não deve ser fácil encontrar clones dele por aí.
Depois vinha o príncipe de Gales seguido pelos seus duplos (dois indivíduos bastante orelhudos) e a seguir Lady Di, flanqueada por uma dama que, sem qualquer dúvida, não era nada parecida com ela, porque era baixinha, gorda e de meia-idade. Vê-se que, como tem apenas alguns anos de princesa, ainda não houve tempo para que se produza o curioso efeito mimético. Para amenizar a passagem da comitiva, a orquestra começou a tocar. Era uma orquestra muito elegante na qual metade dos músicos estava vestida à escocesa e a outra de fraque. Mas o que mais me surpreendeu (por já ser bastante chocante) não foi que o violoncelista vestisse perigosamente um kilt, mas a música que estavam a interpretar. Não era Beethoven nem Mozart, não, nem sequer Andrew Lloyd Webber, os Beatles em versão sinfónica, mas… a banda sonora do filme Mary Poppins. Assim, enquanto a rainha começava a saudar, inclinando a cabeça de forma que parecia fazer cintilar o seu diadema de diamantes, todos os seus movimentos acompanhavam o compasso dos acordes de Supercalifragilisticexpialidocious ou de Chim Chim Cher-ee. O outro aspeto que me chamou a atenção foi que, nestas audiências, sua majestade não desperdiça o tempo a utilizar nem um mísero neurónio. O que quero dizer é que, a cada pessoa que cumprimenta, faz exatamente a mesma pergunta: «How do you do? Do you like London?» E a frase já quase parece um mantra: «How do you do? Do you like London? Chim Chim Cher-ee…» O duque de Edimburgo não é muito mais original do que ela, embora – pelo que me sussurrou também o embaixador da Bolívia –, como gosta muito de mulheres, um sinal claríssimo de que alguém é do seu agrado é quando se afasta minimamente do guião. Já se estavam a aproximar. Eu já começava a ouvir muito nitidamente a pergunta Do you like London? quando me deu para olhar mais uma vez para ver o que estavam a fazer os Spencers.
Ela mantinha-se imperturbável e de pé, com o olhar fixo na enteada, a princesa Diana. Ele, por seu lado, também tinha os olhos fixos nela, mas de um modo diferente, quase suplicante. Esboçava um sorriso acanhado e, de vez em quando, saudava com o seu lencito com um gesto igualmente tímido. Lady Di em nenhum momento olhou para lá. Deixei de lhes prestar atenção porque a comitiva estava a chegar junto de nós. A rainha cumprimentou-me, também o duque de Edimburgo e estendeu a mão, e depois do ritual «Howdoyoudo doyoulikelondon?», perguntou-me há quanto tempo tinha chegado a Inglaterra e inclusive me questionou se não me parecia que estava demasiado calor para esta época do ano. Toda esta fiada imprevista fora do guião fez, naturalmente, que as outras embaixatrizes (e também algum embaixador) me olhassem com desconfiança. E ainda mais quando o duque reteve a minha mão alguns segundos a mais do que é protocolar. Eu estava, para quê negá-lo, nas nuvens e, por essa razão, não consegui ouvir o que o príncipe de Gales estava a dizer às minhas filhas. Detivera-se diante delas, quando o mestre de cerimónias anunciou «Miss Carmen and Miss Dolores Posadas from Uruguay» e, ao que parece, demorou-se bastante em frente delas, inclusive mais tempo do que o duque de Edimburgo diante de mim.
Como tinha afirmado anteriormente, não ouvi o que ele lhes estava a dizer, mas pude ver a expressão que tanto a Carmen como a Dolores fizeram, de surpresa estranhada.
Aos poucos, o resto da comitiva foi desfilando. A princesa Diana pareceu-me muito sorridente e calorosa; não me estranha que digam que pode vir a tornar-se uma personagem de grande carisma. Não sei, teremos de ver, mas pelo menos ela não repete o proverbial «How do you do», etc. Pelo contrário, parecia interessar-se pela pessoa que tinha à sua frente e estava sempre a sorrir.
Sorria para a direita e para a esquerda, para os importantes e para os mais humildes, em todas as direções, exceto na do pai, lá em cima, com o lencito. Depois passou a princesa Ana com as suas damas clonadas, as três com um ar muito equino. E, como ainda faltava um bom tempo para que a comitiva real acabasse de cumprimentar os convidados do lado oposto do salão, eu e o embaixador da Bolívia dedicámo-nos a especular sobre o que iria acontecer quando Lady Di chegasse ao lugar onde se encontravam os Spencers. O que faria? Cumprimentaria o pai ou continuaria a sorrir em todas as direções menos nessa? Iria atrever-se a fazer-lhe uma desfeita tão grande diante de todas as pessoas? Tanto eu como o embaixador da Bolívia pensámos que não teria outro remédio senão fazer um gesto de reconciliação; seria muito cruel humilhá-lo diante de todo o corpo diplomático e de toda a família real.
A comitiva, com a rainha à frente, já se começava a aproximar do palco dos Spencers. Ouvia-se Mary Poppins, nesse momento eram as notas de «Let’s Go Fly a Kite» que acompanhavam os passos reais.
