A primeira coisa que Hooman dá ao espectador é o olfato. Um pedaço de papel perfumado, com o objetivo de cimentar a memória do que ainda há de vir. É um odor intenso, forte, que traz a ideia de uma igreja, talvez de uma biblioteca ou da sala fechada de uma velha corte. Sharifi não diz a que cheira isto: “Quando vos der o nome, estraga-se”.
Mas, logo depois de estimular o olfato, logo depois de um longo monólogo que traz contexto ao espaço e àquilo que ele há de fazer dali a pouco, deixa o público às escuras. A música arranca, Arash Moradi toca o Tanbur — instrumento de cordas vindo lá do oriente —, enquanto o público, ainda cego, vai tenteando com os nós do cérebro aquilo que os olhos não veem.
Sharifi está, na verdade, sentado no meio do público — sentou-se na cadeira ao lado do jornalista que escreve estas palavras. O breu abrupto vai-se esfumando à medida que o olhar se ilumina com habituação ao escuro (entra pelas janelas a luz quente da iluminação pública, filtrada e refiltrada em sombras).
Pode haver momentos em que a gente nem sabe o que está a ver: é um homem, mais pesado que leve, a cambalear numa sala escura, com os sapatos a gemer no soalho polido. Mas a lucidez, que é do reino do racional, não entra nesses sonhos onde os mortos duram: pois só inconscientes, desligados das regras, nesse estado comatoso de dormir, sonhamos.
Desengonçado — ou na sua aparência —, o artista vai atrás e à frente, lançando-se ao público, que o rodeia em três filas de cadeiras, à volta das colunas do Salão Árabe. Depois, corre. A sala estremece com os passos abafados desse exercício desconcertante de um homem de olhos fechados que permanentemente ameaça cair.
Porém, tão depressa quanto se abeira do precipício, Hooman Sharifi ergue-se e esvoaça pelo salão. Bem sabemos que os homens não voam e estamos conscientes da ausência de epifenómenos gravitacionais no Porto. Todavia, ninguém aqui disse que para voar é preciso sair do chão.
Os atos sucedem-se, numa narrativa conduzida pela música do Tanbur — ora lenta, ora apressada e ansiosa. Dali a pouco, a estucaria delicada do Salão Árabe acolhe um festival desses ruidosos que ocorrem no verão: o homem corre, agitando a cabeça acima e abaixo, como se num mosh-pit, a praticar o tal head-banging, esse abanar violento do crânio, achocalhando as vísceras mentais.
Até que estaca. A música abranda. O homem esconde-se, refugia-se debaixo do que parece uma manta térmica, daquelas que os migrantes usam quando chegam a algum porto do mediterrâneo, e fica ali.
Mas depois larga a condição de humano e faz-se massa, orgânico disforme, espécie de bicho anónimo, verme enorme que rasteja pela sala. Transfigura-se, numa metamorfose em que uma disforme coisa navega pelo espaço, sem condutor aparente.
De dentro do desconjunto, ergue-se de novo Hooman. De braço envolto em pano, bate no chão, como se à procura de abrir uma qualquer passagem ou somente gritar à terra (ou à Terra).
Durante tudo isto, o público olha-o. Especado. Poderá ser que não o compreenda; poderá ser que julguem que aquele homem não anda para ali a discursar. Há o enfado e a incompreensão. Mas há sobretudo o resto: a atenção, as cabeças a balançar com o Tanbur.
É Sharifi quem diz: “Ninguém tem o direito de dizer a ninguém o que é certo e o que é errado. Todos têm direito à sua perceção da realidade.”
Assim, isto há de ser o que cada um quiser que isto seja. Mas é, antes de mais, uma vontade de aproximar (o que justifica, explica o coreógrafo, que seja proibido usar o telemóvel). “A distância entre nós tornou-se cada vez maior. No entanto, o mundo tornou-se cada vez menor. Há mais e mais de nós, o que significa que temos menos espaço e menos recursos para partilhar”, escreveu o autor do espetáculo na folha de apresentação.
“Então”, afirma, “temos de partilhar mais, temos de nos aproximar, temos de coexistir. Criar situações em que nós, como cidadãos, escolhemos ativamente dialogar uns com os outros.” E foi isso que aconteceu duas noites no Porto: “A performance tem a responsabilidade de refletir e trabalhar esta conexão.”
“A música (…) é criada a partir dos princípios básicos do meu movimento: cair, cair, cair, cair, cair, cair. Ancas pesadas que forçam os joelhos a dobrar, pés que sugam o chão na sua direção, o corpo que é atirado para o espaço e que se recolhe, o pescoço que segura a cabeça e a manobra em todas as direções.”
O autor descreve o movimento, descreve o comportamento, esclarecendo o que fez — e o que o motivou: “Estou interessado nesta exploração de me atirar à frente da plateia, de criar enquanto estou a ser observado e de me expôr.”
“The Dead Live On in Our Dreams” é um solo partilhado com um músico, Arash Moradi, que se enraíza na experiência identitária do artista e nas suas transformações e manipulações. Passou pelo Porto esta sexta e sábado, dia 25 e 26 de outubro.
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