Chegado o instante, a rainha olhou para cima e saudou, muito atenta. O mesmo fez o duque de Edimburgo. Quanto ao príncipe Carlos, foi especialmente afetuoso na sua saudação, chegou mesmo a dedicar a Lady Spencer uma espécie de vénia com dois dedos. Ela, no seu vestido cor de beringela, envaideceu-se como uma galinha-da-guiné.
Por fim, chegou a princesa, mas parecia muito concentrada nas suas saudações protocolares, inclusive deteve-se bastante tempo com uma embaixatriz e parecia estar a fazer-lhe perguntas acerca do seu traje regional, do lenço que trazia na cabeça, das fitas do corpete.
A dama gordinha que a escoltava disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e chegou mesmo a puxar-lhe ligeiramente a manga, apontando para os Spencers.
Agora, eu começava a perceber a missão dos acólitos.
A sua tarefa era ser como um terceiro olho de cada um dos membros da família real, fazer-lhes notar o que, por descuido, tinham ignorado.
Era muito improvável que Lady Di não tivesse visto durante todo aquele tempo o seu pobre pai com o lencito, mas, mesmo assim,
o terceiro olho fez-lhe sinais, primeiro subtis, depois quase desesperados.
Não serviu de nada. Sorrindo para a direita e para a esquerda com o profissionalismo de um político em campanha eleitoral,
elogiando uma embaixatriz pelo seu traje, aquele embaixador pela sua condecoração, aquele mais distante pelo seu colete, a bela princesa passou, irradiando glamour, diante do pai sem olhar para ele.
Entretanto ele, lá em cima no seu palco, sorria freneticamente, saudando com as mãos estendidas…
De imediato, sem aguardar que a rainha abandonasse a sala, Lady Spencer agarrou o marido pelo braço e arrastou-o literalmente para a porta. Levou-o quase de rastos, com tanta pressa que sou capaz de jurar que pelo caminho perdeu duas ou três das condecorações tão tristemente dependuradas no seu fraque. Ficámos todos paralisados.
Não só pela cena que estávamos a presenciar, mas, sobretudo, porque como já pude comprovar noutras ocasiões, a música ambiente tem sempre um toque de sarcasmo. Enquanto tudo isto estava a acontecer, a orquestra, imperturbável, continuava a tocar a banda sonora de Mary Poppins. E o que estava a tocar nesse momento? Era «A Spoonful of Sugar»… Pobre Lorde Spencer, imagino que nem com dez toneladas de açúcar conseguirá digerir semelhante pílula amarga.
– Imperdoável – opinou o Luis, assim que entrámos no automóvel a caminho de casa –; o que aquela rapariga fez ao pai em público foi cruel. Se é assim tão rancorosa com o próprio pai, de que será capaz dentro de alguns anos?
Eu disse que, a mim, me tinha parecido muito agradável porque não era tão dura como o resto da família real, mas o Luis insistia em que uma coisa é o carisma e outra a caridade e que as duas não andam a par com muita frequência. Depois, a conversa passou para outros membros da família. O Luis disse que o que mais o tinha impressionado era a rainha, uma mulher fria, talvez, e encerrada nas suas tradições antigas, mas com um sentido de dever inegável. Eu disse que o meu preferido era o duque de Edimburgo. Disse-o assim, de uma forma muito nonchalant, como se diz aqui. E para não ser demasiado óbvia, perguntei às miúdas:
– Bom, vocês é que estiveram bastante tempo a conversar com o príncipe Carlos. Como vos pareceu? Tem carisma como a Lady Di? Ou sentido de Estado como a rainha? Ou atrativo pessoal como o pai?
– O que não tem é graça nenhuma – disse a Carmen, enquanto a Dolores comentou que ele era um perfeito bruto. – Não sabe o que ele nos disse quando parou diante de nós? – acrescentou ela furiosa.
– Não conseguiria adivinhar nem num século. Aquele tem cá uma noção de diplomacia, que grande cretino…
– Mas o que é que ele disse? – insistíamos eu e o pai delas, até que acabaram por nos contar a cena.
– Acontece – começou a Carmen a contar – que, de repente, ele se aproximou de nós com aquele ar de sedutor dos anos quarenta, a brincar com os botões de punho da camisa, como está sempre a fazer, e depois de fazer aquela pergunta tão original «How do you do?» e «Do you like London?»…
– Sim – interrompeu-a a Dolores –, depois de tão grande esforço mental, deve ter pensado: «Vou afastar-me um pouco do guião e fazer uma pergunta verdadeiramente inovadora», e disse: «E de que país são?»
– «Do Uruguai», respondemos nós – continuou a Carmen. – «Vimos do Uruguai»…
– E então – salientou a Dolores, nunca as tinha visto tão sincronizadas, a estas minhas filhas –, suponho que para nos mostrar que sabia de geografia e de biologia e de pecuária, tudo isto ao mesmo tempo, o que julga que lhe ocorreu dizer-nos, o engraçadinho? Baixou a voz, acariciou os botões de punho com um ar irónico, riu-se e disse: «Uau, uau, uau, do Uruguai, hem? Nesse caso, vocês são as verdadeiras Beefeaters! E com outro ho, ho, ho, como os do Pai Natal quando fala com as crianças nos grandes armazéns, continuou a andar para cumprimentar o embaixador do Afeganistão. Deve achar que tem muita graça, o grande palerma.
Comentários